Quinta 16 de Maio de 2024

Internacional

Entrevista com operários de Zanon

05 May 2006 | A fábrica de cerâmicas Zanon está localizada na província de Neuquén, na Patagônia, Argentina. É a maior fábrica do parque industrial local e a mais moderna da América Latina na produção de porcelanato. Chegou a produzir 1 milhão de metros quadrados mensais. Seus trabalhadores se transformaram em um emblema de luta operária ao recuperar a comissão interna, seguida do sindicato, e quando em finais de 2001 a patronal tentou fechar a planta eles decidiram ocupá-la e colocá-la em produção sob controle operário. Desde então a fábrica se mantém ocupada e em produção. A luta pela expropriação e estatização da fábrica sem pagamento e sob controle operário continua. Para que relatem sua experiência entrevistamos cinco operários de Zanon que são parte da equipe do PTS argentino na fábrica.   |   comentários

Jornal Palavra Operária: Como e quando começaram os conflitos com a patronal?

Andrés Blanco: Desde o ano 2000 começaram os problemas com o pagamento dos salários. Todos os meses pagavam uma parte, e a outra atrasavam. A fábrica estava dividida entre os distintos setores pela política da patronal e da burocracia do sindicato. Em meu setor, porcelanato, éramos na maioria companheiros jovens, nos pagavam metade do salário que os companheiros de outro setor recebiam para fazer o mesmo trabalho. Nesse momento, já havíamos recuperado a Comissão Interna e a partir daí começamos a nos organizar. A Interna fazia atividades sociais fora da fábrica para superar a divisão por setores, para ir obtendo a unidade. Assim foi como se fez o campeonato de futebol de todos os setores. Assim fomos nos conhecendo entre trabalhadores e depois das partidas de futebol se faziam as reuniões abertas da comissão interna e aí fomos nos somando e transformando em ativistas.

Carlos Saavedra: Os delegados da Comissão Interna recorriam os setores todos os dias e falavam com cada um, se aproveitava o horário de pausa para fazer assembléias. Na fábrica íamos nos politizando. Os atrasos nos pagamentos foram fazendo crescer a raiva e começamos as greves, sempre com o sindicato contra. Em junho de 2000 veio a morte do companheiro Daniel Ferrás por falta de condições de segurança e higiene. Aí estourou a raiva acumulada.

Raúl Godoy: Com a morte de Daniel começou uma greve muito dura. A Comissão Interna se pós à prova. Tínhamos discussões entre os oito delegados, mas as resolvíamos levando-as à assembléia. O Ministério do Trabalho, a patronal e o sindicato queriam frear a greve dizendo que era ilegal, que iam despedir todos os companheiros. Usavam para isso as leis e os funcionários do ministério para assustar os trabalhadores. Como fazem sempre os capitalistas voltaram todo o peso do Estado e suas instituições para tratar de quebrar a greve.

Andrés: Mas depois de 9 dias ganhamos. Impusemos uma folha com as condições de segurança e higiene, e uma comissão operária para controlar e garantir que as condições fossem cumpridas. Foi o primeiro ensaio do controle operário. Paramos também as demissões, suspensões e o rebaixamento salarial que a patronal queria.

Natalio Navarrete: Neste conflito foram os primeiros cortes de rua, a organização da barraca fora da fábrica, a Comissão de Mulheres. Tudo mudou. Antes era muito difícil falar nas assembléias, pois aí estavam a patronal e a burocracia. Havia sempre o temor da demissão dos companheiros. Mas a assembléia se transformou em nosso método de trabalho. Nas linhas de produção, meu setor, começamos a nos colocar frente aos encarregados.

JPO: E como ficou a situação depois deste primeiro enfrentamento?

Raúl: A partir daí começamos a luta pela recuperação do sindicato. Desde a Comissão Interna com um setor de ativistas começamos a percorrer as outras fabricas e a organizar uma oposição à burocracia. Foi uma grande experiência já que a burocracia usava os estatutos do sindicato para manobrar e organizar uma fraude eleitoral nas eleições do sindicato. Para isso queriam assegurar a eleição dos membros da Junta Eleitoral. Convocaram uma assembléia em um dia e horário de trabalho para eleger a Junta Eleitoral. Uma sexta-feira ao meio dia em uma localidade a 100 km. A patronal ameaçava com demissões aos que não fossem trabalhar neste dia. O Ministério do Trabalho apoiava estas manobras.

Natalio: Neste dia abandonamos a fábrica e fomos todos à assembléia, e derrotamos a burocracia. Impulsionamos a maioria e ganhamos a Junta Eleitoral. Neste dia ganhamos o sindicato da burocracia, e ficou o compromisso de modificar os estatutos burocráticos do sindicato.

