Quinta 16 de Maio de 2024

Nacional

2005: o ano do mensalão

Balanço e perspectivas para o regime em 2006

05 Feb 2006 | Apesar de ter sido também o ano da tentativa de Lula de aprovar a reforma sindical e trabalhista, nomeação de Luiz Marinho para o Ministério do Trabalho incluída, da aparição de uma figura como Severino Cavalcanti na presidência da Câmara, entre outros fatos dignos de menção, é evidente que 2005 legará para os próximos anos a imagem de ano do “mensalão”, da quebra última da “aura ética” do PT, e do aprofundamento dos elementos de crise no regime brasileiro. Devemos, então, a fim de delinear algumas perspectivas políticas para esse recém iniciado ano de 2006, partir de uma tentativa de aprofundar o balanço da crise do mensalão, uma crise que abalou o conjunto do regime burguês, golpeando duramente pilares tão importantes como o Parlamento, o Executivo (a começar pela imagem presidencial e pela própria cabeça de um “super-ministro”) e, principalmente o PT, partido a um só tempo da contenção e do governo. Desencadeada pelas denúncias de corrupção realizadas por Roberto Jefferson, então chefe de um dos partidos burgueses aliados do governo (o PTB), a crise do mensalão sacudiu de fato o país e, combinando-se com as contradições estruturais do capitalismo brasileiro, abre um cenário de incerteza para o próximo período. Nesse artigo, abusando um pouco do número de citações a fim de ilustrar o estado de ânimo dos distintos setores das classes dominantes frente ao ano que se inicia, tentaremos analisar esse conjunto de elementos.   |   comentários

A crise atual: prolongamento das contradições na base da vitória de Lula em 2002

Para aprofundar esse balanço, é preciso resgatar as contradições estruturais, partindo de um marco regional e mundial, que estiveram na base da crise do governo FHC em seu final e que levaram à própria eleição de Lula. Entre esses elementos, podemos destacar sumariamente: a) as tendências à catástrofe económica presentes em 2002, as quais Lula e Palocci conseguiram “administrar” apoiando-se brutalmente no imperialismo e investidores estrangeiros, o que por sua vez terminou de definir a política do governo como uma ultra-ortodoxia financista, num primeiro momento cantada como um “retrocesso tático” para um suposto avanço posterior em sentido desenvolvimentista, e que logo se consolidou como a única política de um governo refém dos banqueiros e do grande capital internacional; b) a desagregação da aliança das frações burguesas que constituíram o bloco hegemónico na base da “era FHC” . Durante os oito anos anteriores à posse de Lula (1994-2002), tivemos um momento ímpar na política brasileira, em que a burguesia conseguiu que surgisse em seu seio um bloco hegemónico capaz de disciplinar as demais frações, dando ao regime burguês uma estabilidade relativa bastante acima do padrão histórico, e capaz de com a ajuda fundamental do PT como partido da contenção consolidar o que já é o período democrático mais longo de nossa história republicana. Uma tal capacidade de hegemonia e relativa estabilidade, contudo, não póde sobreviver à crise do Consenso de Washington e à escalada de insatisfação popular, responsável pelos levantamentos continente afora e, de maneira distorcida, pela eleição de Lula no país; c) as contradições da luta de classes, onde as massas se cansaram da depressão de suas condições de vida sob o neoliberalismo porém devido ao papel do PT mantêm-se ainda numa atitude de ilusões na democracia burguesa e na possibilidade de mudanças por dentro do regime atual - contradições estas, porém, que cedo ou tarde tendem a saltar novamente, por mais lenta e tortuosa que pareça hoje a experiência das massas com Lula e o PT no governo federal.

A transição pactuada com a ditadura, e os limites da democracia brasileira

Ainda que não seja aqui o lugar para uma análise mais detalhada sobre as relações existentes entre os limites do regime democrático brasileiro e as condições da transição pós-ditadura, devemos enfatizar que tais relações são a chave para qualquer prognóstico quanto à política e a luta de classes no Brasil.

