Quinta 2 de Maio de 2024

Parte I Fundamentos

A guerra do Iraque, a ofensiva norte-americana e as crescentes tensões imperialistas

28 Jun 2005   |   comentários

Os atentados às Torres Gêmeas e ao Pentágono em 11 de setembro de 2001, puseram em evidência a vulnerabilidade externa de Estados Unidos e aceleraram o curso agressivo na política exterior do governo Bush. A perda de consenso para exercer seu domínio sobre aliados e inimigos obriga os Estados Unidos a recorrerem a níveis cada vez maiores de coerção, o que se vê refletido em seu unilateralismo e na tendência crescente ao militarismo no terreno político internacional.

A estratégia norte-americana aponta para mudar drasticamente as relações internacionais e as instituições que tinham sido a base da ordem mundial do pós-guerra, de modo tal a gerar as condições para reafirmar o domínio mundial dos Estados Unidos nas próximas décadas.

Durante a primeira presidência de Bush, esta estratégia se expressava mais nos termos da guerra “contra o terrorismo” e do “ataque preventivo” , enquanto seu segundo mandato adotou um discurso centrado na extensão “da democracia e da liberdade” na contramão dos tiranos, cedendo lugar a uma política que combina o guerreirismo e o uso do poderio militar com a reação democrática como forma de impor a “mudança de regime” .

As bases do unilateralismo norte-americano

O “unilateralismo” dos Estados Unidos tem raízes económicas profundas. A assim chamada “globalização” , que significou um salto na penetração imperialista na periferia através da desregulação dos mercados, das privatizações e da exploração de mão de obra barata, deu rédea solta às tendências mais depredadoras do capital norte-americano e conformou uma base social que favorece a volta às formas mais bárbaras do imperialismo. O primeiro governo de Bush e sua reeleição são uma expressão acabada destes setores. Esta política exterior agressiva vai acompanhada no plano interno por um retrocesso brutal de importantes conquistas conseguidas pelo proletariado e as massas norte-americanas em anos de luta.

Se durante a primeira presidência de Bush a patronal aproveitou a recessão e os atentados do 11/9 para demitir e avançar em flexibilizar as condições de emprego, a ponto de a recuperação económica não ter trazido uma redução significativa do desemprego, a segunda presidência anuncia um avanço qualitativo na privatização dos sistemas de previdência e saúde, pretendendo poupar milhões de dólares ao custo de deixar de financiar a assistência social e aprofundar o esquema privado de fundos de pensão e aposentadoria.

A estratégia da atual administração pretende legitimar, naturalizar e consolidar estes avanços, aprofundando e estendendo a mudança não só no terreno sócio-económico, como inclusive no terreno político e cultural, extirpando pela raiz todo traço de igualitarismo e avançando no terreno do regime num corte sem precedentes das liberdades democráticas, reforçando a autoridade do executivo e o controle dos três poderes do Estado por parte das figuras mais de direita do establishment político. O novo discurso de Bush, além de suas fortes tonalidades religiosas, aponta para constituir uma sociedade de proprietários.

Em síntese, se o fordismo e/ou americanismo e o wilsonismo foram o programa do capitalismo norte-americano em ascensão com o qual este estabeleceu sua hegemonia sobre o trabalho internamente e que, depois da Segunda Guerra Mundial, lhes permitiu consolidarem-se como potência hegemónica, moldando as instituições da ordem mundial à sua imagem e semelhança, a atual ofensiva representa o inverso. Assim, o debilitamento do “multilateralismo” na política externa é acompanhado pela tentativa de destruir e substituir os elementos de persuasão que permitiram a cooptação e submissão da classe operária nas épocas de bonança por uma nova combinação que implica um crescente autoritarismo e/ou bonapartismo com um fortalecimento dos valores morais tradicionais. Um produto genuíno da crise e da declinação do capitalismo norte-americano.

Rivalidades inter-imperialistas

Esta política dos Estados Unidos de perseguir seu interesse nacional de forma tão aberta, tentando tirar uma vantagem estratégica para manter sua hegemonia mundial, é a fonte principal de tensões que desde os preparativos da guerra do Iraque atravessam o sistema internacional, dando lugar a uma rivalidade sem precedentes nas últimas décadas entre as potências imperialistas. Desaparecida a “ameaça comunista” com a queda da Ordem de Yalta, a primazia norte-americana deixou de ser um requisito automático para a manutenção do status quo mundial, dando lugar a um aumento na concorrência e nas diferenças políticas entre as potências imperialistas. A “ameaça do terrorismo islâmico” não é suficiente por si mesma para colocar o mundo ocidental atrás dos Estados Unidos, tendo em conta que as potências européias têm outros sistemas de alianças, relações e interesses comerciais no Oriente Médio, que divergem dos norte-americanos.

