Sábado 27 de Abril de 2024

LUTADORAS

Patrícia Galvão

09 Jul 2010 | “Os elementos conscientes e capazes saberão o caminho a seguir. Saberão encarar a burocracia como um acidente funesto, mas incapaz de deter a marcha da história.” [1] Patrícia Galvão   |   comentários

Patrícia Galvão nasceu no dia 14 de junho de 1910, na cidade de São João da Boa Vista, no interior de São Paulo. Sua afinidade com as vanguardas modernistas rendeu-lhe o apelido que a consagrou no seio do movimento antropofágico [2] e, mais tarde, ganhou ressonância entre as camadas populares: Pagu. Ela destaca-se no meio literário como escritora, poetisa e jornalista, uma mulher cuja sensibilidade a conduz a posições radicais [3]: assume-se como marxista, feminista, uma militante política que conhece a prisão, o exílio e a dissidência.

Augusto de Campos, umdos fundadores do concretismo brasileiro, debruçou-se sobre a história de Patrícia Galvão, em especial, sobre aquela faceta combativa que é perigoso mostrar:

Quem resgatará Pagu? Patrícia Galvão (1910-1962), que quase não consta nas histórias literárias (...) uma sombra cai sobre a vida dessa grandemulher, talvez a primeiramulher nova do Brasil (...) Patrícia Galvão, militante do ideal.

Na década de 1930, a “revolução” constitucionalista e a crise mundial do capitalismo, deflagrada pela Grande Depressão de 1929, constituíram um verdadeiro divisor de águas no cerne do movimento modernista. Frente a uma situação de enfrentamento aberto de luta de classes nacional e internacionalmente, a arte de vanguarda brasileira passa por modificações desde a perspectiva da produção artística e dos grupos que haviam lançado manifestos na década de 1920, mas também com redefinições políticas dos próprios artistas. Era um momento de tomada de decisões frente aos grandes acontecimentos da realidade.

O cenário político dessa década era de fato alarmante:havia crise entre setores da classe dominante como as fraçõesda burguesia rio-grandense e paulista; e no contexto da crise da monocultura cafeeira, o mercado interno e o processo de industrialização abriam uma nova etapa histórica no país. A crise econômica decaía sobre as classes médias e os extratos mais baixos da população, mas, em especial, da classe trabalhadora. A vitória da “Aliança Liberal” e, mais tarde, a ascensão de Getúlio Vargas ao poder foram imprescindíveis para a constituição de uma “unidade nacional”, o que só foi possível com uma opressão ferrenha sobre as classes subalternas, fadadas às mais pérfidas condições de vida e a repressão à qual foram submetidas sob a tutela da classe dominante. Assim constitui-se a federação brasileira, que ainda sofre o impacto da crise de superprodução agrária e industrial e do esgotamento das jazidas de ouro, arrastando o Brasil a reboque do imperialismo de Wall Street. Miséria, repressão, polarização social: tal era o cenário político no qual Pagu resolvera emergir.

Neste momento, Pagu está entre aqueles que se inclinam às posições de esquerda, junto a seu amigo e companheiro Oswald de Andrade. Antes de ingressar no Partido Comunista, Pagu assume, em parceria com Oswald, a direção editorial do jornal O Homem do Povo. É redatora de diversos artigos e ilustradora de charges políticas; procura fazer uma estética do jornal que se pretende revolucionária, tanto na forma, quanto no conteúdo. Assina uma coluna que leva o nome de A Mulher do Povo, na qual faz uma crítica ao feminismo pequeno-burguês, aquele que se propõe a transformar a situação da mulher, deixando intactas as bases sócio-econômicas que assolam a condição da mulher ou, em última análise, os sustentáculos que legitimam a situação de subordinação das mulheres enquanto grupo social. Nos anos seguintes, Pagu apresenta-se como uma ferrenha crítica da estrutura patriarcal, o que se verifica em seu livro “Parque Industrial”, onde escreve:

A mulher de todos os séculos civilizados só conheceu uma finalidade — o casamento. O seu lugar ao sol, agasalhada pela sombra viril e protetora de umhomem que se encarregasse de todas as iniciativas. Todos os anseios e necessidades paravam neste ponto, com o consequente sofrimento incluído no contrato [4]