Tomando apenas um aspecto dessas relações, podemos dizer, por exemplo, que a Constituinte de 1988 foi uma política decisiva para consolidar o “desvio democrático” do ascenso dos anos 80, porém que à saída da mesma em 1988 não havia ainda uma estabilidade relativa do regime democrático. Apesar de contar com o apoio de quase toda a classe dominante, e do suporte dado a esta pela direção reformista hegemónica no movimento de massas, a democracia degradada que se formava então, fruto da transição pactuada a partir da auto-reforma da ditadura militar, ainda não havia terminado de consolidar-se. Ao contrário, o que se expressou na primeira eleição presidencial direta pós ditadura, em 1989, foi uma burguesia que se encontrava profundamente dividida, sem qualquer candidato orgânico capaz de unificá-la contra Lula e o PT, que simbolizavam a ameaça do ascenso proletário ainda presente. Com sua enorme quantidade de candidatos, a eleição de 89 expressou claramente que a disputa entre as frações burguesas estava completamente aberta. Daí a unificação possível apenas em torno do ultra-aventureiro Collor de Melo, o “caçador de marajás” cuja principal fortaleza era a extrema debilidade. Precisamente por não representar nenhuma fração burguesa de peso, Collor póde ser a aposta de todas as outras para frear o avanço da esquerda, valendo-se para isso da insólita figura de artista de tevê de carreira meteórica.

É preciso reconhecer que a democracia só póde estabilizar-se, anos mais tarde, com base em pelo menos três fatores fundamentais: 1) um plano imperialista ofensivo, baseado na correlação de forças extremamente desfavorável aos trabalhadores do início dos anos 90, e nas condições económicas que, com as privatizações, a abertura dos mercados aos produtos estrangeiros e a contenção da inflação possibilitaram o surgimento de um bloco de frações da burguesia e da pequena-burguesia semicolonial; 2) uma aliança interna na burguesia que se expressou no terreno partidário como o bloco PSDB-PMDB-PFL, que sustentou FHC durante quase todo o período de oito anos de governo; 3) o papel do PT como partido da contenção, especialmente após o giro decisivo à direita de 1991 e a atuação consciente para defender e salvaguardar o regime que se expressou por exemplo no “Fora Collor” .

O fundamental de tudo isso é notar que, longe de ser uma coisa natural, um período significativo de estabilidade democrática é possível no Brasil somente como algo “excepcional” e altamente débil. Ou dito de outra forma, a democracia “conquistada” no fim dos anos 80 não é um produto para toda a vida.

Que melhor expressão da estreiteza da “democracia” criada em acordo com os militares: o senhor Aldo Rebelo, que assumiu a pouquíssimo honorável missão de presidir a Câmara em benefício de estancar a crise e o sangramento político de Lula e do PT, afirmou orgulhosamente, apenas pouco meses antes das primeiras denúncias do “mensalão” : “O esgotamento do governo militar e uma delicada transição promovida pela sociedade civil arquitetaram a instauração da democracia. [...] Nem o velho se extingue por completo, nem o novo surge e prevalece sozinho. A democratização de 85 repetiu o mesmo processo de composição de forças que permitiu nossa Independência, a abolição da escravatura, a construção da República e o período inovador introduzido pela Revolução de 30” (“Duas décadas de democracia” , FSP 15/03/05). Fiel à sua tradição frente-populista, e levando-a ao limite do absurdo, o líder do PCdoB comemora o método da conciliação, historicamente responsável pelo atraso da sociedade brasileira, como se fosse uma particularidade cultural do país à qual devêssemos todos nos submeter.

É evidente que, com tal visão, o stalinismo brasileiro só poderia embelezar enormemente os setores da burguesia que arquitetaram a transição. É assim que prossegue ele, no mesmo artigo: “Ao presidente José Sarney, regente da amplíssima coligação da Aliança Liberal, deve ser creditado o feito de conduzir a transição num mar revolto. Desde logo o vice-presidente mostrou que compreendia como poucos a necessidade de dar seqüência às soluções negociadas, característica principal da sociedade brasileira. [...] De José Sarney, diga-se que foi o pára-raios da transição democrática, como Rui Barbosa o foi da República, segundo Quintino Bocaiúva” . Com essas descaradas palavras se expressa Aldo Rebelo; porém ao fazer sua apologia à conciliação, o atual presidente da Câmara tem o mérito de retratar um lado da transição que grande parte da esquerda tenta ocultar.

Vejamos o que dizia, no mesmo dia e na mesmíssima página de jornal, o “liberal” Jorge Bornhausen (PFL), saudando “a saída do país, sem sangue, ódio e vingança, para liquidar o regime de 1964 e substituí-lo por uma nova ordem, verdadeiramente democrática, que abrigasse, sem exceção, todas as tendências, ideologias, partidos e organizações que se dispusessem ao jogo civilizado da política. [...] Passados 20 anos, tudo parece ter sido um passeio no parque, mas foi um processo que exigiu inteligência, malícia e coragem” (“Vinte anos depois” , FSP 15/03/05).

