Domingo 5 de Maio de 2024

Gênero e Sexualidade

Feminismo mastigável

06 Feb 2015 | Cresce a tendência das propagandas “feministas”. A luta passou das ruas para as mídias? Avanço ou domesticação?   |   comentários

Cresce a tendência das propagandas “feministas”. A luta passou das ruas para as mídias? Avanço ou domesticação?

Os modestos avanços em matéria de direitos (modestos por causa dos seus alcances e pela sua “evolução” absurdamente lenta) se misturam com as marcas mais cruas da sociedade patriarcal, como os feminicídios e os estupros, cujos índices não caem. Se não fosse trágico, poderíamos dizer que é irônico.

Dentro desse contexto, os meios de comunicação se transformaram em um “campo de batalha” do feminismo do lobby parlamentarista, aquele feminismo que se conforma com “alguns direitos para algumas mulheres, porque é melhor do que nada”. Colocar dessa forma pode soar duro demais, mas ao celebrar pequenas concessões, se deixa de lado, simultaneamente, as demandas urgentes e profundas da maioria da metade do mundo. Só para citar algumas temos como exemplo a super-representação feminina nos empregos precários, nas taxas de pobreza; e a diferença entre a vida e a morte que significa a penalização do aborto.

O reduto desta “batalha cultural” encontrou lugar numa tendência publicitária chamada “fempowement” (em português “empoderamento feminino”). Algumas empresas como a Dove e a Always escolheram essa estratégia para vender seus produtos, já que os estereótipos já não vendem como antes. E ainda que persistam imagens da “dona de casa” e da “mãe dedicada”, as empresas agora devem se dirigir a uma nova geração de mulheres que trabalham fora de casa, que ocupam postos de trabalho importantes, que lideram organizações e que, sobretudo, representam um importantíssimo setor do consumo.

Mas se tantas ideias feministas são visíveis nos meios de comunicação, não podemos dizer que foram superados os prejuízos machistas e as imagens sexistas? Em parte se poderia, mas é impossível separar essas “conquistas” das lutas que as mulheres vem dado durante décadas, e é ingênuo pensar que o capitalismo não se apropria, da sua própria maneira, de parte dessas ideias.

Essa apropriação não é inofensiva ou desinteressada. Se constrói uma imagem de mulher que se diferencia da dona de casa dos anos 50 (presa ao lar e à família), mas a mulher da publicidade continua sendo branca, ocidental, heterossexual e com certeza da classe média.

A diferença se dá no fato de que a antiga dona de casa comprava um forno que faria o seu marido feliz, e hoje a mulher moderna dança em um supermercado, enquanto compra o iogurte adequado e canta “no me gusta cobrar menos” (referência a um comercial de iogurte na Argentina). Essa mulher moderna também não é qualquer mulher. Nada tem a ver, por exemplo, com as trabalhadoras precarizadas que são, contraditoriamente, as principais destinatárias dos produtos para o lar, das fraldas e dos alimentos. As imagens de suas vidas continuam sendo invisíveis.

As meninas já não brincam de mãe; agora correm e jogam “como uma garota” (Always), sonham em ser cientistas (Verizon) e já não estão mais condenadas aos brinquedos cor-de-rosa (https://www.youtube.com/watch?v=9RC5A9txqSE&feature=youtu.be) . Essas meninas também não são quaisquer meninas. Não são as meninas que em todo o mundo engrossam as fileiras da pobreza, que terão seus sonhos frustrados porque não chegarão a terminar o ensino fundamental; ou as meninas que passam grandes jornadas cuidando de seus irmãos ou irmãs e realizando os trabalhos domésticos que suas mães trabalhadoras não podem fazer.

As propagandas “feministas” dizem: Ser mulher não é ruim nem inferior, ou ser mulher é muitas coisas. E essa pode ser uma mensagem “valiosa” para milhares de telespectadores, mas não combate a misoginia nem o machismo e é absolutamente insuficiente. O que tem a ver um iogurte com dois séculos de lutas femininas? Pouco e nada. Mas essa “batalha cultural”, esse feminismo de “melhor que nada” justamente acaba por tratar-se de transformar a luta e a crítica numa agenda “razoável” e aceitável para esta sociedade (que antes combatia). Fica o mais longe possível de qualquer rastro radical ou revulsivo daquelas lutas que conquistaram direitos fundamentais.

Não é um resultado lógico nem um destino inevitável. Para o feminismo da primeira onda (começo do século XX) não existia divisão entre os direitos políticos e sociais das mulheres. Isso levou as alas esquerdas do sufragismo a confluir com as lutas das trabalhadoras. Temos vários exemplos: nos Estados Unidos, as sufragistas sustentaram com seus aportes a greve das operárias têxtis de Nova Iorque em 1909; na Inglaterra, a ala radical do sufragismo rechaçou os “direitos para servir” (na Primeira Guerra Mundial) e uniu a sua luta às trabalhadoras; na Argentina, sufragistas como Julieta Lanteria colaboraram diretamente com as gráficas e lavadeiras na primeira década de 1900.

Para o feminismo da segunda onda (décadas de 1960 e 1970), a luta contra o patriarcado se unia de maneira natural ao questionamento do capitalismo, e essa não era uma visão marginal. No entanto, uma grande parte se converteu no feminismo tecnocrata, no ritmo da restauração burguesa e se acomodou nos departamentos e agências governamentais.

À medida em que esses setores abandonavam as ruas, e que a perspectiva anticapitalista (acabar com o capitalismo para conseguir acabar com o patriarcado), as classes dominantes souberam se apropriar dessas ideias e as domesticaram. Assim se trocou a emancipação pela inclusão, a tolerância pela liberdade e a liberdade feminina pelo feminismo “mastigável”. 

A ideia mais perigosa deste feminismo é aceitar o estado atual das coisas, as concessões mínimas e condicionadas, os direitos limitados apenas para algumas mulheres, e acreditar que cedendo de pouco em pouco chegará o momento em que reconhecerão todos os nossos direitos. Não é por sermos estraga prazeres, mas o patriarcado sobrevive há séculos, já se adaptou a várias novas condições e a sociedade capitalista só colaborou em perpetuar o seu domínio. Não é agora, em 2015, que ele vai começar a nos fazer favores.

A luta pelos direitos das mulheres, o combate contra o machismo, a emancipação feminina, nada disso esta fora de moda. O que é verdadeiramente anacrônico é o feminismo que se conforma e se acomoda, o feminismo mastigável.

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