É com esse mesmo espírito que Patrícia Galvão ingressa no Partido Comunista Brasileiro e, consequentemente, defrontase com o decorrente processo de stalinização, o que leva Pagu a diversos sacrifícios e desilusões com o ideal pelo qual lutava até então. Não obstante, em1939, é autora da admirável Carta de uma Militante”, na qual expressa a visão que desenvolveu em relação ao stalinismo durante sua trajetória. Muitos biógrafos e historiadores recontaram a história de Pagu ou desde o ponto de vista única e exclusivamente artístico e cultural, ou,
no caso do stalinismo, como uma militante alheia à causa do proletariado. Ainda que tenha possuído uma relação contraditória com o PCB nos anos 1930, como desenvolveremos a seguir, o balanço de sua trajetória no Partido confluiu com as posições do trotskismo.

A MULHER DO POVO COMEÇA A SE MOVIMENTAR

Em uma viagem para a Argentina, na companhia de intelectuais, em Mar Del Plata, com figuras como Jorge Luis Borges, Pagu decepciona-se com essa “gente embolorada, cercada por estatutos de um conventículo convencionadamente exótico”, segundo suas próprias palavras. É nesse contexto que Pagu recebe
a visita de Garrigorri, militante do Partido Comunista Argentino, que lhe apresenta uma infinidade de folhetos de
propaganda do partido. Sua curiosidade a instigava, trazendo de volta para São Paulo uma bagagem repleta de livros marxistas e tudo que havia dematerial editado nos últimos tempos pelo PCA [5].

Uma nova visita aproxima Pagu dos caminhos da militância. Dessa vez, é Astrojildo Pereira [6] que, em busca dos livros e documentos trazidos da Argentina, vai até a casa onde viviam Pagu e Oswald. Aí, inicia-se um novo círculo de relações e se abrem novas possibilidades para a vida de Patrícia:

Astrojildo foi o primeiro comunista de destaque que surgiu nas minhas relações coma luta política.Mas era, antes de tudo, o intelectual que me contava coisas novas, para meu prazer intelectual. Voltou várias vezes em casa, encontramo-nos outras e a sua convivência era esperada com ansiedade por mim. Pediu-me para fazer traduções de folhetos. Recomecei a ler. Oswald também parecia interessar-se pelas doutrinas sociais. Começamos a ter, em casa, novos visitantes.

Esses novos visitantes inauguram o jornal O Homem do Povo, que, pela definição da própria Pagu, tratava-se de algo Sem muita convicção,mas com muito entusiasmo. Ainda assim, seu conteúdo aproxima-se de uma visão revolucionária ou, ao menos, ameaçadora ao status quo vigente. O suficiente para suscitar uma opinião negativa dos estudantes mais conservadores da Faculdade de Direito de São Paulo que, diante de críticas as suas posições reformistas, atacam-no em conflito aberto e conseguem obter o fechamento do jornal. Uma nova viagem do casal vai mudar os rumos. Dessa vez, em Montevidéu, Patrícia e Oswald encontram-se com Luis Carlos Prestes. Esse encontro foi importante, já que, na primeira conversa, Pagu saiu coma impressão de que tinha se encontrado com um verdadeiro comunista, um “comunista honestamente comunista”. Entretanto, é importante ressaltar que o PCB, através da figura de Prestes e da ANL, foi responsável por um episódio que acarretou na derrota de um inicial ascenso de greves e de mobilização operária no ano 1934, comas tentativas de iniciar uma inssureição popular contra o governo Vargas, o que a direita chamou de “intentona comunista”. As conseqüências políticas da linha do PCB, além do recrudescimento da repressão varguista e dos primeiros passos para a ditadura do Estado Novo (1937), foi terminar com as possibilidades do proletariado intervir politicamente na arena nacional.

Em 1931, regressa ao Brasil. Sentindo-se distante da luta revolucionária, diz em uma de suas cartas “(...) a satisfação intelectual não me basta... A ação me faz falta”. O isolamento na relação com Oswald e a falta de atuação política contribuíram para que Pagu mergulhasse em profunda depressão, numa fase de muita confusão política e intelectual. Nesse mesmo ano, decide ir temporariamente para Santos. No dia de sua chegada, o Sindicato da Construção Civil anunciava uma reunião. Pagu decide participar.