E ainda, no mesmo artigo: “A campanha pelas Diretas-Já, a um só tempo conspiração de bastidores e movimento de rua, tornou-se o estuário em que todas as águas, à esquerda e à direita, foram se jogando, confiantes e esperançosas. [...] A arquitetura da Nova República seguiu linhas de profunda sabedoria. Regra nº 1: não excluiu ninguém. Neste país nunca um movimento político assumiu tal abrangência. E os comunistas de linha albanesa, stalinistas depois de Stálin, maoístas além de Mao? -perguntava-se. Tancredo os ouviu e deu-lhes garantias. E os generais que fizeram sua ascensão aos mais altos comandos durante o regime de 1964? Tancredo os ouviu e deu-lhes garantias” .

Bornhausen, esse porta-voz indiscutível da reação, afirma em tom triunfal que “todas as águas, à esquerda e à direita” se jogaram “confiantes e esperançosas” na campanha pelas Diretas-Já. O mesmo processo ao qual os principais dirigentes e intelectuais da esquerda consideraram uma conquista histórica do povo brasileiro, e alguns inclusive tiveram a cara-dura de denominar uma “revolução democrática” , é para o arqui-reacionário Bornhausen uma “arquitetura de profunda sabedoria” , uma manobra que “exigiu inteligência, malícia e coragem” . - Ai, proletariado brasileiro, que ainda te faltam dirigentes com coragem, sabedoria e malícia à altura da sua tarefa, para esmagar os mandarins do atraso brasileiro e sua sábia fanfarronice.

Uma ”˜crise orgânica”™ latente

Porém para que retomar todos esses elementos? É que, para nós, o momento político vivido pelo país só pode ser verdadeiramente entendido se olharmos -por assim dizer- “por baixo” do regime, se focarmos seus alicerces, o estado geral de seus pilares, do material de que é feito. Olhando aí é que podemos entender já não apenas o alcance da crise atual em si mesma, mas principalmente suas raízes mais profundas, que projetam as perspectivas para a luta de classes nos próximos anos, independente do desenlace momentâneo mais ou menos frustrante que possa vir a ter no plano imediato.

A categoria marxista de “crise orgânica latente” pode ser muito útil para dar conta da enorme deterioração do conjunto dos elementos que enumeramos como fundamentais para a estabilidade do regime. Ou seja, se a própria eleição de Lula significou um marco importante nessa deterioração, a crise de 2005, apesar de sua contenção através de um esforço combinado de governo e oposição burguesa (com o apoio imperialista), coloca para 2006 uma combinação de fatores que pode dar lugar a cenários de importantes fenómenos políticos e da luta de classes, na medida em que a polarização inevitável das eleições se combinará com um regime golpeado frente às massas e a “opinião pública” , apesar da capacidade que teve de se restabilizar após o auge da crise no ano passado.

Nesse marco é que podemos aproximar uma explicação marxista para a crise do “mensalão” . Se um analista ressaltou o elemento insólito do fenómeno, de que o partido pretensamente de esquerda suborne os partidos da classe dominante para votarem leis contra os trabalhadores; consideramos necessário avançar em compreender a “racionalidade histórica” por trás do insólito da situação: é que, frente à transição entre FHC e Lula, a fração da burguesia que se manteve economicamente dominante foi essencialmente a mesma (com movimentações internas secundárias) apesar de ter-se visto deslocada politicamente, ao mesmo tempo em que outras subiram ao poder como aliadas de Lula porém não ganharam nenhuma conquista económica importante.

Isso levou a uma situação duplamente contraditória: por um lado, a fração burguesa (em associação com o capital imperialista) economicamente dominante já não possui hegemonia política e social; por outro lado, as frações menores que se aliaram a Lula foram logradas em sua aspiração à proeminência política, incapazes de desenvolver uma nova hegemonia social e permaneceram subordinadas do ponto de vista económico.

O segundo lado dessa contradição é responsável pela situação em que a própria base do governo não tinha razão suficiente para votar com ele senão em troca de uma quantia recebida mensalmente, isto é, de acordo com o esquema do mensalão - corrupção em lugar de consenso, essa inegável mostra do apodrecimento interno dos regimes políticos. Nenhum exemplo poderia ser mais claro para ilustrar isso do que a trajetória do ilustre senhor Valdemar Costa Neto, presidente do Partido Liberal, durante o governo Lula. Posando de desenvolvimentista, foi uma das primeiras vozes da burguesia a se levantar contra a famigerada política económica. Bradou em horário nobre já em 2003 contra as taxas de juros abusivas, postou-se como representante da indústria nacional e até dos interesses do povo pobre. Que melhor ilustração da impotência e da velhacaria da burguesia “nacional” brasileira que um Valdemar Costa Neto: terminou, apanhado em flagrante, suando em bicas diante da opinião pública, com um discurso de renúncia envergonhado, tratando de salvar a própria pele e evitar a cassação, enquanto era abandonado pelo vice José Alencar, que oportunamente se voltava para o recém construído partido da Igreja Universal.