Andrés: Já com o sindicato recuperado, todo o ano de 2001 foi uma greve atrás da outra. Os Zanon [donos da empresa] provocavam o tempo todo. Tivemos greves muito longas, como a dos 34 dias em abril. Já víamos o esvaziamento e a tentativa de fechamento. Nesta época me somei ao partido. Nas reuniões no sindicato começamos a debater que posição ter frente ao que viria. Foi assim que levantamos um programa operário seguindo a lógica do programa de transição: frente à crise que a patronal alegava exigíamos a abertura dos livros de contabilidade. E ante o eventual caso de fechamento levantamos a expropriação e estatização sem indenizações da fábrica e que a produção ficasse sob controle operário.

Natalio: Seguindo a tradição da Comissão Interna, a Comissão Diretiva do sindicato fazia suas reuniões abertas a todos os companheiros. Sempre se estimulou a militância operária.

Carlos: Em cada um destes conflitos salariais de 2001, ademais de parar a produção na fábrica e bloquear os portões para evitar que saísse o estoque, saíamos à comunidade para explicar a situação que nós operários atravessávamos. Recorríamos em grupo os bairros buscando fundo de greve e entregando um panfleto. Isto me fez ver a solidariedade de classe. Os trabalhadores sempre eram as pessoas mais solidárias. São os que menos têm e não nos davam o que sobrava, nos davam o que tinham. A todos lhes explicávamos porque Zanon é do povo e porque lutávamos pela expropriação e o controle operário. Já desde aí rompíamos com a lógica puramente sindicalista e considerávamos que hoje por hoje, para ganhar um conflito é fundamental ganhar o apoio da comunidade.

JPO: E então se fechou a fábrica.

Raúl: Sim, em outubro a patronal fechou a fábrica e mandou os telegramas de demissão. Em seguida, nos organizamos e ocupamos a fábrica. Rechaçamos os telegramas, os queimamos na porta da Casa de Governo e houve uma repressão muito grande. Vários companheiros foram detidos. Aí se viu refletido o trabalho que vínhamos fazendo na comunidade, já que em poucas horas milhares de pessoas se concentraram no centro da cidade e fizemos uma marcha com a qual conseguimos a libertação dos companheiros detidos.

JPO: E como surgiu a idéia de começar produção?

Natalio: Primeiro, durante novembro e dezembro, fomos vendendo parte do estoque que havíamos embargado por ordem judicial. Isto foi de uma sentença judicial histórica que conseguimos com a luta e com assessoramento dos companheiros advogados do CeProDH, um organismo de direitos humanos que se põe à disposição da classe operária. Esta sentença condenava a fábrica ao fechamento, e nos autorizava a vender uma parte do estoque para cobrar os salários que a patronal nos devia.

Andrés: Mas o estoque ia acabar e os Zanon queriam reabrir a fábrica com todos os postos de trabalho. Então começamos a debater a idéia e um plano para nós colocarmos a planta para produzir. Os que sabiam como fazê-lo, como colocar em marcha cada máquina éramos nós, os operários.

Raúl: Em meio a tudo isso vieram as jornadas revolucionárias de dezembro de 2001, quando caiu o governo de De La Rúa. Ainda que a classe operária não tenha sido o ator central, a ação direta tomou a cena política nacional.

Natalio: Isto deu uma força maior. Os operários de Zanon nos sentimos parte deste fenomenal levantamento. Então em fevereiro se votou em uma assembléia que faríamos a produção sob nosso controle, e que todos íamos ganhar o mesmo. Começamos assim, meio desorganizados no princípio e depois fomos nos organizando cada vez mais.

JPO: Como se organizaram para produzir?

Carlos: Quando entramos na fábrica começou a necessidade de coordenar a produção. Havia que organizar o controle operário para que funcionasse. Começamos com uma produção baixa, de 15 mil metros quadrados mensais no primeiro mês. Custava conseguir a matéria-prima. Por isso um setor de companheiros se organizou na Comissão de Compras que se somava à de Vendas, que já estava antes pela venda do estoque. Ninguém queria vender para nós, e os que aceitavam nos pediam o pagamento antecipado. Havia um boicote dos capitalistas. Foi preciso abrir o gás, acender os fornos, fazer a linha de produção andar. Bom, fazer andar uma fábrica sem patrões. Também havia que garantir a segurança, já que os patrões e o Estado queriam nos desalojar. Assim começaram a se formar as comissões dentro da fábrica, todos tinham vontade de começar a sentir que as máquinas se moviam e a produção saía. Mas depois foi preciso começar a coordenar as comissões para que os setores estivessem organizados entre si. Nas assembléias foi se debatendo e se elegeu um coordenador por cada setor de trabalho e um coordenador geral da produção. Assim começamos a planificar a produção.

