Segunda 6 de Maio de 2024

Juventude

A questão da autonomia e do programa para a universidade

09 Feb 2007 | A seguir reproduzimos entrevista com Brandão, delegado de base do Sintusp e representante dos trabalhadores no Conselho Universitário da USP; e com Pablito, trabalhador da EDUSP. Brandão milita no movimento sindical da USP desde a década de 80, e participou da grande greve de 1988 que antecedeu a concessão da autonomia às universidades estaduais paulistas.   |   comentários

JPO: Como e por que surgiu a autonomia universitária?

Brandão: A autonomia de gestão financeira das universidades surgiu como subproduto do “pacto federativo” realizado por oportunidade da Constituinte de 1988. Desde o ponto de vista da Constituinte de 88, a autonomia foi encarada como uma conquista do movimento de massas que neste momento ainda protagonizava importantes greves e lutas, pois permitia que o planejamento do ensino, da pesquisa e da extensão das universidades fosse feito com autonomia em relação aos governos de turno.

Entretanto, o problema é mais complexo. Nas universidades federais, todo ano é negociado o montante do orçamento que vai ser destinado a elas, e só a partir do momento em que estas verbas são repassadas é que se pode considerar que a universidade tem autonomia para geri-las. No caso das universidades estaduais paulistas é diferente. Em 1989 o governo Quércia vinculou uma parcela fixa do ICMS (imposto do estado sobre circulação de mercadorias), naquele momento de 8,4%. O problema é que em 1987 o governo tinha repassado 11,6 do ICMS para as universidades. Ou seja, se por um lado existia uma conquista de autonomia política que se expressava na autonomia de planejamento do ensino, da pesquisa e da extensão; por outro lado existia um ataque financeiro, um brutal corte de verbas. Essas duas coisas vieram combinadas, uma concessão para mascarar um ataque.
Além disso, o Quércia queria de fato tirar a universidade do portão do Palácio dos Bandeirantes e restringir os conflitos aos muros da universidade. Principalmente no ano de 1988 (mas também em anos anteriores), os funcionários e professores, algumas vezes em uma forte aliança com estudantes, protagonizaram grandes greves. Aconteciam verdadeiras batalhas campais envolvendo a comunidade universitária de um lado e as forças de repressão do governo de outro, em frente ao Palácio.

Mas para compreender o significado da autonomia para os trabalhadores realmente é necessário encará-la não apenas no ato de sua implementação, mas também em perspectiva. A autonomia significou um ataque financeiro estrategicamente ligado ao projeto neoliberal de nos anos seguintes introduzir as fundações de direito privado, o corte de pessoal, a terceirização, o arrocho salarial etc. Apesar disso, se comparamos as condições de salário e de trabalho dos funcionários e professores da USP com seus colegas do funcionalismo público federal ou com a saúde e o ensino médio no próprio estado de São Paulo (que continuaram diretamente ligados ao governo), veremos que os ataques da ofensiva neoliberal fora das universidades estaduais paulistas foram muito mais profundos. Seja pelas lutas que travamos (e ao longo da década de 90 conseguimos elevar o percentual do ICMS destinado à universidade duas vezes, primeiro em 9% e depois em 9,57%); seja pelo fato de que negociávamos com um inimigo menos forte (os reitores). E isso é visto pelos trabalhadores como subproduto da autonomia.

JPO: Mas a defesa da autonomia tal e qual os reitores das estaduais paulistas estão fazendo nos jornais frente ao ataque do governo Serra é justa?

Brandão: Veja, a estrutura de poder na universidade está mais próxima de uma monarquia ou uma oligarquia que uma democracia. É o governador quem escolhe o reitor da universidade. É o reitor quem escolhe os diretores de unidade, que por sua vez são os diretores, junto com as congregações e o restante do Conselho Universitário, que escolhem a “lista tríplice” (três nomes) dos quais o governador vai escolher o próximo reitor. Quilómetros luz de distância até mesmo do elementar “um homem um voto” da Revolução Francesa, sendo que várias universidades do país já adotam o critério de eleições diretas para reitor e esta é uma medida que constava até mesmo no projeto inicial de reforma universitária do neoliberal Lula.

Os reitores, diretores de unidades, chefes de departamento, boa parte dos professores doutores e funcionários de alto escalão formam uma casta de camarilhas que recebem 10, 15, 20 mil reais por mês (ou muito mais que isto) parasitando a universidade. São estas camarilhas que ao longo de toda a década de 90 e até hoje patrocinam a entrada das fundações de direito privado na USP. Elas entram como sócias menores do grande capital em grandes negócios de parceiras público-privadas. Nestas “parcerias” , a infra-estrutura e o orçamento da universidade é colocado a serviço de aumentar a produtividade das grandes empresas do país como Votorantim, Villares e Natura, reorientando todo o ensino a pesquisa e a extensão de acordo com estes interesses.

