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Internacional

ARGENTINA

Nem com o governo, nem com as entidades patronais "do campo"

02 Jul 2008   |   comentários

É no atual conflito entre o governo de Cristina Kirchner e as entidades patronais “do campo” , organizadas na Sociedade Rural, que a armadilha da oposição burguesa se mostra mais flagrante. Sobretudo porque no seu início tomou a forma de enfrentamentos nas ruas com paralisações patronais e piquetes, que levaram ao desabastecimento, agravando ainda mais os efeitos da alta dos alimentos, entre outras medidas que só prejudicaram os trabalhadores e o povo pobre. Assim, o impressionismo e a falta de um claro corte de classe frente aos enfrentamentos nas ruas que iniciou o conflito confundiu uma vez mais a grande parte da esquerda que chegou a caracterizá-los como “revolta popular” , e ficam atrelados a um conflito sob direção da oligárquica Sociedade Rural Argentina. Ignorando que estes tiveram como motivação o embate pelo anúncio do governo das retenções ao campo, para definir a quais setores da burguesia serão destinados os imensos lucros resultantes da renda agrária da alta internacional do preço das matérias-primas: se à patronal do campo ou aos setores industriais e outros da burguesia argentina.

O conflito entre o governo e a patronal agrária argentina já dura mais de três meses, e marca o fim da lua-de-mel entre os setores burgueses e o governo, que havia primado nos mandatos anteriores de Nestor Kirchner, abrindo uma importante crise política, agora transposta das ruas para o Congresso. Esta crise se iniciou com o pacote de medidas que o governo tentou aprovar, de aumento das retenciones, medida que desagradou os setores patronais do campo, que querem seguir acumulando a renda diferencial [1], já que as exportações agrícolas são responsáveis por 50% de todas as exportações argentinas.

O governo quer se apropriar de parte desta renda que acumula e redistribuí-los, não à classe trabalhadora e ao povo, mas a outros setores da burguesia. Assim é que as retenciones seriam utilizadas pelo governo de Cristina Kirchner para políticas como o favorecimento da patronal industrial, ou dos transportes, através do pagamento de subsídios, além do pagamento da dívida externa que favoreceria diretamente o imperialismo.

Por outro lado, a participação de setores da classe média e de pequenos proprietários agrários em paralisações e atos contra o governo não deve dar margens para confundir estas ações com manifestações populares antigovernistas por demandas democráticas, ou de trabalhadores em defesa de seus direitos e por melhoria em suas condições de vida, que como tal teriam que ser apoiadas e impulsionadas pela esquerda. Neste caso as manifestações contra o governo se dão sob o programa e a direção da patronal do campo, que conseguiu hegemonizar os produtores de menor peso, organizados na Federação Agrária [2]. A partir do PTS, organização irmã da LER-QI na Argentina assinalamos desde o início do conflito que “Dois setores patronais se enfrentam num combate pelos seus mesquinhos interesses, ameaçando os trabalhadores e o povo com o desabastecimento e outra escalada inflacionária como a de março. A Sociedade Rural que em 2001 pedia repressão para ”˜expulsar os piqueteiros das ruas”™ impulsiona os piquetes agrários para defender sua rentabilidade sem se importar com o aumento dos alimentos. Agora temos o ”˜lock out oficialista”™ dos empresários do transporte, que incentivados por Kirchner (...) mobilizaram 20 caminhões para forçar o levantamento do lock out rural e destinar as retenciones ao pagamento da dívida externa e a subsídios à patronal. A crise nacional mostra que os capitalistas utilizam as medidas de força e de ação direta para defender o seu, em detrimento da maioria popular (...)” [3].

A única conclusão possível frente a esta situação é que haveria que forjar uma terceira posição independente tanto da patronal do campo quanto do governo, que desmascarasse tanto a demagogia Kirchnerista e de seus apoiadores, como a burocracia da CGT de Hugo Mojano e dos piqueteiros oficialistas. De que haveria que controlar o lucro da Sociedade Rural, e desmascarar o cinismo da oligarquia de passar como portador dos interesses dos pequenos produtores do campo. Ficar ao lado de um dos setores burgueses enfrentados é na prática a renúncia a levantar uma política de independência de classe. Foi partindo desta premissa que em março o PTS impulsionou um importante ato contra o governo e a oposição burguesa, que contou com a presença de outras organizações da esquerda como o PO (Partido Obrero) e o MAS. Entretanto, enquanto o PTS continuou lutando por uma posição independente, o PO “passou a tentar pactuar para o 1º de Maio com o MST e o PCR, que militam no bando da patronal rural. Assim, impediu um ato na Praça de Maio com uma posição independente dos trabalhadores. (...) Apesar de se manter formalmente na ”˜terceira posição”™ (...) votou contra a declaração ”˜Nem com o governo, nem com as patronais do campo”™” [4].