O INGRESSO NO PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO

Pagu, ao participar de uma reunião de trabalhadores da Construção Civil, encontra um ambiente pré-grevista, e mais consciência e revolta do que ela esperava. O operário Villar, de todos o que mais lhe surpreendeu, depois voltou a procurá-la, a seu pedido, e lhe dizia “Você precisa trabalhar com a gente, no partido”. O convencimento ainda não tinha vindo por completo, mas, mesmo assim, começou a ajudar Villar na redação de um
manifesto. Também é nesse momento que conhece Herculano, um negro estivador e militante do PCB que, contrapondo à experiência com Luis Carlos Prestes, compara:

Que diferença da explicação intelectual de Prestes que me exaltara sem me convencer, provocando uma curiosidade ilimitada e sem satisfação. Herculano conseguiu chegar ao fundo de mim mesma.

A tudo isso, a resposta de Patrícia foi “Sim, companheiro. Eu lutarei com vocês”.

Participa da primeira reunião do PCB. Seus pensamentos são confusos e passionais,mas expressam também o papel que almejava cumprir enquanto mulher lutadora:

Entreguei-me completamente. Só ficou o êxtase da doação feita à causa proletária. Perturbada, desde esse dia, resolvi escravizar-me espontaneamente, violentamente. O marxismo. A luta de classes. A libertação dos trabalhadores. Por um mundo de verdade e de justiça. Lutar por isso valia uma vida. Valia a vida.

Seu ingresso no Partido Comunista Brasileiro — quando este já se encontrava num grau elevado de burocratização, através da direção internacional de Stalin, perseguindo todas as dissidências, e particularmente a Oposição de Esquerda de Trotsky em todos os países —, expressa como uma certa imaturidade política e seu idealismo faziam, naquele momento, com que ela não enxergasse o processo histórico no qual estava inserido o PC internacionalmente, levando a se entregar por completo a Um projeto político que não mais dizia respeito ao que ela tanto acreditava, de que o partido “devia ser a linda fraternidade reinante entre os participantes da luta ideal pela causa que todos compartilham”, no caso, a Revolução Socialista.

PRIMEIRA COMUNISTA PRESA NO BRASIL

Com bastante dor, Pagu despede-se de seu marido e seu filho, pois havia sido transferida para Santos definitivamente, a fim de organizar algumas células partidárias na cidade, mas a deflagração da greve da Construção Civil fez com que Pagu fosse designada pelo Partido a participar do comitê ilegal de greve. Inicialmente, Pagu apenas acompanhava as reuniões, mas, depois, começou a opinar, num momento em que a greve se fortalecia e conseguia a adesão de outras corporações, inclusive entre os estivadores, o que poderia ocasionar uma greve geral.

Seu primeiro trabalho prático é a distribuição de boletins grevistas no cais. Junto a outro companheiro de Partido, ambos são presos. Pagu ajuda o companheiro que havia sido brutalmente espancado, e também esbofeteia um dos policiais. Sai da prisão e depois retorna a Santos, onde a greve permanecia, porém já enfraquecida.

Nesse período, por orientação do Partido, Pagu passa a tomar, com maior centralidade, as tarefas de organização, aproximando-se de Herculano e Maria, também militantes, pelos quais tinha enorme admiração: “Ele e Mariame orientaram nas ruas da revolta, me mostraram todas as faces da opressão, me puseram em contato com a miséria real”. Enfim, no dia 23 de agosto de 1931, decidem realizar o primeiro comício do Socorro (Sessão de Santos), homenageando Sacco e Vanzetti [7]. Apesar de ser contra sua vontade, Pagu acaba sendo designada a fazer o discurso principal, tendo a orientação de fazê-lo a qualquer custo, mesmo que a praça fosse invadida pela polícia. Como já se esperava, a polícia reprime fortemente o comício. Pagu mal podia distinguir entre os indivíduos comuns e os policiais, a não ser pelos disparos. Herculano derrubou um dos policiais e arrastou Pagu violentamente. Logo caiu: levara um tiro nas costas. Pagu segurou a cabeça de Herculano em seus
joelhos, que lhe disse suas últimas palavras “Continue o comício! Continue o comício!”. Continuaram o comício, e quando Pagu e Maria incitaram a multidão a cantar a Internacional Comunista, a cavalaria invadiu a praça. Maria falou com os soldados, que recuaram. Então a polícia atirou-se novamente contra o comício. “Senti um sapato no pescoço e não podia mais respirar”. Pagu foi presa novamente. Mais tarde, diz, referindo-se aos momentos da prisão:

Não vou relatar aqui os sofrimentos por que se passa numa prisão De mulheres. Faria uma má descrição e os sofrimentos físicos só foram sentidos na hora. A gente se esquece deles. Eu, principalmente. A prisão não tinha importância para mim, a não ser no que se referia à paralisação do trabalho começado. Sempre pensei que, na cadeia, também se podia lutar. Atormentava-me a falta de comunicação, a ausência de notícias de companheiros. Não sentia nenhuma humilhação. E, no fundo, talvez sentisse alegria com o sofrimento que era proporcionado por minha luta.

Segundo os próprios documentos escritos por Patrícia Galvão, esse episódio gerou uma comoção em torno da sua figura tendo seu nome se propagado aos quatro cantos e repetido com entusiasmo nos meios proletários. Segundo ela, isso foi considerado pernicioso pelo PCB, por se tratar de uma militante de origem pequeno-burguesa.

Eu era realmente a primeira comunista presa e, no Brasil, isso era assunto a ser explorado, principalmente não se tratando de uma operária. Os comentários transformaram-se em lendas mentirosas, que exageravam a minha atuação.

AS MULHERES NO PARTIDO STALINISTA

Esses acontecimentos fizeram com que o PCB sugerisse à Patrícia publicar um manifesto no qual deixasse claro que tal desordem havia sido provocada por sua própria responsabilidade, que ela tinha falado sem conhecimento e sem autorização da organização e com intento provocador. Nesse momento, Pagu, imersa na burocratização do Partido, considera justa a sugestão do manifesto, que foi distribuída durante sua permanência na cadeia de Santos. Depois, foi transferida para a “imigração”, local convertido, naquele momento, em presídio. Colocaram-na num pavilhão incomunicável. Depois de semanas de solidão, ouviu vozes cantando a Internacional Comunista. Eram seis mulheres que haviam participado de uma manifestação pela liberdade dos presos políticos.

Soube, então, que os presos não estavam na imigração, mas espalhados em diversas delegacias, esperando ser deportados, como já tinham sido outros, para Montevidéu.

Ao sair da prisão, Pagu inicia uma enorme peregrinação através de lugares inseguros, fugindo da polícia, que estava atrás de todos os comunistas. Por um pequeno intervalo de tempo, Pagu reestabelece sua vida com Oswald e seu filho Rudá, o que rapidamente é interrompido pelo chamado do Partido a instalar-se no Rio de Janeiro:

Já havia repousado suficientemente e devia voltar à luta. Eu esperava esse chamado,mas não a intromissão na minha vida particular. Exigiam a minha separação definitiva de Oswald. Isto significava deixar meu filho. A organização determinava a proletarização de todos os seus membros.

Pagu passa, sem sucesso, por diversos empregos, a fim de seguir a linha do Partido, que, nesse momento, seguia um desvio “obreirista” [8]. Não à toa, mais tarde, após um segundo afastamento de Pagu, o Partido volta a procurá-la, pois, dessa vez, haviam mudado a orientação e, agora, queriam que Patrícia fizesse um trabalho entre os círculos de intelectuais da esquerda, tanto para aproximá-los quanto para fazer um trabalho relativo às finanças partidárias.

Na carta em que escreve a seu segundo marido, Geraldo Ferraz, Pagu relata, em detalhes, os sofrimentos que algumas mulheres, sofriam dentro do PCB, já que alguns burocratas do Partido incentivavam as mulheres a utilizarem-se de “encantos sexuais” a fim de conseguir informações secretas para a organização, em especial, sobre possíveis frações ou grupos de opinião que se formassem no interior do Partido. Acusada de fazer parte da fração trotskista, Pagu é expulsa do PCB, o que demonstra o caráter reacionário dessa direção, que, em documento público de 1939, revelava para a ditadura varguista os nomes verdadeiros dos militantes expulsos:

Patrícia Galvão. Conhecida geralmente com o nome de PAGÚ. Desde princípios de 1937, que não mais pertencia ao Partido. Muito conhecida pelas suas atitudes escandalosas de degenerada sexual.