Essa camarilha de parasitas se utilizou da autonomia para se apropriar da universidade, consolidando e ampliando seus privilégios, criando quantos cursos pagos quis, liquidando a carreira de funcionários e professores, liquidando cursos, fechando postos de trabalho (só na USP, ao longo da década de 90, o corte do quadro de funcionários de 18 mil para menos de 15 mil trabalhadores), terceirizando etc. Enfim, aplicando as medidas neoliberais na universidade. Precisa gerar indignação e revolta o fato de que a casta administrativa que controla a universidade pode receber dezenas de milhares de reais (como mínimo) e constroem para si um hotel cinco estrelas dentro da universidade; enquanto o negro e a negra terceirizados que fazem a limpeza recebem um salário mínimo, sendo que na maior parte das vezes têm que vir a pé da favela ao lado ou tirar o dinheiro da passagem de seu próprio salário, e trabalham sem as condições mais elementares, sendo permanentemente humilhados por seus chefes.

Ou seja, essa camarilha restrita que parasita a universidade (que às vezes chamamos de burocracia acadêmica), associada aos governos estaduais de turno e aos grandes empresários, utilizam a autonomia universitária para seu enriquecimento próprio e para colocar a universidade a serviço dos interesses do capital privado. Essa é a autonomia que os reitores defendem.

JPO: Mas então por que se abriu uma crise entre os reitores, setores da burocracia acadêmica e o governo?

Pablito: Porque existem diferentes interesses também dentro da burguesia, que compete internamente por maiores lucros, e porque existem distintos projetos de como colocar a universidade a serviço dos interesses da burguesia. Veja, em meio às eleições do ano passado vimos brigas ferozes entre distintos setores do PSDB, entre o PSDB e o PFL, entre “caciques” de distintas regiões, ou até mesmo entre caciques de uma mesma região, como Serra e Alckmin. Não podemos descartar a possibilidade de que exista algum tipo de conflito entre os interesses de manutenção e aumento do poder de setores da burocracia acadêmica e os interesses de do setor do PSDB que hoje controla o Palácio dos Bandeirantes; principalmente se levamos em consideração a orientação de corte de gastos sociais que vem sendo implementada em vários estados do país para garantir o pagamento da dívida pública aos banqueiros.

Setores de peso da burocracia acadêmica que podem concordar com muitos aspectos do conjunto de medidas que Serra destinou às universidades desde tomou posse não concordam com aspetos importantes deste projeto, pois vêem que ferem seus próprios interesses de casta parasita. Daí a crise.

JPO: É possível aproveitar essa crise entre os “de cima” para favorecer uma entrada em ação dos “de baixo” ?

Pablito: Os funcionários, professores e estudantes precisam impulsionar uma mobilização massiva nas três universidades, conquistando o apoio de amplos setores da população, para derrotar os ataques de Serra contra a universidade. Nós travamos esta luta para barrar os ataques neoliberais à universidade. Os setores da burocracia acadêmica que se colocam contra algumas das atuais medidas do Serra o fazem para manter seus privilégios. São motivos claramente diferentes dos nossos.

Dentro da burocracia acadêmica também existem divisões. Ao mesmo tempo em que existem alas mais conflitantes com o governo, que defendem uma maior “regulamentação das fundações” , existem também alas mais diretamente tucanas e privatistas como, por exemplo, o Sr. Hélio Nogueira, que faz parte do grupo do grupo Montorinho da FEA, o Sr. Ricardo ex-diretor da FAU e as várias camarilhas ligadas a ex-reitores que viraram secretários de estado e ministros tucanos, como Pinotti, Paulo Renato, Brito, etc.

Mas devemos saber aproveitar essas crises e divisões dentro da burocracia acadêmica e na relação desta com o governo. Se momentaneamente setores da burocracia estão dispostos a resistir contra alguma medida concreta de Serra, devemos exigir que coloquem seu peso político e acadêmico a serviço de denunciar os ataques do governo e que apóiem a mobilização. Mas não podemos ter qualquer ilusão em relação nenhum setor da burocracia acadêmica. A burocracia vai querer limitar a luta contra os ataques de Srra que prejudicam seus privilégios; e vai querer parar a luta na primeira esquina assim que tiver alcançado seus objetivos para continuar implementando as fundações as terceirizações etc. Nós, pelo contrário, na medida em que a mobilização se desenvolva, vamos querer elevar o patamar das nossas reivindicações questionando o próprio poder e os privilégios da burocracia acadêmica. Por isso é necessário desde o início do conflito propagandear entre os setores mais avançados de estudantes, funcionários e professores um programa para universidade independente dos que apresenta a burguesia.

