Domingo 5 de Maio de 2024

Internacional

As novas Jornadas Revolucionárias de Junho

15 Jun 2005 | Durante um mês, a Bolívia se viu envolvida por um gigantesco processo de mobilização de massas, que levou à queda do Presidente Mesa e frustrou a tentativa da direita de tornar Vaca Díez presidente em Sucre, tudo em meio a uma aguda crise política e duras lutas nas alturas do regime burguês. Foi uma nova erupção da luta de classes, comparável ao levante insurrecional de Outubro de 2003, com o qual se abriu um processo revolucionário que, como demonstraram estes novos acontecimentos, está longe de ser detido. Agora, com o novo Governo de Eduardo Rodríguez tenta-se organizar um “desvio eleitoral” apoiando-se na desmobilização e na trégua que Evo Morales e outros dirigentes têm imposto. Porém, muitos trabalhadores, camponeses e jovens sentem que não devem “baixar a guarda” e alguns se perguntam “o que faltou para vencer?”. Esta pergunta é chave para preparar-se para novos combates, contra o governo e as armadilhas eleitorais que pretende tecer, pela nacionalização do gás e o conjunto das reivindicações operárias, camponesas, originárias e do povo pobre, enfim, para impor uma saída operária e camponesa à crise nacional. Nestas notas, expondo um desenvolvimento dos acontecimentos desde um ponto de vista marxista, queremos contribuir para um debate essencial entre a vanguarda operária e popular, não apenas na Bolívia, mas a nível internacional.   |   comentários

Um grande levante de massas

A força da mobilização de massas foi comparável em muitos aspectos à desenvolvida em outubro de 2003. El Alto foi novamente o epicentro, com a paralisação “cívico-trabalhista” de quase um mês, convocada pela FEJUVE (Federação de Juntas de vizinhos) e pela COR (Central Operária Regional), apoiada na ampla organização da base - juntas de vizinhos, associações e sindicatos -. As juntas de vizinhos asseguraram uma firme disciplina e um extraordinário nível de mobilização, como se viu no gigantesco Cabildo Abierto1 de 6/06, onde confluíram com milhares e milhares de cooperativistas e trabalhadores mineiros, professores urbanos e rurais, vizinhos dos bairros populares de La Paz, camponeses e cocaleiros vindos de diversas regiões.

Ademais, as mobilizações se estenderam gradualmente a nível nacional, em cidades como Cochabamba, Oruro, Potosí e Sucre, enquanto os bloqueios camponeses, indígenas, de professores e de mineiros chegavam a mais de 100, paralisando as estradas principais e sitiando as cidades mais importantes, inclusive Santa Cruz, quartel central da reação. Este último Estado viu crescer o protesto dos trabalhadores, camponeses e indígenas com paralisações e bloqueios como em San Julián, Yapacani ou Camiri.

A radicalização nos métodos de luta se estendeu também às consignas, a partir da demanda de nacionalização do gás que ultrapassou os 50% de taxação que levantava o MAS, que tampouco póde evitar que à exigencia de Assembléia Constituinte se somassem a de que se fosse Mesa e se fechasse o Congresso, expressões do grande repúdio popular ao regime e suas expressões políticas tradicionais.

A cautela do governo em reprimir, temeroso de que um massacre servisse de detonante de uma insurreição, como em Outubro de 2003, não impediu que desde o dia 6 se multiplicassem os choques entre setores de vanguarda e a policia que guardava a Praça Murillo e o centro de La Paz Enquanto em El Alto se generalizavam as barricadas e vigílias noturnas, as manifestações “desciam” portando paus, pedras etc.; os camponeses, com seus estilingues e chicotes; os mineiros e cooperativistas, bananas de dinamite cuja explosão se multiplicou por milhares nas marchas e enfrentamentos. Como mostrou Sucre, a dinâmica conduziria cedo ou tarde a enfrentamentos superiores entre as massas e as forças estatais.

Porém, um elemento fundamental para compreender o nível atingido pela mobilização é o surgimento, de fato, de um embrionário poder dual, territorial, disperso, não organizado nem centralizado, ao calor da própria mobilização e que organizações de base, como as juntas de vizinhos, refletiam. Isto era evidente em El Alto, onde nem as ambulâncias podiam circular sem autorização, mas também em zonas camponesas do Altiplano. A força das massas paralisando os poderes públicos, deixando o Governo sem força para impor decisão alguma, colocavam o problema do poder de maneira aguda. A popularização da consigna de Assembléia Popular que alguns dirigentes nacionais tomaram a partir do Cabildo Abierto do dia 6 respondia a esta dinâmica. A pergunta de quem tem que governar o país emergia da própria situação e em algumas camadas de vanguarda apareciam consignas por um “governo operário e camponês” .