A mostra mais aguda disto foi a crescente rivalidade entre Europa e Estados Unidos que tem se exacerbado nos últimos quatro anos e teve seu pico na oposição da França e da Alemanha, acompanhados pela Rússia, à guerra do Iraque.

O unilateralismo dos Estados Unidos está na base deste aumento de tensões inter-imperialistas, já que sua decisão de impor seus interesses quaisquer que sejam as circunstâncias ameaça os interesses vitais das outras potências.

O projeto de União Européia responde evidentemente à necessidade de contrapesar o poderio norte-americano e de melhorar as perspectivas do capital europeu no terreno internacional. No entanto, a política norte-americana no Iraque provocou uma importante divisão entre as potências da UE. Enquanto a França e a Alemanha lideraram a oposição, manifestando-se apoiadoras de uma ordem mais multilateral regida por instituições como a ONU, a Grã-Bretanha mostrou sua opção estratégica de ser aliada dos Estados Unidos, seguida pela Itália e pela Espanha e arrastando países importantes do Leste europeu como a Polónia.

A lista de diferenças entre os Estados Unidos e a Europa é longa e variada: a guerra do Iraque e as atuais relações com o regime iraquiano; o tratamento dos prisioneiros em Guantánamo; a política a ser implementada no conflito palestino-israelense além do apoio de ambos ao governo de Abbas; como tratar o tema da proliferação nuclear no Irã e na Coréia do Norte; manter ou não o embargo de armas à China; o embargo sobre Cuba; se a OTAN deveria seguir sendo a estrutura primária para discutir as relações entre os EUA e a Europa, oposto aos Estados Unidos tratando com a União Européia; o sistema Galileo contra o sistema GPS como sistemas de navegação de satélite; a urgência da mudança climática e o Protocolo de Kyoto; o apoio à Corte Criminal Internacional; queixas mútuas (e ameaças de sanções) com respeito aos subsídios industriais; as modificações genéticas das sementes agrícolas; a rivalidade entre Boeing e Airbus; e por último, mas não menos importante, o crescimento do euro como uma potencial moeda de reserva mundial.

Isto significa que a UE se converteu num pólo progressivo aos Estados Unidos, como sustentam setores do movimento antiglobalização que propõem a conformação de uma frente anti-hegemónica entre os países da periferia e a UE contra o unilateralismo norte-americano? Nada mais longe da realidade. A UE e os EUA compartilham importantes interesses. Estão de acordo em manter a estabilidade do sistema capitalista mundial, estão unidos contra as crescentes demandas dos países periféricos quando se trata de negociações com potências imperialistas na Organização Mundial do Comércio.

Este interesse em impedir qualquer triunfo dos oprimidos contra o imperialismo é o que explica momentos de relativa aproximação e cooperação como o apoio à revolução “laranja” na Ucrânia ou a pressão conjunta exercida contra a Síria para que se retire do Líbano.

No entanto, as diferenças profundas que emergiram abertamente com a guerra do Iraque persistem porque não respondem a elementos conjunturais, e sim a uma disputa estratégica baseada em elementos económicos, sociais, políticos e militares. Neste marco, o avanço do projeto da UE sofreu um grande golpe depois da rejeição da França e de outros países como a Holanda à Constituição Européia. O eixo franco-alemão, motor da construção européia, entrou numa fase crítica: divididos frente à constituição e com seus líderes em queda livre eleitoral, demorarão para recompor sua “insubstituível” aliança. O caos em que entrou a União Européia se manifesta na queda do euro, que reflete o nervosismo dos mercados frente à incerteza que se abre na direção política do velho continente. As futuras ampliações da UE, como, por exemplo, a incorporação da Turquia, ficam no limbo, ao mesmo tempo em que é provável que se endureçam as condições para os países recentemente incorporados da Europa Oriental como a República Checa ou a Polónia. Neste cenário podem aparecer novas brechas e choques entre os países europeus, que defenderão seus interesses mais encarniçadamente, como frente à futura discussão do orçamento comunitário, aumentando a divisão. Em outras palavras, a crescente divisão entre os Estados e sobretudo a rejeição categórica da população ao ataque que implica o avanço da UE, no imediato põem um limite ao desenvolvimento da Europa como pólo contra-hegemónico.

