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Cultura

CINEMA

"Persépolis": a Revolução veste o véu

14 Mar 2008   |   comentários

Desde "Bicicletas de Belleville", não se vê um anime tão bem feito, de uma plasticidade extraordinária, desenvolvido de maneira inteligente, com um pano de fundo extremamente politizado, frente às turbulências sociais entre a guerra e a revolução. O enredo é, na verdade a autobiografia de uma iraniana chamada Marjane Satrapi, que desenha e dirige o filme com muita simplicidade e poucos recursos.

Sua história de vida se confunde com a história do Irã, que passa por uma ditadura sanguinária, pela revolução de 1979 que derruba a ditadura sanguinária do Xá Reza Pahlevi ’ que significou um duro golpe ao imperialismo norte-americano, que tinha esse ditador como um de seus principais sócios no Golfo Pérsico - e por sua traição, que culmina em uma República Islâmica, de regime teocrático, onde a mulher é tratada como um mero pertence do marido. A revolução, preconizada inicialmente pelos comunistas e pelo setor mais avançado da classe operária iraniana nunca chega a se concretizar, e quem assume o poder é a liderança religiosa, que nada tem a ver com as demandas e os interesses do povo iraniano [1]. Cai o Xá e entram os fundamentalistas, que do ponto de vista do enfrentamento com o imperialismo chega a ser progressivo, mas classe operária insurrecta é traída e brutalmente reprimida.

A história começa quando a protagonista tinha apenas nove anos. O olhar que ela lança sobre os fatos históricos que mudam o curso de sua vida permanece fiel ao imaginário de uma criança de nove anos. Os pais da pequenina Marjane são perseguidos por sua militância e seu tio é preso, o que ocorre com tanto com os mujaidines (marxistas ou não) como com os fedaiyines que ousassem discordar ou desestabilizar a nova ordem ’ tal era o nível de efervecência social, que levaria dois anos pra se concretizar tal estabilidade. Com o seu tio, Marjane aprende a ter um senso crítico frente aos valores disseminados na escola. Esse mesmo senso crítico faz com que ela passe a ser perseguida na escola, levando seus pais à conclusão de que o Irã não é mais um lugar seguro pra que sua filha. Se por um lado, as proibições cada vez mais rígidas do Estado fundamentalista, cuja "moral religiosa" traz à tona a opressão social, sobretudo, mas não apenas contra as mulheres, restringindo as liberdades democráticas conquistadas com a queda do Chá, ao passo que torna obrigatório o uso do véu a todas as mulheres, censura tudo o que vem do ocidente e desata uma severa repressão ao cidadão comum, por outro, a Guerra fratricida entre Irã e Iraque e o bombardeio de Teerã cria um clima de pânico generalizado. Ela é então despachada pra à ustria, onde se depara com um mundo o qual lhe é estranho, onde o excesso de liberdade não a impede de se sentir uma estranha no ninho. Lá ela conhece os anarquistas e suas contradições, descobre e se frustra com o amor, conhece o lado sombrio da vida, como o capitalismo selvagem, o preconceito, a intolerância, a marginalização, a fome, a vida das ruas, o estupro.

Um humor inteligente torna a história mais leve aos olhos do espectador, evocando o riso em meio a momentos sombrios. Os holofotes vislumbram o grande dilema que atravessa vida de Marjane, entre a "liberdade" artificial da democracia burguesa por um lado, e a nostalgia das origens, a família e a identidade ’ onde as liberdades são diretamente cerceadas pelo outro. Ambas as escolhas implicam na perda. Na Europa, a autora não se vê como livre, nem tão pouco idealiza o mundo ocidental. Eventualmente, a história encontra o seu fim, no aeroporto de Orly em Paris, onde a animação, quase toda em preto e branco, ganha cores para indicar o presente. Retorna-se a cena onde a história começa, com uma mulher que tenta embarcar para sua cidade natal no Irã e é barrada por não ter passaporte e nem passagem. O final emblemático sugere a angústia de um dilema que não pode ser resolvido nos parâmetros da sociedade tal como ela é, qualquer que seja o seu rumo.

Marina Ramos é estudante de Ciências Sociais da PUC-SP e militante do Movimento A Plenos Pulmões

[1Alguns elementos que explicam o paradoxo da revolução iraniana: “A debilidade política da classe operária para apontar uma alternativa para o conjunto dos oprimidos, a ausência de uma direção revolucionária em uma situação na qual os grupos de esquerda existentes, em particular o Tudeh pró-soviético, professavam a colaboração de classes e o populismo político, e a hostilidade imperialista - não o caráter "medieval" ou "irracional" de Khomeini ou o ”˜islamofascismo”™” . www.ft-ci.org.

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