Sexta 17 de Maio de 2024

Movimento Operário

Antineoliberalismo e anticapitalismo

Algumas reflexões a partir da luta dos trabalhadores terceirizados da USP

15 Jun 2005 | Uma luta exemplar irrompeu, no meio da campanha salarial   |   comentários

Em meio à agitação política que tem marcado as campanhas salariais dos trabalhadores da USP nos últimos anos, esse ano um novo elemento irrompeu, a princípio de maneira semi-espontânea, e logo ganhando o apoio consciente de um setor do Sindicato dos Trabalhadores da USP, dos trabalhadores avançados da universidade e dos estudantes reunidos no bloco A Plenos Pulmões. Esse elemento foi a luta dos trabalhadores terceirizados da empresa de limpeza DIMA, ao mesmo tempo contra direção da empresa e também contra a reitoria da USP que loteia os serviços básicos da universidades entre empresas privadas super-exploradoras.

A iniciativa de luta desses trabalhadores trouxe de fato um elemento novo que pode significar, e em certa medida significa já, um pequeno avanço em sentido estratégico para o enfrentamento proletário contra um dos mecanismos chave para o aumento da exploração capitalista nos últimos anos: a precarização das condições de trabalho através das empresas terceirizadas. Para tirar as conclusões e levar essa experiência aos setores mais amplos da classe, queremos contribuir aqui na medida de nossas forças.

Temos remarcado em diferentes ocasiões o papel de vanguarda que a categoria dos trabalhadores da USP tem começado a desempenhar no marco mais geral da recomposição do movimento operário no Brasil. Um papel de vanguarda que vem se forjando ano a ano, pela sua atuação como ponta de lança nas lutas das três universidades estaduais paulistas, enfrentando-se não apenas contra o bloco dos reitores (Cruesp), mas em diversos momentos contra as direções e correntes conciliadoras que atuam no Fórum das Seis (grupo das associações de docentes e sindicatos de trabalhadores da USP, Unesp e Unicamp, e que passou recentemente a incluir as entidades estudantis), e por vezes até mesmo contra os setores conciliadores que tentam minar a com-batividade do próprio Sintusp.

Pelos métodos radicalizados que têm utilizado, e pela experiência que significa compreender e enfrentar o papel dos conciliadores nos sindicatos, podemos afirmar de forma contundente que os trabalhadores da USP têm encarnado concretamente um espírito de luta de classe encarniçada que carrega em si, juntamente com outras lutas de vulto em outros setores da classe trabalhadora, a possibilidade de uma retomada da ofensiva operária no país, após tantos anos de retrocesso.

Porém neste ano de 2005 em que a campanha salarial não se materializou em greve nas universidades, o papel de destaque coube a esses outros trabalhadores: precisamente dali, dos setores mais explorados, dos mais oprimidos e menos representados em toda a universidade, ressurgiu mais uma vez o grito proletário de combate, por parte dos trabalhadores da DIMA, que pegaram de surpresa até os setores mais avançados dos trabalhadores regulares da USP.

Os trabalhadores da DIMA, assim como começam a fazer os de outras empresas terceirizadas, mostraram sua disposição para lutar por seus direitos, enfrentando a repressão que existe sobre eles, realizando uma paralisação decidida e uma inédita ocupação da reitoria. A partir dessa ação, que contou com o apoio de trabalhadores e estudantes avançados da USP, não apenas uma união muito mais sólida começou a se estabelecer entre os distintos setores, como ao mesmo tempo muitos dos “novos dogmas” sobre a fragmentação da classe trabalhadora caíram por terra.

Em outra nota deste jornal oferecemos um curto relato procurando expressar os elementos centrais da luta tal como se efetivou concretamente. Aqui vamos nos concentrar em explicitar os motivos que nos fazem comemorar essa luta como um verdadeiro exemplo para o conjunto da classe trabalhadora, e afirmar com genuíno orgulho proletário: irrompeu, bem em meio à luta da categoria, uma outra luta exemplar, tendo como principais protagonistas justamente aqueles setores encarados por muitos como se nem fizessem parte da categoria.