Do desenvolvimento do primeiro lado da contradição dependem processos ainda maiores de desgaste, ruptura e mudança na situação política e na luta de classes no país.

Do mesmo modo, esta relação entre os escândalos de corrupção e os sinais mais profundos de esgotamento do regime (o que de nenhum modo significa que ele vá estalar amanhã ou depois, necessariamente) constitui o nó da questão. Daí a preocupação de Bornhausen e cia. de se adiantar e dizer, “não, a crise não é institucional, é só do PT e do governo Lula” , etc.

O mesmo ponto de vista também possui eco em setores da intelectualidade acadêmica. A professora da USP especialista na transição dos anos 80, Maria Hermínia Tavares de Almeida é exemplo disso, quando tenta fazer acreditar na solidez das instituições do regime, “Afirmei que a crise era política -deste governo e de seu partido-, e não institucional. Argumentei que o tipo de presidencialismo brasileiro, por requerer coalizões para garantir maioria no Congresso, é um arranjo institucional complexo, que demanda competência política, capacidade de coordenação e negociação, o que falta ao governo atual e ao PT” . Ou seja, o regime estaria em ótimo estado de saúde, e faltaria apenas “competência” e “capacidade” para administrá-lo. Alguém acredita?

As perspectivas para a economia

Tornou-se um lugar comum afirmar que o que segurou o governo em meio a crise foi a estabilidade da economia. O próprio governo atuou decididamente para mostrar a política económica como o pilar de toda a administração, e sempre que se encontrou “contra as cordas” , apelou para esse elemento de sustentação. É que, por mais que uma virtual unanimidade em torno dessa questão tenha se limitado aos primeiros meses de governo (quando o principal para a burguesia era “acalmar os mercados” ), a manutenção sob Lula do mesmo “pacto neoliberal” que existiu sob FHC conferiu a sua política económica uma verdadeira blindagem, a despeito das críticas cada vez mais sonoras vindas de setores subordinados da própria burguesia. No entanto, sinais importantes de mudança começaram a ocorrer também nesse terreno.

No final do ano passado, para surpresa de quase todos os analistas e principalmente do governo, a taxa de crescimento no terceiro semestre de 2005 se mostrou ainda menor do que as expectativas, chegando a uma queda de 1,2%. A previsão de crescimento para o ano que se encerrou despencaram de quase 4% para não mais do que 2,5%. Em São Paulo, os editorialistas da Folha e do Estado parecem não esgotar a capacidade de repetir como papagaios “pífio, pífio, pífio” . Ainda assim a economia não avança, e nem por isso se esconde melhor a mediocridade do debate aberto entre os economistas.

A fração hegemónica do ponto de vista económico, ou dito de outra forma, os maiores beneficiários da política económica não são desconhecidos de ninguém - enquanto os bancos em geral obtêm lucros exorbitantes, Bradesco e Itaú batem recordes históricos de lucros, e um Roberto Setúbal (presidente do Itaú) afirma: “a política económica tem provado que funciona. Quando olho os resultados do BC este ano, eles acertaram muito mais do que eu imaginava” . Literalmente, os banqueiros estão rindo à toa.

Por outro lado, apesar do enorme “coro dos descontentes” com a política económica de Lula-Palocci, há importante diferenças entre eles, coisa que vem sendo chave para impedir que termine de se armar um bloco coeso entre as frações burguesas opositoras contra Lula. É que, partindo dos três eixos principais de tal política económica, as críticas e os interesses dos distintos setores se dividem entre: a) os setores que reivindicam um queda das taxas de juros. Essa é a principal fonte de crítica ao governo do ponto de vista económico, abarcando desde o vice presidente José Alencar e a Fiesp, até a CUT, a Força Sindical e demais centrais, e engloba todos os que aspiram a uma política de menor margem de lucro para os especuladores e financistas e maior investimento privado estimulado por um diferencial de lucro no setor produtivo e de serviços; b) a crítica à política de elevado superávit primário (que atualmente é de pelo menos 4,5% do PIB). Esse elemento divide muitos dos que se unem no ponto anterior. Por exemplo, o ex-ministro da economia da ditadura Delfim Netto é um ardente crítico das altas taxas de juros, em benefício da indústria nacional, porém se opõe a reduzir o superávit, chegando inclusive a defender uma nova elevação do mesmo para nada menos que 5,6% (!) do PIB. A centro-esquerda e um parte dos setores mais desenvolvimentistas, ao contrário, querem o fim do sistema de metas acordado com o FMI, ou pelo menos uma grande flexibilização do mesmo, para garantir maior investimento público em setores como saúde e educação, além de gastos em infra-estrutura e investimento estatal nas empresas nacionais; c) o terceiro problema é o câmbio, com a super-valorização existente hoje do real frente ao dólar. Aqui os principais reclamantes são os setores exportadores, principalmente ligados ao “agronegócio” e a commodities como o aço, apesar de serem os mesmos que vêm de alcançar recordes de lucros em 2005.

