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Debates

Debate com Nahuel Moreno. Extratos

09 Feb 2007 | Publicamos nesta edição do Palavra Operária extratos do artigo “De saberes revolucionários e certezas pós-modernas” escrito por Claudia Cinatti*, como aporte ao debate aberto sobre o legado teórico e político de Nahuel Moreno – fundador da LIT, corrente internacional da qual faz parte o PSTU – a vinte anos de sua morte. Neste artigo Claudia Cinatti polemiza com E. Palti, intelectual argentino, e seu livro “Verdades e saberes do marxismo. Reações de uma tradição política frente a sua crise”, no qual o autor toma como fundamento algumas idéias básicas do senso comum pós-moderno para fazer um balanço das idéias e práticas marxistas, que segundo o autor entraram numa “crise conceitual” após a queda da União Soviética, cujas conseqüências seriam o questionamento dos fundamentos teóricos do marxismo. Entretanto, o que mais nos interessa no artigo de Claudia Cinatti neste momento, mais do o debate contra o Palti, é que para responder às suas posições, que tomam as elaborações de Moreno como uma continuação conseqüente do marxismo revolucionário para criticá-lo, ela é obrigada a demonstrar que ao contrário de uma continuação, as elaborações de Nahuel Moreno constituem uma negação da estratégia marxista revolucionária que guiou a III Internacional de Lênin e Trotsky.   |   comentários

Moreno e a crise do "marxismo sem saberes"

Segundo Palti as principais correntes trotskistas ’ não só o “morenismo” , como também a corrente dirigida por E. Mandel ’ haviam dado um conteúdo preciso e paradoxal à “crise do marxismo” : no marco do segundo pós-guerra esta crise não resultava de derrotas da classe operária (como havia sido o triunfo da contra-revolução stalinista) senão que era produto da combinação de triunfos revolucionários (Estados operários burocratizados da Europa do Leste, China, lutas anti-coloniais, etc) com uma “crise de direção” que se manifestava em que estes movimentos levavam ao poder partidos stalinistas (ou outras variantes igualmente inimigas da democracia soviética e do socialismo internacional). Isto quer dizer que ainda que tenha se revertido a derrota histórica que havia significado o ascenso de Stalin em 1923, isto era ao custo do fortalecimento do próprio aparato stalinista, principalmente após a Segunda Guerra Mundial [1] .

Esta situação aberrante gerada pelo estranho fenómeno de revoluções dirigidas por contra-revolucionários havia levado Moreno a reinterpretar a herança teórica deixada por Trotsky. A primeira conclusão que Moreno depreendia desta reformulação é que no Programa de Transição, partindo de que as condições objetivas (a crise capitalista) estavam “mais que maduras” para a revolução, Trotsky havia operado uma mudança profunda nos fundamentos da teoria marxista invertendo a “lei de causalidade histórica” pela via do deslocamento da determinação em última instância (que para os marxistas é a economia. NdT) para os fenómenos políticos (subjetivos), mais concretamente para a presença ou não de um partido revolucionário. A segunda premissa que surge desta inversão é, segundo Palti, a atualidade e primazia da velha alternativa “socialismo ou barbárie” , reformulada como “socialismo ou holocausto nuclear” .

A combinação destes dois elementos ’ proeminência dos fatores subjetivos e a postulação de um horizonte catastrófico para o conjunto da humanidade ’ é o que desenharia uma “lógica política marxista” no pensamento de Moreno, cuja falta haveria constituído o ponto débil da teoria de Marx, combinado com o postulado da “inevitabilidade do socialismo” .

Nesta construção teórica sobre o “trotskismo” Palti toma “a parte pelo todo” , isto é, confunde os fundamentos da teoria marxista com uma interpretação reducionista do marxismo (e do trotskismo) do segundo pós-guerra, por certo pouco criativa que, repetindo a forma e não o método do Programa de Transição explicava os complexos fenómenos políticos e económicos da época, com abstrações tais como “a crise de direção revolucionária do proletariado” ou “o estancamento das forças produtivas” . (...)