O discurso falacioso que “naturalizou” os ataques patronais dos últimos anos

Durante anos a fio, alimentado pela brutal ofensiva imperialista “neoliberal” sobre o mundo e pelo momento histórico de retrocesso do proletariado e de suas direções políticas, um discurso reinou entre a maioria da esquerda, segundo o qual o proletariado já não existiria enquanto classe, tão grande havia sido a fragmentação imposta pelas recorrentes “reestruturações produtivas” levadas a cabo pela burguesia nos distintos países.

Evidentemente, esse discurso apoiava-se num elemento absolutamente real: o fato de que a patronal estava aproveitando a correlação desfavorável à luta dos trabalhadores para impor a partir do próprio chão da fábrica, e daí para todo o conjunto de relações de trabalho, um “novo tipo” de capitalismo que não era outra coisa senão um capitalismo que tentava levar às últimas conseqüências a relação de escravidão assalariada (retirada de direitos, extensão da jornada e do ritmo de trabalho, precarização, etc). Porém, sobre a base desses elementos, tão reais para qualquer trabalhador como o suor que escorre de seu rosto ou as dores que mortificam seu corpo após cada dia de trabalho, os setores que defendem esse discurso levavam a cabo uma operação ideológica que significava uma absurda distorção da realidade: naturalizavam estas “novas condições” , como se o seu pilar fundamental não fosse a voracidade burguesa e a situação de defensiva do proletariado, e sim uma suposta “transformação tecnológica” que de maneira totalmente mecânica e automática levaria a uma tal situação.

Porém a questão fundamental é: poderiam esses ataques (camuflados sob o nome tão neutro de “reestruturação” ) transformar de maneira fundamental a natureza de classe dos trabalhadores, ou melhor dito, as condições e a dinâmica da ação coletiva dos trabalhadores enquanto classe? Se assim fosse, nada mais seria possível fazer senão abandonar qualquer perspectiva de classe, e contentar-se com dirigir lutas atomizadas e fragmentadas em que cada setor está sozinho contra os ataques da classe burguesa... Não foi precisamente isso, afinal, o que vários setores da esquerda pas-saram a defender? Não é o que defendem ainda hoje aqueles que abandonaram toda estratégia de independência de classe em nome de uma suposta luta “contra o modelo neoliberal” ? Para esses setores, a fragmentação da classe seria uma realidade contra a qual nenhuma luta poderia ser dada, pois estaria baseada na própria lógica do desenvolvimento das forças produtivas.

Fragmentação do proletariado e tendências à unidade de classe

Visto de perto, porém, o caráter reacionário desse tipo de visão salta aos olhos. É evidente, ao contrário do que eles afirmam, que nenhum desenvolvimento técnico ou científico pode alterar uma verdade que é fundamental para os marxistas: que o desenvolvimento das forças produtivas não pode ser mais do que desenvolvimento da capacidade humana de transformar a natureza a seu favor, e que tudo o mais, longe de derivar diretamente desse desenvolvimento, não passa de decorrência dos estreitos limites das relações de produção capitalistas, historicamente ultrapassadas, através das quais tal desenvolvimento é apropriado e controlado, o que equivale mesmo a dizer nos dias de hoje, deformado e mutilado. As inovações tecnológicas dos últimos anos podem facilitar enormemente as tarefas de socialização e de controle e planificação democrática da economia, desde que os capitalistas que hoje as usurpam sejam expropriados pelos trabalhadores organizados.

É por isso que, pela própria dinâmica de sua ação coletiva, os trabalhadores ao se colocarem em movimento negam na prática todas essas concepções ideológicas retrógradas. É que a luta de classe do proletariado apresenta como tendência inevitável um movimento em direção à unidade de classe, e isso se manifesta em pequena escala a cada passo dessa luta.

A verdade é que ao enfrentar seus chefes e patrões, os trabalhadores expressam claramente um impulso enorme para identificarem-se uns com os outros, para reconhecerem o aumento exponencial de sua força na medida do seu grau de unidade; enfim, um impulso enorme em direção a cerrar fileiras contra o conjunto da classe patronal. A verdade é que são as direções conciliadoras que se negam a enxergar essa realidade, e atuam, de maneira mais ou menos consciente conforme o caso, para frear essa tendência, tão “anárquica” e “perigosa” a seus olhos.

Unidade entre trabalhadores efetivos e trabalhadores terceirizados e precários; unidade entre trabalhadores empregados e desempregados; aliança entre os trabalhadores e todos os setores oprimidos do povo. Tal é a dialética inerente ao movimento de classe dos próprios trabalhadores, que os revolucionários marxistas apenas transformamos em programa consciente.