No mesmo documento, os militantes homens expulsos eram considerados “contra-revolucionários”. Patrícia Galvão, uma “degenerada sexual”.

“ENTÃO A REVOLUÇÃO NA URSS SE FEZ PARA QUE CONTINUE
A MISÉRIA DAS CRIANÇAS?”

Em 1934, o PCB “aconselha” Patrícia Galvão a viajar à Rússia. “Ia ver a Rússia. Ia encontrar um mundo diferente de luta e esperava muito daquele mundo...”, eram os pensamentos de Pagu nesse momento. Chegou a Moscou.

Na rua tumultuosa, tive noção de meu fanatismo. Mas gozei-o delirantemente, deixando que as lágrimas escorressem. Todos os meus minutos seriam da causa que me conquistara. Trabalharia, estudaria, faria qualquer coisa. Daria o meu quinhão à revolução proletária.

Conheceu Boris, um oficial do Exército Vermelho, que a levou para jantar no Metropol. Surpreendeu-se com o preparo luxuoso de tudo em volta: “A impressão era exatamente a de estar num suntuoso palácio capitalista”. Passearam pelas ruas do Kremlin e, num momento, sentiu puxarem seu casaco. Era uma garotinha vestida em trapos. Pedia esmola. Faltavam-lhe pedaços de dedos nos pés descalços. Tremia de frio, mas não chorava.

Todas as conquistas da revolução paravam naquela mãozinha trêmula estendida para mim, a comunista que queria, antes de tudo, a salvação de todas as crianças da Terra.

Nesse momento, Patrícia Galvão começa a se perguntar: “Então a Revolução se fez para isto? Para que continuem a humilhação e a miséria das crianças?”.

“Já havia sido presa e foi presa novamente. De 1935 a 1937: cadeia. Fugiu, mas acabou voltando. Voltou para as prisões do Rio, para os canos de borracha, às Casas de Detenção para mulheres”. Muitos, nesse momento, afirmavam que o Partido estava sempre certo:

Eu respondia invariavelmente: NÃO. Em 1935, grandes cartazes, com o rosto de Stalin e a legenda: Stalin tem razão. Agildo Barata, o chefe dos verdugos, pregava, então, os pregos na minha cabeça: ‘Sim, você não tem razão. Obedeça’. NÃO, NÃO,NÃO E NÃO.

Visada pela polícia e alvo de intrigas e desconfiança por seus próprios companheiros de partido, ela lança-se no mundo: conhece os EUA, o Japão, a China e a Alemanha e, por último, a França, onde finalmente se instala com uma identidade falsa, atendendo pelo nome de Leonnie. Correspondente do jornal Correio da Manhã, ela se filia à juventude comunista do PCF. Ela não é propriamente “acolhida” pelos franceses, que logo a identificam como estrangeira e ameaçam deportá-la para a Alemanha de Hitler ou a Itália de Mussolini. Foi preciso a intervenção do diplomata Souza Dantas para que Pagu encontrasse segurança de volta a seu país. No Brasil, foi recepcionada por um cenário de profunda reação social, pois se tratava da instauração do regime semi-fascista do Estado Novo. Não tardou até que Pagu retornasse ao cárcere, onde passou cinco anos. Sua irmã, Sidéria Rehder, com a qual desenvolveu uma de suas mais profundas relações, também ficou presa por alguns tempos. Segundo ela, Patrícia recebeu um tratamento horroroso na Casa de Detenção do Rio de Janeiro: “No Rio, ela foi torturada, sim, inclusive aquela tortura estúpida, de unha e tudo (agulhas enfiadas sobre as unhas); apanhou bastante” [9].

Uma década após a sua expulsão e ruptura publica com o PCB, Pagu diz em panfleto:

(...) Nas ruas, as crianças mortas de fome: era o regime comunista. De tal modo, quando um cartaz enorme clamou nas ruas de Paris que STALIN TEM RAZÃO, eu sabia que NÃO. Ainda militei. Ainda esperei que a Polícia me liquidasse. Ainda enfrentei as tropas de choque nas ruas de Paris — três meses de hospital. Ainda lutei: nenhuma bala me alcançava. (...) Agora, saio de um túnel. Tenho várias cicatrizes, mas estou viva.

