Segunda 29 de Abril de 2024

Questão negra

LUTA NEGRA

A questão negra frente às jornadas de junho

24 Oct 2013   |   comentários

A questão negra esteve presente nas principais demandas levantadas pelas jornadas de junho, mesmo que não de forma direta, questionando o racismo. A maioria negra da população é a que mais sofre com a precariedade das condições do transporte, da saúde e da educação no país. Mas, então, porque o combate ao racismo não esteve diretamente entre as principais demandas que foram tomadas pelas manifestações?

Em primeiro lugar, vivemos num país em que tem um enorme peso a ideologia da chamada “democracia racial”. Essa ideologia mascara o racismo existente no país por trás do discurso de que a desigualdade social se dá independentemente da cor da pele e de que os negros hoje têm oportunidades iguais às dos brancos de ascender socialmente. Tal operação ideológica só é possível porque as classes dominantes historicamente trataram e ainda tratam de apagar a história de resistência do povo negro contra a opressão que vivem desde a escravidão (o contrário da relação “harmônica” entre a Casa Grande e a Senzala pregada por Gilberto Freire); e em base a isso “naturalizam” o fato de que os negros sempre ocuparam predominantemente os piores trabalhos do capitalismo, mais mal pagos, mais pesados e mais precários, pois os patrões utilizam o racismo como um instrumento para aumentar os níveis de exploração. Naturalizam o fato de que o Brasil é o país com maior número de empregadas domésticas do mundo, em sua esmagadora maioria mulheres negras que trabalham em condição ultra precarizada.

Em segundo lugar, temos uma esquerda que, apesar de se colocar contra o racismo, não luta para que os sindicatos defendam um programa que articule as demandas proletárias com as demandas específicas do povo negro ligado a uma estratégia para conquista-las ao calor da luta de classes. Pelo contrário, o que verificamos é a separação entre o corporativismo sindicalista que orienta as greves por um lado e por outro lado campanhas de pressão sobre o Estado por “ações afirmativas” que ficam descoladas dos processos reais de mobilização das massas.

Em terceiro lugar, a maior parte dos setores da esquerda ligados ao movimento negro que emergiu entre os fins da década de 70 e inícios da década de 80 questionando a dita “democracia racial” e colocando de pé o combate contra o racismo terminou cooptada e corrompida pelo governo de Lula, de Dilma e do PT, abandonando as bandeiras e os métodos radicais de luta que os norteavam naquele momento em prol de programas rebaixados e uma estratégia de pressão institucionalizada sobre os políticos do regime para conquistar a miséria do possível dentro dos marcos do capitalismo e das alianças em prol da chamada “governabilidade” (as quais incluem nada menos que setores reacionários como o atual presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, Marcos Feliciano). Desta forma, boa parte da esquerda e a maior parte do movimento negro organizado aplaudiram a aprovação no Congresso de um “Estatuto da Igualdade Racial” que abre mão de demandas elementares como posse das terras quilombolas; e passaram a concentrar sua militância na reivindicação das chamadas “ações afirmativas”, em especial as cotas para negros na universidade descoladas do questionamento mais de fundo da estrutura universitária do país, que, de tão elitista, mesmo com cotas mantém a esmagadora maioria dos negros excluída do ensino superior, como segue acontecendo apesar da implementação das cotas em muitas universidades já há vários anos.

Entretanto, ainda assim, a questão negra apareceu por todos os poros das jornadas de junho. Em São Paulo e em Brasília, onde a própria geografia social das cidades separa a maioria negra da população em regiões periféricas isoladas, enquanto as manifestações nas regiões centrais eram predominantemente de brancos, os atos e cortes de rua nas periferias da cidade eram em sua esmagadora maioria compostos por negros. Em Belo Horizonte, como as marchas até o Mineirão (estádio onde acontecia a Copa das Confederações) passava em meio a grandes favelas, a juventude negra que aderia às manifestações em blocos constituiu-se como linha de frente mais radicalizada e combativa nos enfrentamentos em que vimos várias vezes a cavalaria da tropa de choque ter que recuar nos vídeos que se espalharam pelo país. No Rio de Janeiro, uma cidade em que as favelas nos morros atravessam as regiões centrais, a massividade dos atos também mostrou a juventude negra na linha de frente dos enfrentamentos com a polícia.

Mas o principal tema ao redor do qual a questão negra emergiu pós-junho foi a verdadeira crise nacional que se abriu com a campanha e as manifestações de rua que se desenvolveram em função da luta da família de Amarildo por seu aparecimento com vida ou pela punição dos responsáveis por seu assassinato. Esse fato, que já havia sido antecedido por inéditas manifestações contra uma chacina na baixada fluminense no próprio mês de junho, trouxe consigo um questionamento de massas à violência policial que recai sobretudo nos negros e pobres das periferias e das favelas, chegando ao ponto de questionar as próprias Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), símbolos da “naturalização” da condição militarizada dos morros do Rio de Janeiro, “modelo” utilizado pelas classes dominantes para lidar com as contradições inerentes à pobreza crônica e estrutural do país.