Capitalismo e neoliberalismo

Já afirmamos que nos anos do retrocesso amplos setores da esquerda caíram na armadilha ideológica burguesa, enquanto outros atuavam conscientemente como protagonistas dessa mesma armadilha. Mas a manobra ideológica tinha pelo menos um outro lado igualmente desorientador para a luta dos trabalhadores.

O problema aqui é que muitos companheiros viam (e continuam vendo) o neoliberalismo como um “modelo” de capitalismo passível de existir ao lado de outros, e não como a dinâmica regressiva concreta através da qual o capitalismo tem sido capaz de sobreviver em nossa época. Esses setores vêem as coisas como se houvesse uma relação apenas externa entre neoliberalismo e capitalismo, como se o que temos diante de nós hoje não fosse precisamente o capitalismo que se baseia sobre relações de produção transformadas de maneira “neoliberal” . Daí surgem dois problemas simétricos: considerar que as relações de produção teriam mudado tanto que deixariam de ser propriamente capitalistas; ou considerar que o neoliberalismo é apenas “um modelo” , uma questão superestrutural, e não a única saída que o capitalismo teve para enfrentar a grave crise mundial que se abriu nos anos setenta e que deu origem a inúmeros processos revolucionários, infelizmente todos derrotados. É preciso dizer claramente contra a primeira dessas visões que as relações de produção atualmente existentes não são de modo algum um “pós-capitalismo” ou um capitalismo “pósindustrial” . Mas é preciso também dizer que de fato as duas décadas de ofensiva neoliberal modificaram aspectos importantes das relações no local de trabalho, e que isso implica novas tarefas e nova ênfase para velhas tarefas da luta contra a exploração capitalista.

O neoliberalismo, a esquerda conciliadora e a classe trabalhadora

Entre as diversas maneiras como os conciliadores reformistas tentam “maquiar” sua posição contrária à unidade de classe dos trabalhadores, gostaríamos de chamar a atenção apenas para uma, até porque ela surgiu no decorrer da luta concreta que motivou este artigo: nos referimos àqueles que afirmam lutar contra a discriminação e por iguais condições de trabalho para todos, porém na realidade defendem a política de que para isso todos os trabalhadores passem por concurso público. Essa posição é típica de filisteus que tergiversam para evitar ir ao centro da questão: afinal, como exigir dos trabalhadores que já estão submetidos às tarefas mais penosas e às condições de trabalho mais opressivas, como exigir deles que sejam aprovados em concurso para “ganhar” o direito à igualdade de salários e condições de trabalho? Não é evidente que esta é uma política para trair os interesses dos terceirizados, justamente os setores mais oprimidos da categoria?

Esse tipo de discurso, assim como muitos outros até mais descarados, serve apenas para ilustrar uma realidade insólita: a de que a maioria da esquerda retrocedeu da luta independente contra a exploração capitalista para a luta “contra o neoliberalismo” , e no entanto não se vê quase lutas verdadeira e conscientemente dirigidas contra o “capitalismo neoliberal” .

A verdade é que a luta por melhores condições de trabalho e salário, sem discriminação de tarefas, é uma luta que só pode ser conquistada pelos métodos da luta de classes, como aliás bem demonstrou o exemplo dos terceirizados da DIMA.

Lutas como a deles podem assumir um caráter verdadeiramente exemplar desde que se coloquem claramente o objetivo de combater o nó das relações de produção modificadas pelo neoliberalismo. Cada movimento concreto em que setores da classe separados pelas “novas relações produtivas” superam as barreiras que lhes são impostas e impõem sua unidade de luta, cada pequeno passo nesse sentido, não apenas joga por terra e esmaga todo esse palavrório interminável, como, muito mais importante, significa uma posição conquistada na recuperação da subjetividade proletária, na confiança dos trabalhadores em si mesmos e na potência inigualável de sua unidade de classe.

Esse é o caminho que os terceirizados da USP deixaram marcado, esse é o caminho que devem seguir todos os trabalhadores, tanto os que sofrem diretamente com as condições precárias do trabalho sem direitos, como os que indiretamente sofrem com a enorme diminuição no poder de luta da classe através dessa odiosa fragmentação, que como vimos pode e deve ser rompida.

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