JPO: E o que seria um programa independente da burguesia e da burocracia acadêmica para a universidade?

Pablito: Hoje o governo do estado questiona a “falta de transparência” da gestão financeira das universidades por ser o único órgão estatal que não está diretamente vinculado ao SIAFEM. Se o SIAFEM garantisse transparência financeira, não existiriam tantos mensaleiros e sanguessugas espalhados por aí, nem tampouco mais de 100 CPIs abafadas pelo governo de estado. Da mesma forma que o governo do estado não tem interesse em abrir a “caixa preta” das 100 CPIs, os reitores não têm interesse na transparência financeira das fundações. Na medida em que se desenvolva um real processo de mobilização, devemos lutar pela abertura das “caixas pretas” das fundações, que movimentam milhões e milhões de reais, boa parte deles provenientes de verbas públicas. A administração universitária deve prestar contras regulares às entidades representativas de estudantes, funcionários e professores sobre toda a movimentação financeira da universidade; sobre todos os seus “caixa 1” , “caixa 2” , “caixa 3” , e também as “caixas coloridas” de todos tipo. E essa prestação deve ser aberta a toda a sociedade.

Na medida em que se desenvolva a mobilização, devemos generalizar a luta pelo fim das fundações e pela expropriação sob controles dos trabalhadores dos bens de todas as fundações instaladas na universidade. O mesmo devemos fazer em relação ao trabalho escravo dentro da universidade, terceirização. Temos que lutar pela incorporação dos terceirizados aos quadros das universidades com iguais salários e iguais condições de trabalho.

Com o desdobramento do conflito, deveremos lutar para colocar na ordem do dia o questionamento mais profundo da atual estrutura de poder da universidade e a necessidade de convocar uma Estatuinte Livre e Soberana.

As entidades de estudantes, funcionários e professores das universidades estaduais paulistas têm reivindicado ao longo dos últimos anos o aumento para 11,6% da parcela do ICMS que é repassada para a universidade. Esse cálculo se baseia no montante que foi repassado para a universidade em 1987, ano anterior à decretação da autonomia universitária. Temos que compreender que isso é o mínimo do mínimo do mínimo; uma referência de resistência em relação aos ataques neoliberais que foram implementados da década de 90 até hoje. Ano passado os próprios reitores chegaram a reivindicar valor próximo a este. Mas se queremos dar uma reposta de fato independente da burguesia para o ensino superior temos que pensar nos milhões de proletários e filhos de proletários que não têm e nunca tiveram acesso à universidade e levantar um programa capaz de mobilizá-los.
Vou te dizer um absurdo, mas é verdade. Em 2003 o número de vagas oferecidas pelas públicas e privadas foi maior que o número de formandos no ensino médio: foram 2 milhões de vagas nos processos seletivos em 2003, quando 1,8 milhão de estudantes terminaram a escola. Porém, o número de vagas sobrando nas universidades particulares chegou a 726 mil em 2005, o que representa 42,2% do total oferecido no período. Esse é um subproduto dos investimentos pesados que os capitalistas fizeram na década de 90 para lucrarem com a educação enquanto os governos neoliberais cortavam verbas nas universidades públicas. Não é possível responder de fato e profundamente ao problema do acesso ao ensino superior por fora da luta pela estatização das universidades privadas. Com que dinheiro? Parando de engordar o bolso dos banqueiros com o pagamento da dívida pública; impondo impostos progressivos às grandes empresas; confiscando as fortunas de mensaleiros, sanguessugas e sonegadores.
Obviamente, uma luta como essa subentende uma outra situação nacional, de ofensiva de diversos setores da classe trabalhadora contra a burguesia. Mas, ainda que não seja essa a conjuntura em que vivemos hoje, a luta pela estatização das universidades privadas como via para lutar pelo ingresso direto e irrestrito de todo e qualquer trabalhador à universidade aponta um projeto independente da burguesia para a universidade; coloca claramente que os aliados que devemos buscar são os trabalhadores em seus locais de trabalho, os camponeses pobres, os estudantes proletários das universidades privadas que se matam para pagar mensalidades exorbitantes. Claramente a luta pela estatização universidades privadas é melhor arma capaz de desmascarar a demagogia dos “lulas” ou dos “serras” que com suas reformas universitárias dizem combater a “elitização do ensino superior” .

Sem dúvida, se, em meio a um conflito como o que pode se desenvolver no próximo período em São Paulo, direções de entidades de prestigio nacional como são as que representam estudantes, funcionários e professores nas universidades estaduais paulistas assumem a bandeira esse seria um enorme exemplo para o conjunto do movimento sindical em todo o país.

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