Entretanto, o elemento chave é que não apenas estes distintos setores estão impedidos de fazer uma frente contra o governo, como inclusive há expressões de cada um deles tanto na base governista como na oposição. Ainda mais importante, entre todos há um grande ponto de acordo geral que é o atrelamento ao imperialismo e a elevação a fundamento sagrado da economia o respeito aos contratos internacionais, o pagamento da dívida, a lei de responsabilidade fiscal, etc. Ou seja, ao contrário de países como a Argentina, onde o governo Kirchner se apóia na crise económica e social de 2001 para forjar um novo pacto e levar o país a taxas de crescimento de 8% a 9% ao ano; ao contrário, precisamente, no Brasil a hegemonia do imperialismo não enfrentou um questionamento massivo devido à capacidade de contenção que teve a burguesia (com a inestimável ajuda do PT) para afastar o elemento económico catastrófico que se seguiu à crise do Consenso de Washington na região. Isso levou ao resultado de que o Brasil não tem participado do ciclo de crescimento “pós-neoliberal” que vem se dando na América Latina (à exceção do México) e nos chamados países “emergentes” da periferia capitalista.

Chegamos então à situação em que (quase) todos reclamam do pacto vigente, porém (quase) ninguém se credencia a articular e lutar para impor um novo pacto alternativo.

Daí a conclusão de que não há, nem pode haver nos marcos atuais, qualquer unidade de fundo entre a burguesia opositora sobre como combinar os elementos parciais de crítica em uma política alternativa global à atual.

É a base para a preocupação expressa no artigo de abertura do ano de FHC, publicado no Estadão: “O presidente devaneia na região onírica onde prevalece o lema ’antes de mim ninguém fez tanto quanto eu’. A oposição, entretanto, necessita ter os pés no chão e propor caminhos seguros ao povo, não apenas nomes de candidatos. Que passos dar para recuperar o tempo perdido na competição áspera com as demais nações emergentes?” (Fernando Henrique Cardoso, “2006 e o futuro do País” , OESP 01/01/06).

E não é uma preocupação menor. Para ficar apenas em um dado recente sobre a economia de nosso vizinho-concorrente mais próximo, segundo a Universidade Argentina da Empresa (UADE)“A indústria vem crescendo há quase treze semestres e de forma ininterrupta, a uma taxa média de 8%” , e “2005 começou com 7,1% de crescimento no primeiro semestre, passando em seguida a 8,4% e 8,9% no segundo e terceiro semestres, respectivamente” . (Clarín, 12/01/06). Enquanto a China cresceu 9,5%, a à ndia, 7%, e a Argentina, mais de 8% em 2005, o Brasil deve ter fechado o ano com “pífios” 2% a 2,3%.

É claro que, num cenário como esse, as principais figuras da oposição burguesa precisam, à exemplo da citação anterior de FHC, aparecer como portadores de uma alternativa para tirar o Brasil do estancamento. Porém o quanto esses discursos são vazios pode-se ver pela comparação das citações a seguir, do mesmo artigo de FHC e do “anti-fernandista” e anti-neoliberal Delfim Netto: “Os partidos e a sociedade precisam de uma plataforma mínima para os próximos 20 anos. Como ponto de partida, devem reafirmar o tripé que vem dando certo (responsabilidade fiscal, metas inflacionárias e câmbio flutuante) para em seguida buscar a redução progressiva da taxa de juros e dos impostos” . E Delfim Netto: “Estou convencido de que será possível em 2006, ano de eleições gerais, apresentar um programa comum ao governo e à oposição (...) que, inicialmente, consistiria em estabelecer um limite aos gastos de custeio estatais, para começar a mudar as coisas” (sic!).

Ou seja, frente aos frustrantes resultados da economia nacional em comparação com os “países competidores” (do ponto de vista capitalista), o debate económico entre a burguesia brasileira dá voltas e voltas em torno a acusações mútuas das mais ferozes, porém terminam ainda todos de braços dados: “Atrelamento ao imperialismo?” - Sim, senhor!; “Corte dos gastos estatais?” - Sim, senhor! “Ataque em regra às condições de vida do proletariado e do povo pobre?” - Sim, precisamente, senhor!