CARTA DE UMA MILITANTE:
A RUPTURA COM O STALINISMO

O documento acima, chamado “Porque aceitei voltar”, é publicado em 1950, e era o primeiro capítulo do livro “Verdade e Liberdade”,material de sua candidatura à vereadora pelo PSB, quando já havia se afastado dos círculos trotskistas. Entretanto, nos dez anos anteriores, em 1939, no interior de uma cela da Casa de Detenção no Rio de Janeiro, Patrícia redige a “Carta de uma Militante”, de ruptura com o stalinismo.

Essa carta documenta o período final de uma cisão que explodira em outubro de 1937, dentro das fileiras do PCB, que havia surgido após o putsch comunista de 1935, quando o PCB aderiu à orientação internacional de “frente popular” estabelecido pela Internacional Comunista em seu VIII Congresso, passando a considerar a burguesia local como “força motriz para a revolução brasileira”. O comitê regional de São Paulo revoltou-se com a linha imposta e, no Brasil, esteve à frente da revolta Hermínio Sachetta e Heitor Ferreira Lima. Ao mesmo tempo, Lauro Reginaldo da Rocha (Bangu), começa a articular uma ala mais conservadora dentro do partido. Alguns militantes, que estavam em torno de Ferreira Lima, percebendo a aproximação dos trotskistas, horrorizaram-se e fizeram uma cisão dentro da cisão. Os que estavam em torno de Sachetta fundiram-se com o grupo trotskista brasileiro, o Partido Operário Leninista (POL) e fundaram, em agosto de 1939, o Partido Socialista Revolucionário (PSR).

Sua carta começa por discutir os problemas internacionais da burocratização da URSS e consequentemente dos PCs do mundo inteiro.

A minha posição foi tomada depois de uma análise meticulosa, longa e objetiva, que se iniciou com a primeira dúvida produzida na minha passagem pela URSS.

Começa demonstrando as raízes dos problemas enfrentados pela URSS com a formação de uma burocracia, num momento em que se agravam as crises capitalistas. Para Pagu,

As verdadeiras causas primeiras dessa política, hoje internacional, devem ser buscadas na necessidade sentida pela burocracia soviética de manter-se no usufruto das conquistas da Revolução, na impossibilidade de conciliar os interesses do proletariado internacional com os daqueles que se proclamam seus chefes.

Sua critica à burocracia soviética era relegar a segundo plano aquilo que Lenin considerava a maior tarefa do Estado operário: “tornar o governo desnecessário”. Pagu atenta que isso só pode se concretizar com a descentralização do poder político e administrativo. Se as circunstâncias impostas pelos países capitalistas do Ocidente não eram propícias para levar a revolução de outubro às suas últimas conseqüências, ficou evidente que os êxitos da revolução não poderiam ganhar solidez, uma vez que a revolução se difundisse internacionalmente.

A revolução russa não podia ser tida como um fim. E não o foi de fato. O seu desenvolvimento natural e dialético seria o prosseguimento da revolução proletária no campo internacional. Em vez disso, sacrificou-se a revolução internacional -como se sacrifica ainda hoje. Consequentemente, sacrifica-se a revolução russa.

Disso decorreria o processo de burocratização e, com isso, o surgimento de uma casta privilegiada, que se apóia nos elementos mais retrógrados da sociedade, como o nacionalismo e o conservadorismo. Patrícia pondera que se a revolução tem como objetivo último a dissolução das classes sociais e de todos os privilégios, a existência de uma burocracia profissional, que detém o monopólio da coerção estatal constitui um contra senso. Este papel caberia aos trabalhadores. Abre-se um abismo entre a ideologia comunista revolucionária e a prática dessa burocracia, que se vê obrigada a manter o discurso revolucionário de maneira obscura e dissimulada, para levar a fins que nada condizem com o ideário comunista.

Deste modo, a burocracia bonapartista não só se apossa das conquistas da revolução, mas a falseia, despindo-a dos seus caracteres mais essenciais sob a alegação de que constituem‘erros de esquerda’.