A queda de Mesa e a crise revolucionária

Neste marco, a queda do governo, agonizante desde as convulsões de março, posto em xeque pelas massas mobilizadas e que já não podia acalmar a direita burguesa, se tornou inevitável. A renúncia presidencial não conseguiu desmobilizar, e tampouco póde por fim às lutas intestinas no regime. O parlamento que devia tratar a sucessão se viu também paralisado e fraturado. A crise política e estatal chegou ao extremo, com um virtual “vazio de governo” e o Congresso paralisado, enquanto que a pressão da direita autonomista de Santa Cruz gerava elementos de descomposição estatal. Tudo isto gerava um impasse burguês que as massas podiam aproveitar para desferir um golpe decisivo a toda a estrutura política e institucional e abrir as portas a uma etapa de luta aberta, direta, pelo poder. Desta maneira, se abria a possibilidade de completar a tarefa inconclusa em Outubro: a demolição do velho regime da “democracia para os ricos” , suas reacionárias instituições, como o próprio Parlamento, e seus partidos. O momento reunia todas as características de uma crise revolucionária, porém, isto não podia prolongar-se mais que uns dias. Ou as massas avançavam para o poder, ou seria a burguesia quem começaria a impor sua própria saída política.

A conspiração em Sucre

A transferência das sessões parlamentares para Sucre (capital formal da República) com o argumento de que a situação “impedia se reunir em La Paz” foi a cobertura para organizar uma verdadeira conspiração com o fim de levar Hormando Vaca Díez à Presidência, ou seja, conseguir um reagrupamento político de toda a direita burguesa para impor sua própria política e enfrentar o movimento de massas. Entretanto, as Forças Armadas ativaram um dispositivo militar com 14.000 homens em La Paz e Santa Cruz. Esta tentativa bonapartizante foi vista como o que era, uma declaração de guerra, pelo movimento de massas que se lançou em pé de luta com ainda maior determinação. No dia 9, ainda antes que pudesse se reunir o Congresso, milhares de camponeses, cooperativistas mineiros e trabalhadores de diversos setores chegavam a Sucre e literalmente sitiavam o centro da cidade. Os primeiros enfrentamentos, com a morte de um cooperativista e vários feridos mostraram que impor Vaca Díez significava enfrentar o movimento de massas insurreto arriscando-se à explosão de uma guerra civil. A direita teve que resignar seu plano original e aceitar a passagem da presidência a Rodríguez, a fórmula defendida por Evo Morales e Carlos Mesa, que ainda que postergasse os planos mais ambiciosos da direita, a protegia do movimento de massas e deixou em suas mãos todas as posições políticas fundamentais, como no Congresso. Uma vez mais, um débil compromisso político permitiria postergar as tendências a um enfrentamento cada vez mais aberto entre a revolução e a contra-revolução que tomavam corpo sob o véu de uma democracia burguesa em “curto-circuito” .

Evo Morales, o salvador

Se a solução de Sucre póde prosperar é em grande medida responsabilidade de Evo Morales e do MAS, que desde a renúncia de Mesa propuseram a “sucessão constitucional” através de Eduardo Rodríguez, Presidente da Corte Suprema de Justiça (saída na qual também apostaram Mesa e os Prefeitos de La Paz, Del Granado e de El Alto, “Pepeluto” Paredes e todo o centro reformista burguês). Apesar do rechaço de amplos setores de massas ao regime, do grito de que se fosse Mesa e se fechasse o Parlamento, o MAS legitimou o Congresso e a própria continuidade de Vaca Díez e Cossío, aceitou postergar de fato sua própria demanda de Constituinte e chamou a desmobilizar declarando uma trégua política para permitir o estabelecimento do novo governo.

O MAS, ainda mais claramente que em Outubro, se colocou firmemente a serviço de salvar as instituições desta putrefata “democracia para os ricos” quando as massas mobilizadas se orientavam a aplicar-lhe um golpe decisivo, permitindo a “continuidade institucional” e reafirmando-se como “pata esquerda” do regime. Consumou assim uma grande traição política ao movimento de massas, reafirmando-se como o partido para conter as tendências mais revolucionárias das massas nos marcos de sua estratégia de “reformas democráticas” e conciliação com a burguesia para “defender a democracia” .

Rodríguez

“Preservar o sistema democrático, conduzir um processo eleitoral” a curto prazo é a tarefa que marca o novo presidente. Rodríguez encabeça um “governo tampão” , um governo reacionário e pró-imperialista até os ossos, porém, muito débil, dependente do Congresso - que apesar de seu descrédito e debilidade será o centro das decisões políticas nestes meses - e destinado a administrar a crise política e encaminhar tudo a eleições adiantadas. A qual não é uma tarefa simples, pois há abertas varias frentes: a primeira é a do próprio movimento de massas, apesar da trégua concedida pelo MAS e outras direções que avalizaram a nova “sucessão constitucional” não tem expectativas em um governo que por sua origem, seus discursos e até em seus gestos, aparece como parte do velho regime com seus partidos, outra frente não menor são as disputas na classe dominante que travam ainda a saída política e a adoção de decisões no parlamento.

Rodríguez é tão ilegítimo como o Parlamento que o nomeou, ainda que a falta de apoio social tenha os dois “fatores de poder” como os “cívicos” de Santa Cruz, o empresariado, a Igreja e as Embaixadas “amigas” dos EUA, do Brasil e da Argentina.