Mesmo com a 4ª maior população carcerária do mundo (duplicada enquanto o PT esteve à frente do governo federal), composta majoritariamente por negros, o massacre do Carandiru em 1992 não despertou o questionamento à violência social que emergiu com a campanha pelo aparecimento de Amarildo, sendo que desde a ocupação militar do Morro do Alemão em 2010 vivenciávamos uma profunda naturalização da militarização da sociedade. Amarildo tornou-se o símbolo dos inúmeros negros, trabalhadores precários e pais de família que morrem nas favelas vitimas inocentes não só do gatilho fácil da polícia, mas também de todos os métodos de tortura e intimidação que garantem a “pax” dos cemitérios das UPPs.

Antes e depois de junho, juntamente com o questionamento da violência policial, a cor negra emergiu também através da onda de ocupações de movimentos de moradia em São Paulo e outras cidades do país, que se ligam às recorrentes explosões sociais nas periferias pelos mais distintos motivos: os descasos com os serviços públicos, as enchentes, as tentativas de desalojamento ou a própria violência policial, muitas delas ligadas às remoções a serviço das obras voltadas aos eventos e à sede de lucro capitalista frente à Copa do Mundo e das Olimpíadas.

Esse emergir da questão negra pós-junho já era antecipado pelas greves selvagens que vinham sendo protagonizadas pelos peões e peoas – em sua maioria negros e negras – da construção civil e dos serviços de limpeza em todas as regiões do país, desde os operários que viviam condições semiescravas de trabalho nas obras do PAC de Jirau, Belo Monte etc., que constituem as “meninas dos olhos” do governo Dilma, onde o BNDES subsidia as grandes construtoras que depois financiam as campanhas eleitorais do PT; até as trabalhadoras da limpeza da USP.

Por um programa e uma perspectiva estratégica que coloque a luta contra o racismo como parte inseparável da luta pelas demandas que emergiram em junho e como subproduto de junho

Ao mesmo tempo em que precisamos denunciar as migalhas que o Estado oferece como “ações afirmativas” por atingir apenas uma ínfima minoria de negros, acompanhamos a experiência dos setores do movimento negro que têm ilusões nessa perspectiva, criticando seus limites e alentando os métodos da luta de classes e da ação direta e independente do Estado e da burguesia para lutar até mesmo pelas demandas mais mínimas; combatendo as estratégias conciliadoras que aceitam restringir sempre um pouco mais as já parcas migalhas para chegar a acordos pacíficos com as elites racistas do país. As demandas mínimas específicas do movimento negro precisam se colocar no marco de direitos universais que beneficiem toda a população negra, em especial a maioria mais pobre. Na medida em que são encaradas como demandas de direitos universais que atinjam toda a população negra e não uma minoria privilegiada, as reivindicações mínimas do povo negro adquirem imediatamente um caráter mobilizador da luta de classes.

Um programa de luta contra a opressão racial deve defender o fim do trabalho precário na cidade e no campo, com a incorporação dos terceirizados, temporários e informais como parte das empresas em que trabalham (sem necessidade de concurso no caso do serviço público), com salários e direitos iguais para trabalhos iguais e um salário mínimo equivalente ao do Dieese. Frente à enchentes que todo ano assolam o país, a falta de moradias e a precariedade das moradias nas favelas, devemos lutar pela expropriação (sem indenização) dos imóveis destinados à especulação imobiliária e por um plano de obras públicas controlado pelos sindicatos que acabe com as favelas e as enchentes, dando condições de moradia digna para todos e gerando empregos, a ser financiado com o não pagamento da dívida pública e impostos progressivos aos capitalistas.

Junto à luta pela titulação das terras quilombolas e pela liberdade de culto das religiões afrodescendentes, devemos lutar pelo fim das UPPs e todas os grupos policiais especializados na repressão social, impulsionando uma campanha pela punição de todos os responsáveis pela morte dos negros e pobres como Amarildo.

Para combater o corporativismo que predomina nas categorias de trabalhadores mais organizadas e assim transformar a luta contra a opressão ao povo negro como parte das tarefas fundamentais para que a classe trabalhadora unifique suas fileiras e emerja como sujeito político independente da burguesia, esse programa deve ser defendido pelos sindicatos e organizações operárias, em primeiro lugar pelos que são dirigidos pelas correntes que se reivindicam da esquerda.

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