Sua faceta mais nefasta remete-se ao seu caráter policial, submetendo seus críticos à perseguição e à “depuração“, rotulando-os de trotskistas. O temor por uma massa critica é a expressão mais evidente do temor pela decorrente perda de seus privilégios de casta. Esta seria a única justificativa verídica para as prisões, as deportações e os fuzilamentos. A Internacional Comunista segue omesmo rumo, abandonando seus princípios revolucionários para se converter em um apêndice da burocracia, empenhada na preservação de seus privilégios de casta a custo da ferrenha repressão stalinista. Se a manutenção dos privilégios está emprimeiro plano, a burocracia precisa, a todo custo, impedir que a revolução se alastre internacionalmente, fugindo, portanto a sua tutela. Para tal, vê-se obrigada a tecer alianças nefastas com países imperialistas. Pagu observa que seu oportunismo coloca a política externa da IC a reboque dos ziguezagues de Moscou, negando ao proletariado a sua representatividade efetiva. Nas palavras de Dainis Karepovs

Essa carta, além de ser uma ruptura com o stalinismo, é também o anúncio de sua aproximação como trotskismo, a qual, por ocasião da fundação do PSR, ficará cristalina, quando ela integrará a presidência de honra do congresso.

Entretanto, ainda hoje, é difícil afirmar a relação exata que Patrícia Galvão estabeleceu comos trotskistas, pois não obstante esse documento, Pagu organizou-se em torno do Jornal Vanguarda Socialista, fundado por Mário Pedrosa após a 2ª Guerra Mundial ao lado de uma série de militantes da primeira geração de trotskistas brasileiros (em especial, os fundadores da Liga Comunista Internacionalista), sendo que sua referência central já não eramais o trotskismo. O próprio Pedrosa rompeu com a IV Internacional no ano de 1939. Assim, continuam incertas as relações de Pagu com o trotskismo durante os anos da 2ª Guerra (1940-1945). Ainda que, no próprio Congresso de fundação do PSR, tenha sido considerada juntamente com Hermínio Sachetta a presidente de honra da ocasião, nada mais pudemos conhecer deste período.

Mas, certamente, a carta redigida por Pagu demonstra a opinião que tinha em relação à burocracia, quando a finaliza, dizendo que

Os elementos conscientes e capazes saberão o caminho a seguir. Saberão encarar a burocracia como um acidente funesto, mas incapaz de deter a marcha da história.

Essa é a história por vezes oculta de Patrícia Galvão, pouco conhecida numa historiografia que, também atingida por uma visão stalinista, nunca permitiu aflorar a história dessa lutadora.

Diana Assunção e Marina Fuser, Patrícia Galvão. In: D’ATRI e ASSUNÇÃO (org.), Lutadoras. História de mulheres que fizeram história, São Paulo: Iskra, 2009.

[1“Carta de uma militante”.

[2Tendência do modernismo brasileiro inspirado no ritual antropofágico dos povos indígenas. Valia-se da metáfora de que os artistas deveriam se alimentar de expressões das vanguardas modernistas e transformá-las desde um ponto de vista brasileiro e regional “Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.”

[3Neste artigo não iremos nos deter nos aspectos da vida de Patrícia Galvão que dizem respeito a sua atuação literária e artística. Dentre os artigos dessa publicação, consideramos que seria de vital importância dar ênfase à atuação militante da vida de Pagu, ainda que, em vários aspectos, não estivessem descolados de sua produção artística. Consideramos que a importância em aprofundar um estudo sobre essa produção remeteria uma nova pesquisa.

[4Mara Lobo [Patrícia Galvão], “Parque Industrial”.

[5Geraldo Galvão Ferraz (org.), Paixão Pagu.

[6Astrojildo Pereira, fundador do PCB, foi parte do núcleo dirigente até a crise de 1930. O PCB, orientado pela Internacional Comunista, condena
a atividade dos anos 1920 no partido como direitista e imprime um curso “obreirista”, que remove da direção os seus principais membros
até então. A partir desse momento, Astrojildo, assim como outros, não ocupará mais do que posições secundárias no PCB.

[7Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti foram dois anarquistas italianos condenados à morte nos EUA em 1927, acusados de assassinar um contador e um guarda de uma fábrica de sapatos. Os processos foram questionados por seu conteúdo político e a causa destes militantes se tornou conhecida internacionalmente.

[8Geraldo Galvão Ferraz (org.), Paixão Pagu.

[9Coleções Caros Amigos “Rebeldes brasileiros”, s.d.









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