Na realidade, Moreno, sob o impacto das revoluções do segundo pós-guerra protagonizadas essencialmente por movimentos camponeses e dirigidas por partidos stalinistas, pequeno-burgueses ou guerrilheiros, termina adaptando a teoria a estes acontecimentos, o que de nenhuma maneira constitui uma demonstração de que o saber do marxismo era incapaz de interpretá-los. Foi antes bem o contrário. (...) Vejamos como o que estava equivocado não era o saber do marxismo, senão a interpretação de Moreno e a releitura de Palti.

A primeira inversão anti-dialética: a causalidade histórica e a "inevitabilidade do socialismo"

Comecemos pela “inversão subjetivista” de Moreno, que como em geral ocorre com as visões unilaterais, é só a contra-cara de seu contrário, neste caso o objetivismo.

A afirmação da primazia dos fatores subjetivos se baseava na realidade em uma interpretação vulgar e catastrofista do trotskismo, que tomando ahistoricamente a afirmação inaugural do Programa de Transição escrito em 1938 em vésperas da Segunda Guerra Mundial, deduzia que a concepção de Trotsky ’ e a premissa essencial da revolução socialista ’ era o estancamento absoluto das forças produtivas da humanidade, justificado por frases tais como o “caráter da época imperialista” , cuja verdade histórica não está em dúvida, mas de nenhuma maneira pode substituir “a análise concreta da situação concreta” .

Esta reafirmação obstinada do catastrofismo económico ’ que não era exclusiva da corrente morenista ’ levava ao absurdo de transformar em algo inconcebível para um marxista admitir que tivesse havido ’ e que poderia haver ’ desenvolvimentos parciais das forças produtivas, como por exemplo, durante o boom do segundo pós-guerra. Sua contra-cara era a teoria de Mandel que acreditava ver neste desenvolvimento parcial uma nova fase capitalista.

Apesar de que estas afirmações teóricas unilaterais eram feitas em nome do “trotskismo” é impossível encontrar algum escrito de Trotsky no qual se fundamente semelhante esquematismo. Pelo contrário, em menos de uma década Trotsky mudou sua visão da situação e da economia mundial, sem que ocorresse a ninguém pensar que ao fazer isso estava “rompendo” com o marxismo. Em seus escritos de princípios da década de 1920 não sustentava que havia estancamento generalizado das forças produtivas, senão uma situação que combinava um desenvolvimento parcial e desigual ’ nos Estados Unidos e Japão ’ com a declinação na Europa. (...) Por isso, nos anos 30 quando a situação havia mudado e se avizinhava a Segunda Guerra Mundial, a análise de Trotsky era totalmente distinta. Este é o contexto histórico preciso da afirmação com que começa o Programa de Transição, segundo o qual “as forças produtivas da humanidade deixaram de crescer” . (...)

Apesar da diferença evidente entre Marx, Lênin ou Trotsky por um lado e as interpretações que deles fizeram os trotskistas no segundo pós-guerra, Palti insiste em afirmar que esta conclusão de Moreno, que termina fundamentando o socialismo no catastrofismo, é expressão de que o marxismo se sustenta num a priori, isto é numa afirmação que não pode se submeter à prova nem se refutar (daí a postulação de seu caráter religioso), segundo o qual o socialismo é inevitável, pelo que cada acontecimento no qual intervém a classe operária, para além de sua ideologia, seu programa e sua direção, cedo ou tarde revelará seu conteúdo revolucionário. (...)

Haveria em Marx uma teoria da “inevitabilidade do socialismo” que surgia do desenvolvimento das forças produtivas? A resposta é negativa. (...) Há uma diferença evidente entre afirmar que o capitalismo é um sistema condenado por suas contradições e assegurar o triunfo “inevitável” do socialismo, que só pode ser produto de uma revolução de massas com uma direção de uma vontade consciente de construí-lo. Por isso, para Marx a alternativa histórica ao capitalismo não era inexoravelmente o socialismo, senão que de não triunfar a revolução proletária, a perspectiva era a queda em formas quiçá inéditas de barbárie. (...)

(...) no pensamento político de Moreno, se manifesta uma unilateralidade inversa à primazia dos fatores subjetivos, uma profunda ruptura da relação contraditória entre as condições objetivas e subjetivas a favor de um ponto de vista objetivista da dinâmica da luta de classes e a perspectiva do socialismo. Desta forma, a revolução socialista teria como garantia o estancamento e retrocesso absoluto das forças produtivas que segundo Moreno havia caracterizado todo o século XX e que era o fundamento de uma situação de revolução “iminente e generalizada” que supostamente se estendia desde a derrota do exército nazi na União Soviética.

