Segunda 29 de Abril de 2024

Cultura

Sobre o filme Peões, de Eduardo Coutinho

Apenas um “entreato”

20 Jan 2005   |   comentários

Zelinha, sentada na lateral de uma grande mesa de reuniões, onde, ao fundo, figura um par de garrafas térmicas, conta que entrou no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC no mesmo ano que Lula, 1976, ele como presidente, ela como faxineira. Depois foi “promovida” e passou a ter o “privilégio” de ser a responsável pelo café. Mais adiante em seu depoimento conta com orgulho como salvou o rolo do filme Linha de Montagem, de Renato Tapajós, um dos documentários sobre as greves citado em Peões, de ser confiscado pela polícia que havia cercado o sindicato. Diz que, se o filme tivesse se perdido, eles ficariam sem história e teriam que recomeçar tudo do zero. Ela nunca assistiu ao filme.

Essa cena do documentário Peões, de Eduardo Coutinho é emblemática. O argumento do filme é entrevistar os operários que protagonizaram as grandes greves de 1979 e 80 no ABC e que não ficaram “famosos” nem ocupam nenhum cargo no governo, e que aparecem nos documentários e fotos da época. Esse é o fio que liga todas as personagens do filme, os documentos daquele grande momento histórico, como marcas cravadas na tradição do movimento operário brasileiro. Depois, cada operário reconhece outros companheiros nas fotos e nos filmes e através de suas relações pessoais indica os caminhos para encontrá-los hoje.

Peões é também, em sua medida, um documento histórico. As grandes greves revistas por seus protagonistas anónimos, no mês em que Lula, um protagonista nada anónimo, se elegia presidente.

A reveladora câmera de Coutinho vai extraindo, um a um, depoimentos profundamente comoventes que mostram o orgulho destes operários por terem sido parte tão importante da história de sua classe, a enorme referência nos sindicatos e a confiança que depositavam, em 1979-80 e em 2002, na figura de Lula. Por isso é tão revoltante assistir a Peões junto com Entreatos, filme de João Moreira Salles lançado na mesma época, que documenta os bastidores da reta final da campanha de lula nas eleições de 2002. Enquanto Lula fala com desprezo do tempo em que era metalúrgico e de como durante décadas não se acostumou ao macacão de operário, mas em compensação ao terno e à gravata..., Seu João Chapéu, hoje taxista, conta como era bom ver a admi-ração que o filho sentia por ele quando caminhavam pelas ruas do ABC e passava um caminhão da Mercedes e o menino dizia: “Pai, naquele caminhão tem uma peça que foi o senhor que fez. Todo caminhão da Mercedes tem uma peça que foi o senhor que fez” . Depois diz que não se envergonha de dizer que é comunista e que seu sonho é morrer como comunista.

É interessante notar em alguns depoimentos uma desconfiança embrionária com relação ao Lula de 2002. Logo no início do filme, Zé Pretinho, depois de fazer algumas “considerações táticas” sobre o governo de Lula, diz: “...agora, se não gerar nada pra nóis, aí o bicho pega...” . Tê, outra personagem, depois de deixar muito claro que gostava de Lula e que iria votar nele, ressaltando as virtudes da “inteligência” e do “jogo de cintura” , conta como, na sua visão, partindo de que o projeto do PT era de não se adaptar à política convencional, é Lula quem chega à presidência, e não o PT. No depoimento de Tê fica claro também a atração que as grandes greves operárias exerciam sobre outros setores do povo oprimido. Ela conta como em 1979 ela ainda não era metalúrgica, mas que através do irmão metalúrgico, participou da greve e desde então passou a ser “metalúrgica de coração” .

Todo o orgulho de ter participado do ascenso operário do final dos anos 1970, começo dos 80, se combina contraditoriamente com elementos de baixa subjetividade nos depoimentos. Conceição conta como movia, durante o sono, os braços castigados pela tendinite, reproduzido os movimentos incessantes que fazia na linha de montagem da Volks. Em seguida, diz que agradece à empresa o fato de hoje, com sua aposentadoria, poder se sustentar e dar dois reais para o seu filho poder ir ao cinema. Que a vida é assim mesmo e que há gente que está em situação pior.

Esta frase resume a tragédia de que a consciência avançada e toda a heróica radicalização desta geração do proletariado brasileiro tenha sido canalizada, derrota após derrota, para um projeto de manutenção do capitalismo, que diz a quem tem quase nada que deve agradecer o fato de ter este quase nada e de não estar atirado à miséria em que se encontram milhões no país. De ter Lula, de terno e gravata, administrando os negócios dos capitalistas, enquanto operários valiosos como Dona Conceição, são atirados à prostração.

Mas o movimento operário, em especial na América Latina, começa a dar sinais claros de recomposição, em greves fortes, fenómenos de reorganização e inclusive em levantes como foi no caso da participação dos mineiros no levante boliviano de outubro de 2003. De alguma forma, este processo inicial e a genialidade de Coutinho se encontram num filme bom como não houve no cinema brasileiro de pelo menos duas décadas.

Não seria possível terminar esse artigo sem citar ’ contra todas as vozes que querem dizer que a classe operária é ignorante, quando não chegam ao absurdo de dizer que ela não mais existe ou de criar definições estapafúrdias para separar, como convém aos capitalistas, os operários das grandes indústrias e setores estratégicos da produção do conjunto da classe trabalhadora, como se fossem uma aristocracia nefasta ’ o depoimento que fecha o documentário. Geraldo explica, com toda a simplicidade da inteligência operária, a origem do termo peão e sua definição. O peão de fábrica é aquele que trabalha com o pé no chão, de uniforme, e que bate cartão. Coutinho pergunta se o ferramenteiro, que ganha melhor, também é peão, ao que Geraldo responde convicto que sim, dizendo que quem não é peão é o engenheiro que chega mais tarde e sai mais cedo. Simples assim. E acaso as coisas todas do mundo se fazem só com engenheiros e máquinas? E invertendo todas as regras dos documentários atira ao seu entrevistador a pergunta: “E você, Coutinho, já foi peão?” .

Peões é ainda a prova de que a tradição do movimento operário brasileiro traz consigo importantes conquistas e lições que hoje, com a experiência das massas com o governo de Lula e do PT, podem apontar solidamente para a superação positiva da defensiva em que estas estiveram durante o último período. Que, ao contrário do que argumenta Maria Rita Kehl em seu artigo publicado no site Outro Brasil de que este “é um filme de época. É o documento de um mundo que não existe mais” , e mais no sentido do que diz Zelinha, a classe trabalhadora brasileira não precisa “partir do zero” . Que os elementos deixados pela tradição desta classe constituem uma base importantíssima para que os filhos que os peões do filme se orgulham de ter deixado como herança nas grandes fábricas, junto aos milhões de operários da poderosa classe trabalhadora brasileira e no marco da recomposição inicial do movimento operário, possam fazer deste período que nos separa do ascenso, apenas um “entreato” de grandes lutas dos peões, que, ganhando a confiança de outros setores oprimidos, se choquem diretamente contra a miséria capitalista e dêem passos firmes na construção do futuro comunista.

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