Os limites do regime e os temores da burguesia

A “crise orgânica latente” hoje no país se refere então a este conjunto de elementos e contradições, que fazem com que a burguesia inicie este ano de 2006 num cenário de grande incerteza, ainda sem um claro candidato próprio capaz de aglutinar apoio decisivo entre a burguesia e as classes médias e sem terminar de resolver sua relação com Lula, figura que não pode descartar porém que tampouco parece disposta a sustentar novamente.

Ao mesmo tempo, já há vozes como a de Zé Dirceu que apesar de haver perdido o mandato de deputado federal (e ter sido obrigado a buscar reconforto nos braços de um Paulo Coelho) ainda mantém parte de sua autoridade como quadro do regime burguês, e que afirma que sem uma “reforma política e administrativa ampla” as próximas eleições estarão repletas da mesma corrupção que veio a público esse ano, pois “se no Brasil é impossível fazer uma eleição de deputado sem caixa 2, imaginem uma de governador ou presidente...” (segundo entrevista concedida ao jornalista Alexandre Garcia).

Ele, Zé Dirceu, a quem a burguesia brasileira deve enormemente pela tarefa de haver integrado de vez o PT ao regime burguês, incluindo a domesticação da ala esquerda (exclusão da CS inclusa), apressa-se agora a dar sua própria receita de auto-reforma do mesmo regime apodrecido. Tudo em nome da democracia brasileira!

No mesmo sentido vai José Sarney, essa velha raposa maranhense -louvada indistintamente pelos líderes do PFL e do PCdoB, lembremos disso!- quando afirma: “Está passando ao largo do escândalo a total falência do sistema político que produziu recursos humanos com os comportamentos revelados pelas CPIs. [...] É impossível não associar o nosso atraso ao caos político nacional, submetido às maiorias ocasionais, à falência programática e ao baixo desempenho das representações políticas [...] A Constituição de 88 juntou o pior do parlamentarismo e do presidencialismo. Vamos limpá-la desse dilema que deu nesse monstro que se tornou necessário: as medidas provisórias. Mas, sinceramente, estou ficando cético. A reforma política não virá senão no bojo de uma catástrofe. Só que acham pouco o terremoto atual para ensejar reconstrução” (“O terremoto que não valeu” , FSP 16/12/05).

“Sinceramente” , ele está ficando cético... Difícil crer na sinceridade de homem da sua estirpe, porém ainda assim seu lamento público parece indicar algo, quando diz “só que acham pouco o terremoto atual” . Sarney afirma que o problema do regime brasileiro é um problema genético, pois “combinou o pior do presidencialismo e o pior do parlamentarismo” (eufemismo para o mal acabado amálgama de interesses costurado em 1988), e adverte contra o pior. Citações como essa poderiam ser reproduzidas de maneira quase inesgotável, tanto se repetem no dia a dia da imprensa burguesa. O importante aqui é, sem transformá-las em uma tendência absoluta, compreendê-las como expressões importantes do processo de esgotamento do regime tal como é hoje, pelo menos em um sentido histórico.

No mesmo sentido é que apareceram, já nas últimas semanas do ano passado, as pesquisas de opinião dando a liderança na corrida para o governo de São Paulo a Orestes Quércia (esse bizarro remanescente dos velhos caciques regionais da burguesia, considerado por muitos como um verdadeiro cadáver ambulante da política brasileira), e o temor de muitos analistas de que isso seja um mostra do brutal vazio político que se está gerando, sempre propenso a ser utilizado pelos “aventureiros” e “populistas” .

O estado de ânimo com que setores “esclarecidos” da burguesia aguardam as eleições (esse distorcido e ao mesmo tempo inegável modo de expressão política das massas) pode ser deduzido das reações expressas na imprensa em seguida às pesquisas que apontaram Quércia em primeiro. A Folha, por exemplo, dedicou sua página de editoriais ao tema: Vinícius Torres Freire afirmou sobre o caso, de São Paulo, “Tão longe da votação de outubro, Orestes Quércia pode ser um aviso, mais que uma candidatura. O povo de São Paulo manda avisar que quer ver coisas novas no páreo eleitoral, mesmo que seja papelão reciclado. [...] Votaram em Lula, mas o tucanismo de fundo e os liberalóides de fancaria continuam a mandar, com os efeitos visíveis. O povo não tem idéia do teor dessas políticas, mas delas têm uma experiência epidérmica: sentem-nas no couro. Junte-se o fastio com a bandalha política e o páreo parece se abrir para novidades e cacarecos” (FSP 19/12/05). E no mesmo dia, de Brasília, escrevia Fernando Rodrigues: “Há um perigoso vácuo de nomes nas duas principais disputas eleitorais de 2006. [...] desde o retorno do país à democracia, nunca foi tão grande o deserto de nomes a menos de um ano da eleição [...] o vácuo político está à disposição para aventureiros prosperarem. É, de longe, o pior cenário para o Brasil” . Fernando Rodrigues, “Vácuo de nomes” FSP 19/12/05.