A segunda inversão anti-dialética: exceção e norma

O objetivismo que Moreno expressava em seu pensamento teórico-político não só o levava a ver revoluções inexistentes como, por exemplo, a “revolução democrática” na Argentina após a queda da ditadura e a derrota na guerra das Malvinas em 1982, senão que derivou numa revisão profunda da teoria marxista, que surpreendentemente e sem intencionalidade manifesta de Moreno, terminou assemelhando-se a certas afirmações pós-marxistas.

Moreno acreditava ser necessário fazer uma readequação da teoria da revolução permanente de Trotsky, a qual considerava fundamentalmente equivocada em suas premissas, exceto no caráter internacional da revolução. Esta revisão teórica acompanhava uma política de adaptação às “transições democráticas” que levou à deriva e à explosão a corrente morenista [2] .

Segundo Moreno, Trotsky não foi conseqüente com sua própria concepção e insistiu “anti-dialeticamente” no papel dirigente da classe operária e de seu partido revolucionário na aliança das classes subalternas na luta pelo poder do Estado e o estabelecimento da ditadura do proletariado. Este suposto “dogmatismo obrerista” contradizia a experiência do século XX que havia mostrado que podia haver revoluções (democráticas) triunfantes sem que a classe operária jogue um papel central e sem um partido revolucionário. A descrição das revoluções do pós-guerra levou Moreno a realizar uma segunda “inversão” , nas palavras se Palti, desta vez entre “exceção e norma” [3] na mecânica de classes e no sujeito político da revolução.

Moreno defende que “para Totsky, então, a tarefa da revolução democrático- burguesa tinha que ser feita pela classe operária, que não era uma classe burguesa, mas uma classe anti-burguesa. Desta forma, mesclava uma tarefa burguesa com quem a fazia, que era a classe operária. Havia uma contradição: uma tarefa burguesa era feita pela classe operária. Agora bem, para nós neste pós-guerra esta lei se deu, mas invertida: setores da pequena-burguesia têm realizado tarefas operárias. Isto demonstra o papel da classe média” [4] .

Efetivamente as revoluções às quais Moreno se referia não haviam sido protagonizadas essencialmente pela classe operária, nem dirigidas por partidos operários revolucionários. Mas isso não resultava inexplicavelmente nos termos da teoria marxista. Trotsky não descartava “a possibilidade teórica de que, sob a influência das circunstâncias completamente excepcionais (guerra, derrota, crack financeiro, pressão revolucionária das massas, etc.) os partidos pequeno-burgueses, incluindo os stalinistas, possam ir mais longe do que eles mesmos querem na via de uma ruptura com a burguesia” [5]. Mas considerava altamente improvável que isto ocorresse, e no caso de se concretizar esta variante hipotética, constituiria um episódio breve [6] .

(...) Entretanto, para Moreno estes acontecimentos excepcionais não podiam ser compreendidos dentro da teoria da revolução permanente, já que constituíam uma negação fundamental da “norma” teórica segundo a qual “sejam as que fossem as primeiras etapas episódicas da revolução nos distintos países, a realização da aliança revolucionária do proletariado com as massas camponesas só é concebível sob a direção política da vanguarda proletária organizada em Partido Comunista. Isto significa, por sua, que a revolução democrática só pode triunfar por meio da ditadura do proletariado, apoiada na aliança com os camponeses e encaminhada em primeiro termo a realizar objetivos da revolução democrática” [7].

Como conseqüência defende que “há que mudar a teoria da revolução permanente em sua redação, para insistir nisso: sem partido revolucionário e sem intervenção primordial, hegemónica, da classe operária, houve revoluções democráticas triunfantes, e algumas destas revoluções dirigidas por correntes pequeno-burguesas que se apoiavam na pequena-burguesia avançaram até fazer a revolução socialista, até expropriar a burguesia” [8]. Esta suposta “correção” da teoria da revolução permanente apontava “aos dois sujeitos: o político e o social” e derivava em que “não toda tarefa de uma classe cumpre esta classe, que pode ser cumprida por outras classes. Não é porque a tarefa seja operária que tem que ser cumprida por esta classe” [9].