Raúl: O companheiro Carlos Saavedra foi o primeiro coordenador geral eleito pela assembléia. Depois de dois anos deixou o posto e o companheiro Miguel Rodríguez é o atual coordenador geral, também eleito pela assembléia. Na fábrica o regulamento do controle operário é a rotatividade e a revogabilidade. Todos os coordenadores de cada setor, sobretudo os administrativos ou de coordenação têm que rodar. Isto serve para evitar tendências à burocratização. Os coordenadores de cada setor são eleitos pelos companheiros do setor e eles podem revogar seu mandato. Assim funciona a democracia operária na fábrica.

Natalio: Na fábrica não ficou nenhum encarregado, nenhum chefe e tampouco nenhum administrativo. Todos se foram com a patronal quando ocupamos a fábrica. Foi necessário um grande esforço. Os docentes da Universidade de Comahue nos ajudaram. Fizemos concreta a unidade operário-estudantil, a idéia de um pacto entre os operários e os universitários. Recorremos às agrupações e docentes combativos e de esquerda se puseram à disposição e desde as faculdades de engenharia ou economia nos deram uma mão.

Carlos: Isto nos ajudou. Como lhes dizia, no primeiro mês fizemos só 15 mil metros quadrados. Assim não podíamos cobrir nem sequer os salários dos 260 que éramos neste então. Muito menos pagar a matéria-prima ou a eletricidade ou o gás. Fomos nos pondo objetivos mês a mês, e pusemos como piso, neste então, 120 mil metros quadrados. Quando os superamos decidimos em assembléia ir aumentando cada vez mais a linha de produção e incorporar novos companheiros.

Raúl: Aí demos um passo importante. Nós apostamos na coordenação com os setores combativos. Pusemos em pé a Coordenadora Regional de Alto Valle que nucleava os operários de Zanon, os companheiros de organizações de trabalhadores desocupados como o MTD, a Junta Interna do Hospital Provincial, agrupações docentes, organismos de direitos humanos, agrupações de estudantes universitários e secundaristas, e partidos de esquerda como o PTS e o MST. A Coordenadora foi uma instância de agrupação dos setores combativos e anti-burocráticos da região. A partir daí, demos a luta contra a burocracia sindical e buscávamos a frente-única com outras organizações como a CTA quando havia algum problema repressivo ou democrático. Por exemplo, quando em 8 de abril de 2003 tentaram desalojar a fábrica. Chamou-se uma paralisação provincial para defender o controle operário e milhares de trabalhadores se dirigiram aos portões de Zanon. Antes disso haviam tentado nos desalojar com grupos policiais organizados pelo governo, a patronal e a burocracia sindical que havíamos expulsado do sindicato. Os que nesta oportunidade estiveram à cabeça junto a nós foram os companheiros do MTD. Por isso os primeiros postos de trabalho que se criaram em Zanon foram para estes companheiros desempregados que haviam defendido a fábrica junto a nós, era um compromisso de honra. Era fazer concreta a unidade entre trabalhadores ocupados e desocupados, que sempre são deixados de lado pelas burocracias sindicais.

Andrés: A conduta dos companheiros do MTD foi heróica. Sempre iremos lhes agradecer. Eles estavam desempregados, mas nos ajudavam a defender nossa fonte de trabalho. A Coordenadora e a unidade nas ruas foram soldando esta irmandade entre duas organizações de trabalhadores ocupados e desocupados. A luta por trabalho genuíno nos unia.

Alejandra Torqui: Eu comecei a trabalhar nesta primeira leva de companheiros do MTD. Estava organizada na Juventude do MTD. Quando os companheiros de Zanon nos ofereceram os primeiros postos de trabalho, que eram 10, fizemos uma assembléia. Foi muito emocionante porque o primeiro critério foi que se elegessem os companheiros com mais filhos. Não era algo simples porque no MTD éramos mais de 800. Mas os companheiros adultos disseram que era mais importante para os jovens que nunca havíamos tido trabalho, que trabalhássemos pela primeira vez. Que esta era nossa luta por trabalho genuíno. Assim se votou. Nós depois votamos desdobrar os postos de trabalho e se criaram 20.