Outras correntes menores também mostraram boa dose de incoerência. A Izquierda de Trabajadores (IT) ficou ao lado da Federação Agrária enquanto a Frente Obrera Socialista (FOS) da LIT defendeu uma posição de não estar nem com o campo, nem com o governo embora tenha se negado a integrar a campanha que desde o PTS viemos impulsionando. O problema é que as duas organizações integram hoje um “comitê de enlace” da LIT, apesar de não terem nenhum acordo sobre esta importante questão, o que demonstra os pés de barro desta fusão.

O combate por uma terceira posição levado à frente pelo PTS culminou na campanha “Nem com o governo, nem com as patronais do campo” que hoje já conta com mais de 500 assinaturas de apoiadores entre docentes, intelectuais, jornalistas, artistas, trabalhadores e estudantes por uma política de independência de classe.

Campanha de assinaturas

Já são mais de 500 assinaturas de intelectuais, docentes, jornalistas e trabalhadores da cultura, estudantes e trabalhadores que integram a campanha por uma terceira posição. Na declaração apresentada pela campanha, os aderentes denunciam “É falso que este governo está confrontado com ”˜os interesses económicos mais concentrados”™ (...) Ao contrário, os Kirchner os têm favorecido em seus quase cinco anos de governo. Ou o petróleo não segue nas mãos da Repsol e de um punhado de empresas mais? (..) Ou os grandes industriais hoje beneficiados com o favor oficial não foram tão golpistas quanto a oligarquia agrária? (...) Ou a terra não segue concentrada em 4.000 grandes proprietários agrários que possuem 85 milhões de hectares, pelas quais pagam impostos miseráveis? Ou 40% da produção de soja não está concentrada em 2,2% dos produtores? Ou não é um fato que cinco grandes empresas (...) concentram a quase totalidade da exportação de grãos que ultrapassam os 3 bilhões de dólares?” .

E em seguida completam “os que aderimos a esta declaração cremos que é necessário sustentar uma clara posição independente destes dois blocos capitalistas (...) Estamos pela nacionalização da grande propriedade agrária, das grandes exportadoras e dos portos privados; pelo não pagamento da dívida externa e nacionalização sob controle dos trabalhadores dos bancos e do comércio exterior. Estas medidas permitiriam acabar com a oligarquia e o espólio das multinacionais e do capital financeiro que fica com a maior parte das exportações agrárias. (...) É preciso que os trabalhadores levantem suas demandas, a começar pelas mais imediatas: aumento de emergência para todos os trabalhadores, salário mínimo equivalente ao custo de uma família, aumento automático dos salários de acordo com o aumento da inflação” .

No presente momento, a discussão sobre as retenciones se transferiu para uma negociação no interior do Congresso numa manobra do governo para fechar a crise política aberta. Dentro do parlamento burguês o governo tentará chegar a um acordo com a Sociedade Rural. Há que ver se conseguirá. Entretanto, tanto o governo como a oposição se apressaram em apresentar esta saída como a mais “democrática” . Independente de qual seja seu resultado, o certo é que em nada favorecerão os trabalhadores e o povo pobre.

Porém, a política que desde o PTS levantamos é uma pequena prova de que é possível forjar uma saída independente da classe trabalhadora, aportando para a conformação de uma nova vanguarda que possa levantar um programa e uma posição política calcada numa perspectiva classista.

[1Por renda diferencial entende-se o volume de renda recebido pelos proprietários de terras de boa qualidade, cujo cultivo necessita de menos investimento e insumos que as terras de má qualidade, mas que recebem o mesmo valor pago pelas mercadorias agrícolas produzidas em qualquer tipo de terra, já que o preço das matérias-primas é fixado internacionalmente e tem como base os custos de cultivo das piores terras. Quando há um aumento da demanda de matérias-primas os agricultores são obrigados a produzir em terras de pior qualidade, o que também pressiona os preços das matérias-primas para cima. Aos proprietários das terras de melhor qualidade acabam detendo assim um excedente, que é a renda diferencial (Para uma discussão mais aprofundada ver “Suplemento Renta y Ganancia ’ Dos formas de robo capitalista” em www.pts.org.ar)

[2Há que considerar que o campo argentino passou por uma grande reconfiguração. A Federação Agrária, associação que anteriormente agrupava os pequenos produtores e cerca de 300.000 famílias que produziam para seu consumo lançadas à beira da miséria, hoje é hegemonizada por um novo setor explorador da burguesia média e politicamente tem levantado as mesmas posições da Sociedade Rural.

[3Editorial La Verdad Obrera, 280. www.pts.org.ar

[4El centrismo tradicional del Partido Obrero, La Verdad Obrera, 280 www.pts.org.ar

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