Poucas semanas mais tarde, em sua primeira coluna do novo ano, Elio Gaspari avançou no mesmo sentido, claramente preocupado com o estado de saúde do regime: “Voto nulo. É aí que mora o perigo de 2006. Depois do massacre do "mensalão", das arcas delúbias e das pizzas, o eleitor nutre um desejo secreto de chutar o pau da barraca no dia 1º de outubro. Vai à urna, anula o voto, faz uma careta e usufrui o que sobrar do domingo da desforra. [...] Ao contrário do que pode parecer, voto nulo é coisa muito séria” (“Voto nulo é coisa séria” , FSP 01/01/06).

Por mais que a burguesia tente concentrar a crise no PT, e que seus representantes mais furiosamente reacionários como a revista Veja tentem atribuir ao suposto “modelo bolchevique” do PT, ou à ligação do PT com Fidel Castro, ou à tendência autoritária (ou “totalitária” , até) do Campo Majoritário petista expressa na figura de Zé Dirceu, etc, etc - por mais que os políticos burgueses como os ACM e os Bornhausen uivem, por mais que os repórteres e os analistas a serviço da classe dominante reproduzam e amplifiquem seu ganido - simplesmente não há como escapar da verdade elementar de que foram as entranhas da política brasileira que saltaram durante a chamada “crise do mensalão” .

Aliás, para entender o estado de ânimo de amplos setores da burguesia, o mais correto seria dizer que se trata de uma disjuntiva. Por um lado há júbilo pelos fortíssimos golpes desferidos no PT; por outro preocupação pelo quanto isso abala o regime de conjunto, inclusive o necessário papel de contenção das massas do próprio PT. Finalizando essa parte, permita-se ainda mais uma citação, dessa vez de Pedro Malan, que combina esses dois elementos em uma frase:“Em outras palavras, pode haver algo de positivo em ilusões perdidas, se o resultado for a busca mais realista e informada de novos avanços, e não o desencanto, o cinismo ou a aceitação de novas ilusões e seus mercadores” (OESP 08/01/06).

Na origem da crise: uma revanche do regime contra o PT

Assim como diversas vezes na história, de tanto curvar-se ao regime da burguesia decadente, Lula e o PT foram punidos por este. O espírito de revanche da burguesia reacionária do país assume as vestes da fábula do lobo e o cordeiro. Já antes de Roberto Jefferson, movimentos nesse sentido eram visíveis: “Sim, aconteceu algo no Congresso. Mas Severino é um epifenómeno, subproduto acidental da crise do sistema de clientela e fisiologia do petismo-lulismo, que não cumpre acordos, tratora o Parlamento, manipula partidos sem medir conseqüências. Radicalizaram, deu Severino” . Vinícius Torres Freire, FSP 21/02/05.

Ajudada pela subserviência extrema do PT, a burguesia literalmente cospe no prato em que comeu. Basta lembrar o discurso que imperava na imprensa antes do surgimento dos escândalos de corrupção; a grande preocupação era então: “o PT nos salvou da catástrofe, agora como nos livramos do PT?” . E então eram páginas e páginas de alertas à “opinião pública” contra os desejos “ditatoriais” do PT, contra seu projeto para permanecer “vinte anos no poder” , etc.

E então eis que surge... Roberto Jefferson! - Suas denúncias, sua atitude teatral, sua voz de barítono desafinado. Roberto Jefferson! Com esse nome a burguesia atacou o PT!

O golpe foi tão potente que, depois de Roberto Jefferson, os partidos da burguesia se dividiram por um momento: até onde aproveitar a deixa e dar passos mais audazes para “livrar-se” de Lula e do PT? Por alguns dias era possível registrar posições opostas entre tucanos e membros do PFL. Porém durou pouco. Logo prevaleceu o instinto conservador e a malícia ardilosa mencionada anteriormente. Como colocou um analista: “O impeachment de Lula desorganizaria o controle que as elites, especialmente os grandes bancos e os interesses a eles associados, têm atualmente sobre as políticas macroeconómicas e financeiras. Esse controle foi preservado após longo e cuidadoso trabalho de cooptação de grande parte do PT e da candidatura Lula” (Paulo Nogueira Batista, FSP 28/07/05). E também Ruy Fausto, esse marxista renegado, sem perder a oportunidade de manifestar seu desprezo adquirido pela esquerda revolucionária: “As razões para que não se promova o impeachment são várias e bastante conhecidas. Não é que haja carência de fatos para lastrear uma iniciativa dessa natureza, mas, se excluirmos os desejos da minúscula extrema esquerda, ninguém quer ver Lula fora do poder até o fim de 2006. Se alguma conspiração existe no ar, é a conspiração pela sua permanência” (“Até onde vai a crise?” , FSP 04/08/05).