Tendo em conta o desenvolvimento, e ainda mais o desenlace destas revoluções às quais Moreno havia elevado à “norma” teórica, não podemos mais que constatar que contra a “inovação” morenista se confirmou tragicamente o saber do marxismo. O preço que se tem pagado por estas “exceções” foi muito elevado. Em lugar da ditadura do proletariado baseada nos organismos soviéticos, o que temos visto são ditaduras burocráticas aberrantes, como a de Pol-Pot, em seu caso mais extremo. A liquidação do internacionalismo proletário separou profundamente os trabalhadores dos países centrais de seus irmãos de classe no mundo semicolonial e a todos eles dos trabalhadores que viviam nos estados operários burocratizados.

A perpetuação da burocracia como casta privilegiada parasitária não poderia ter outro desenlace que a restauração do capitalismo nos países onde a burguesia havia sido expropriada. Isto demonstrava o equívoco da teoria de Moreno de que já não fazia falta a hegemonia proletária e a direção operária revolucionária para avançar em direção ao socialismo.

Visto desde os resultados, o prognóstico de Moreno estava profundamente equivocado (...) já que enquanto Moreno sustentava no início da década de 1980 que se sucediam “triunfos revolucionários” , em realidade os ensaios da revolução operária já haviam sido derrotados nos anos 70 e estava se anunciando uma ofensiva capitalista ’ conhecida como “neoliberalismo” ’ que se prolongou por quase três décadas, e que incluiu o início da restauração do capitalismo nos ex estados operários burocratizados. (...)

* Artigo foi publicado na revista “Lucha de Clases” n. 6, editada pelo IPS (Instituto Pensamiento Socialista Karl Marx), e está disponível na íntegra em www.ips.org.ar

[1“Com o fim da Segunda Guerra Mundial se abre uma etapa de ascenso revolucionário mais importante conhecida até esta data. Desgraçadamente este ascenso revolucionário se dá junto com o agravamento da crise da direção revolucionária, isto é, com um fortalecimento dos aparatos contra-revolucionários que dirigem o movimento de massas e uma debilidade contínua de nossa Internacional [...] Resumindo, os dois elementos determinantes de todos os fenómenos contemporâneos, as causas últimas e primeira, as que determinam com suas distintas combinações todos fenómenos, são o ascenso revolucionário das lutas da classe operária e dos povos atrasados por um lado, e a crise de direção revolucionária pelo outro” . Moreno, N. “Teses para atualização do Programa de Transição (1980)” , Teses VII, disponível em www.nahuelmoreno.org

[2Ver o artigo “Historia y balance del MAS Argentino” nesta mesma edição da revista “Lucha de Classes” . www.ips.org.ar

[3Esta polemica esta desenvolvida extensamente no artigo “Polemica com a LIT e o legado teórico de Nahuel Moreno” , M. Romano , Estratégia Internacional n. 3, dezembro de 1993/janeiro de 1994.

[4Moreno, N., “Escola de quadros, Argentina, 1984” .

[5O Programa de Transição.

[6Esta “possibilidade teórica improvável” se materializou historicamente em alguns momentos e lugares precisos como durante os anos imediatos ao fim da Segunda Guerra Mundial com o surgimento de novos estados operários burocratizados nos países da Europa do Leste ocupados pelo Exército Vermelho, e logo após na China, Cuba e Vietnã. Desde o ponto de vista histórico, o resultado da Segunda Guerra Mundial a preservação da burocracia stalinista e da social-democracia nos países ocidentais, a extensão do domínio burocrático à Europa do Leste, o estado de bem-estar nos países centrais e o deslocamento da revolução “do centro para a periferia” são alguns dos elementos que explicam as circunstâncias concretas nas quais as direções não operárias, camponesas, pequeno-burguesas ou stalinistas, encabeçaram revoluções e terminaram tomando o poder do Estado e nacionalizando a economia.

[7Trotsky, “A Revolução Permanente” .

[8Moreno, “Escola de Quadros, Argentina, 1984” .

[9Idem.

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