Rodríguez era a cabeça do poder mais reacionário, a justiça, que até hoje mantém a mais completa impunidade para Sanchez de Losada, seus ministros e os militares e policiais assassinos de Fevereiro e Outubro. Em seu gabinete de ministros sentam-se figurões das petroleiras, como Jaime Dunn (ministro de Hidrocarbonetos), ideólogos do neoliberalismo como o “cientista político” Jorge Lazarte (Delegado presidencial para Assuntos Políticos) e outras figuras de menor ordem ligadas à empresa privada e aos partidos tradicionais.

Um desvio eleitoral para ganhar tempo... que não termina de consolidar-se

É possível que apesar do enorme debilitamento do regime, que sofreu um novo e demolidor golpe nestas jornadas, com a ajuda do MAS e das outras direções reformistas e com a “cooperação” do imperialismo e dos governos da região, a burguesia consiga montar um desvio eleitoral para transmitir o poder a uma alternativa burguesa mais sólida e que por certo prazo amortize as tendências a uma nova irrupção revolucionária de massas. A profundidade das contradições nacionais e a experiência acumulada desde Outubro pelas massas tornam pouco provável uma estabilização duradoura. Por outro lado, postergar a Assembléia Constituinte e o referendo autonomista ao menos para o próximo ano não termina de conformar a todos os setores; enquanto que nas eleições antecipadas a burguesia terá que correr contra relógio para montar uma alternativa burguesa que feche o caminho do MAS, cuja chegada ao poder não deseja, ao menos ainda. A crise tem se amortizado porém ainda não se fecha e terá que se ver nos próximos dias e semanas até que ponto conseguem consolidar esta tentativa, e qual curso adota o movimento de massas.

O que faltou?

De imediato, uma tarefa essencial para a preparação da luta contra o novo governo e os novos combates, é tirar as lições destes acontecimentos. Neles voltam a colocar-se vários problemas que também foram centrais em Outubro.

Em primeiro lugar, faltou uma aliança operária, camponesa, originária e popular conduzida pela classe operária com uma política de independência de classe. Ainda que as poderosas tendências à unidade nas ruas fossem neste sentido, as organizações existentes não fizeram nada para consolidá-la. A burocracia sindical não fez nada para incorporar à luta as dezenas de milhares de trabalhadores de fábricas, oficinas e empresas “capitalizadas” cuja força teria terminado de girar completamente a situação a favor das massas. As distintas direções, cada uma a seu modo, apoiaram como o MAS ou capitularam à “sucessão institucional” , deixando as massas sublevadas sem uma alternativa política própria.

Em segundo lugar se necessitava uma Assembléia Popular, como expressão do poder operário e popular, oposto ao poder estatal em crise e capaz de dar sustento político e material à luta por um governo das organizações operárias, camponesas, originárias e do povo pobre que encabeçavam a mobilização, como a COB, CSUTCB, FSTMB, FEJUVE e COR altenhas etc., Junto ao desenvolvimento da Assembléia popular era e é necessário impor a mais ampla democracia operária no interior dos sindicatos e organizações existentes, e criar, desenvolver e centralizar aqueles organismos necessários como os comitês de autodefesa, abastecimento, etc. Em suma todas as formas que ajudem a que os próprios trabalhadores e camponeses tomem em suas mãos todos os problemas.

Finalmente e sobretudo, falta uma direção revolucionária à frente da COB e demais organizações de massas. Os atuais dirigentes, como os do MAS, comprometidos na “defesa da democracia” ou Jaime Solares, que apostam tudo na busca de algum militar “patriota” , são inimigos de que as massas operárias e camponesas se encaminhem para seu próprio Governo, porém, a verdade é que apenas a tomada do poder pelos trabalhadores, apoiados na mais ampla aliança operária, camponesa, originária e do povo pobre pode abrir uma perspectiva superadora do atraso, da miséria, da opressão e da entrega.

Um governo operário e camponês assim será o único que poderá garantir a nacionalização do gás, a recuperação da terra, a autodeterminação dos povos originários, a ruptura com o imperialismo e inclusive, o direito do povo trabalhador a exercer suas aspirações democráticas em uma Assembléia Constituinte revolucionária, ou seja, verdadeiramente livre e soberana.

Nestas mobilizações se destacaram milhares de dirigentes de base e lutadores combativos, com crescente influência nas juntas de vizinhos e alguns sindicatos, que não confiam nos dirigentes nacionais e estão dispostos a ir até o final na luta. Neles se incubam os primeiros elementos de uma nova direção, disposta a lutar conseqüentemente pela Assembléia Popular e pelo governo operário e camponês, isto é, à altura das tarefas que demanda a preparação de um “Outubro triunfante” .

Assim para “não rifar o movimento” como em Outubro, como dizia um companheiro altenho, contra o “partido das reformas democráticas” que encabeça Evo e contra o “partido da frente popular com os militares” que propõe Jaime Solares, é preciso colocar de pé um partido revolucionário dos trabalhadores, socialista e internacionalista.

A Liga Obrera Revolucionaria por la Cuarta Internacional (LOR-CI), é a organização irmã da LER-QI na Bolívia, e também faz parte da Fração Trotskista - Quarta Internacional

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