Ante a possibilidade de que um ataque direto a Lula pudesse polarizar o país e pór o movimento de massas na rua (o mui temido “espectro da chavização” ), e ante o custo económico eventual de semelhante manobra, à burguesia lhe pareceu melhor botar uma risada cínica na cara e adotar a tática de sangrar Lula até 2006. E com que descaramento levam à frente essa tática pode-se ver pela postura de um ACM: “não foi senão a esperança de que o país pudesse dar certo com ele que levou milhões de brasileiros a colocar o ex-metalúrgico Lula na Presidência [...] Eu, pessoalmente, estava convencido de que poderia ter dado certo. Mas, lamentavelmente, esse meu convencimento se esvaiu, perdeu força, a partir do momento em que constatei que entre a retórica da campanha e o dia-a-dia do presidente havia uma distância que o passar do tempo só fez aumentar” . “E traíram da forma mais abjeta e cruel, não só descumprindo compromissos solenemente assumidos com o país, mas, pior que isso, mergulhando-o na mais grave e vergonhosa crise moral de que se tem notícia ao longo da nossa história republicana [...] O povo jamais os perdoará” . António Carlos Magalhães, “As pesquisas comprovam” , FSP 14/12/05.

“Ele” estava convencido de que o governo Lula podia dar certo! ACM, o coronel dos coronéis, se “desiludiu” com o governo petista, pois este não cumpriu as promessas de campanha... É esse tipo de coisa que o PT e Lula obrigam os trabalhadores e o povo pobre do Brasil a ouvir (e ainda mais durante a campanha eleitoral desse ano), pois quiseram aplacar com sangue a sede insaciável do capitalismo vampiresco “realmente existente” .

Porém que importa isso, se ainda assim... Roberto Jefferson se orgulha de ter apertado a mão de Lula!

Conclusão: algumas perspectivas para 2006

O instinto de preservação do regime aponta em um sentido claro: “O risco eleitoral é isso se polarizar em torno do [ex-governador] Garotinho, que é o populismo escrachado. A direita mais inteligente, os conservadores mais inteligentes não têm interesse em ver o PT desaparecer” . Luiz Felipe Alencastro, entrevista à FSP 19/09/05.

Ao mesmo tempo, a necessidade de um novo pacto é clara, e FHC faz questão de mostrar que já a compreendeu: “Depois da transição civilizada que fiz questão de conduzir, eu esperava que o governo Lula fosse capaz de cimentar um novo entendimento entre as elites dirigentes e delas com o povo” (artigo citado, OESP 01/01/06).

É por isso que, apesar do consenso ainda existente entre a grande maioria das classes dominantes acerca da estabilidade política e económica do país, devemos estar atentos para a possibilidade de que 2006 seja um ano de surpresas no cenário político nacional.

A questão poderia ser colocada como segue: o elemento de incerteza pairando no ar, irá se plasmar na forma de um setor burguês mais amplo em busca de uma saída alternativa à “polarização” PT-PSDB? Caso contrário, poderá algum setor oriundo dessas duas siglas tentar antecipar-se a esse processo e adotar, ele mesmo, um plano “mudancista-conservador” ? Ou o conservadorismo da burguesia brasileira bloqueará ambas as alternativas, deixando essa lacuna aberta para ser preenchida por alternativas ligadas ao movimento de massas?

E do ponto de vista das massas: a enorme pressão dada pelo ano eleitoral, e pelo próprio espaço criado hoje à esquerda - tanto pela direitização do PT como pela extrema debilidade das alternativas burguesas por fora do eixo PT-PSDB - levará a uma maior adaptação das principais direções da esquerda ao regime burguês, com o PSOL de Heloísa Helena rumando à centro-esquerda e o PSTU combinando sindicalismo rasteiro e “vista grossa” para não ficar isolado? Ou os setores mais avançados da classe trabalhadora e da juventude poderão abrir um caminho novo, e assim exercer uma pressão revolucionária sobre ambos (ou pelo menos um dos dois) no sentido de uma política operária independente?

Os marxistas revolucionários devemos acompanhar apaixonadamente os próximos desenvolvimentos da situação nacional, conscientes da enorme magnitude dos fenómenos políticos e da luta de classes que se estão incubando por trás da estabilidade aparente.

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