Natalio: Hoje somos 470 trabalhadores, incluindo enfermagem, médicos, advogados, dentre outros. A segurança e enfermaria eram para nós muito importantes porque na época da patronal havia uma média de 95 acidentes e um deles por ano era mortal. Hoje praticamente quase não há acidentes, salvo casos menores. Não há acidentes porque se trabalha sem a pressão da exploração dos patrões e os ritmos de trabalho esgotantes.

JPO: É toda uma experiência, colocar em marcha uma fábrica sob controle operário...

Carlos: Sim, é demonstrar em pequeno as potencialidades da classe operária quando se decide a lutar, quando adota um programa correto e busca a unidade com a população. Na fábrica, ao mesmo tempo em que organizamos e debatemos as questões da produção, damos uma luta para que não se separe do debate político. Nas reuniões de coordenadores defendemos que os dois aspectos não podem se separar. A produção e a política são os dois pés sobre os quais nos apoiamos e para caminhar temos que mover os dois, devem ir juntos.

Raúl: Desde este ponto de vista, Zanon é uma fábrica distinta que destina uma porcentagem da produção para tarefas comunitárias como escolas e hospitais, se abrem os portões para fazer festivais culturais e musicais com jovens dos bairros pobres e da universidade. Temos visitas permanentes de escolas primárias e secundárias, inclusive de crianças da pré-escola. Toda esta atividade social se liga a outra questão que é, talvez, a mais importante. O que nós chamamos um sindicato militante. É a solidariedade de classe efetiva nas lutas mais importantes de todo o país.

Natalio: Assim viajamos por todas as províncias, desde Salta ao Norte até Santa Cruz ao Sul, apoiando as lutas mais duras de nossa classe, estabelecendo relações com novos setores para além dos sindicatos nos quais estão organizados os companheiros trabalhadores. Onde há um trabalhador em luta há mais um aliado.

Alejandra: Por isso há anos buscamos a coordenação nacional. Fizemos encontros de fábricas ocupadas, encontros de coordenação nacional, lançamos um jornal militante da classe trabalhadora que se chama Nuestra Lucha [Nossa Luta].

Carlos: Como parte de toda esta militância operária fazemos também fundo de greve permanente para apoiar concretamente as lutas que são isoladas pela burocracia. Por exemplo, com a luta do Hospital Garrahan, que foi atacada pelo governo e pela burocracia da CTA, votamos em assembléia que cada um dos operários de Zanon doassem metade de nosso salário.

JPO: Diziam agora que também houve uma reforma dos estatutos do sindicato...

Raúl: Sim, ainda que demoramos para fazer a reforma graças aos ataques permanentes sobre a gestão operária. Herdamos os estatutos burocráticos da direção anterior. Os mesmos modelos estatutários de todos os sindicatos burocratizados. Por isso demos a batalha para deixar uma nova tradição para os sindicatos, que na Argentina foram atados ao Estado nos anos do governo de Perón. Dissemos basta aos sindicatos burocráticos e modificamos os estatutos aos princípios e à prática classista que foi adotando o sindicato. Duas questões estão detrás das definições que tomamos e pusemos no novo estatuto: a plena democracia sindical e a independência do Estado burguês.

Andrés: Transformamos em lei o método de trabalho que viemos praticando há anos, desde que se recuperou a Comissão Interna. O mandato de assembléia, a rotação e revogabilidade dos cargos, a liberdade de tendências e a livre opinião de cada trabalhador. Pusemos no novo estatuto do sindicato as regras e normas com as que nos movemos todos os dias. Mas como marxistas revolucionários sabemos que isto não resolve. Buscamos também nas experiências históricas da classe operária. Em nossas raízes, atos revolucionários como os sindicatos classistas de Córdoba nos anos setenta, ou nos estatutos da CGT peruana na qual colaborou Mariátegui.

JPO: Algo mais a acrescentar?

Raúl: Um último conceito. A experiência de Zanon é uma combinação entre a espontaneidade e a decisão dos trabalhadores da fábrica e os aportes do partido revolucionário. O controle operário em Zanon foi uma decisão pensada pelos companheiros operários. Mas foi necessária também a consciência histórica de outras experiências. E o programa do partido revolucionário não sai da mente de algum dirigente iluminado. É a acumulação da experiência de lutas, de greves e ensaios revolucionários, ganhados e perdidos por gerações e gerações da classe operária. A mim sempre me parece que há que retomar uma frase de Gramsci, na qual este diz que um partido revolucionário se mede pelo que aporta para sua classe. Neste sentido, me sinto orgulhoso do que os revolucionários do PTS aportamos ao processo de Zanon.

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