A prova do Iraque

O unilateralismo norte-americano e o apelo ao militarismo como forma de impor o domínio estão tendo seu primeiro teste sério na política para o Iraque, cujo desenvolvimento ainda permanece aberto.

A guerra contra o Iraque tinha como objetivo transformar o país numa plataforma do poderio imperialista no Oriente Médio que permitisse redesenhar o mapa político da região, fortalecendo a posição dos Estados Unidos e de seu aliado Israel, em detrimento das burguesias e dos regimes semicoloniais da região que apresentam objeções ao alinhamento automático com os Estados Unidos, como o regime sírio.

O Oriente Médio concentra as principais reservas de petróleo e constitui a principal fonte de petróleo para a UE, que mantém boas relações com regimes como o do Irã, que os Estados Unidos consideram o “eixo do mal” . Portanto, o reposicionamento norte-americano na região constitui uma ameaça direta aos interesses de potências competidoras, essencialmente da Europa e da Rússia.

Os Estados Unidos foram à guerra praticamente sozinhos, desafiando aliados históricos e fazendo pouco caso de um antinorte-americanismo sem precedentes que deu lugar às mobilizações de milhões de pessoas contra a política norte-americana e o presidente Bush.

Ainda que as tropas norte-americanas tenham conseguido uma rápida vitória militar contra o regime de Hussein, que se desintegrou quase sem oferecer resistência, a ocupação do Iraque demonstrou ser uma empreitada mais complicada do que supunham os planificadores do Pentágono e os neo-conservadores, ideólogos da “mudança de regime” .

A ofensiva dos Estados Unidos intensificou o profundo sentimento antinorte-americano na região. No Iraque a tentativa de estabelecer um governo fantoche do imperialismo, deu lugar ao surgimento de uma resistência armada contra a ocupação, que tem uma ampla base social no setor sunita da população iraquiana e se concentra geograficamente no centro do país, principalmente em Bagdá e Falluja.

Apesar de ter o exército mais forte do mundo, os Estados Unidos não puderam esmagar esta resistência, que continua fustigando suas tropas e aumentando o número de baixas. Passado o momento mais crítico para o imperialismo, quando, em abril de 2004, teve que enfrentar dois levantes, o da cidade de Falluja e o da cidade de Najaf liderado pelo clérigo xiita Al Sadr, os Estados Unidos começaram a implementar uma complicada engenharia política para estabelecer um governo local que ainda está em formação. Para chegar a esta situação e às eleições foi indispensável a colaboração dos líderes xiitas, principalmente do clérigo Ali Al Sistani.

Os Estados Unidos contam com o handicap de que até o momento a resistência iraquiana segue restrita ao setor sunita e não conseguiu generalizar-se num movimento de libertação nacional de massas que expresse a rejeição à ocupação militar e a luta pela expulsão das tropas estrangeiras, e contra seus colaboradores locais.

Até o momento o resultado da operação norte-americana no Iraque é provisório. Ainda que Bush, com o impulso de ter ganhado as eleições presidenciais apesar da baixa popularidade interna da guerra do Iraque, tenha relançado uma ofensiva política na região depois da realização das eleições iraquianas no dia 30 de janeiro de 2005, tomando o discurso da reação democrática para avançar na resolução do conflito palestino ou para reforçar o isolamento internacional da Síria, o Oriente Médio continua sendo uma zona de instabilidade política no marco de um antinorte-americanismo de massas.

A situação no Líbano mostra a profunda polarização gerada pela política norte-americana, que em geral segue as linhas das divisões religiosas e étnicas na região e dos bandos que se enfrentaram nos quinze anos de guerra civil. O país está literalmente dividido ao meio entre um setor dirigido por uma oposição pró-imperialista e condescendente com Israel, majoritariamente cristã maronita, sunita e drusa, e outra metade, majoritariamente xiita, dirigida pelo Hezbollah, que tenta resistir à ofensiva imperialista e que pode animar à ação outras forças antinorte-americanas nos territórios palestinos, no Irã, e no próprio Iraque.

Estrategicamente, o fato de que os Estados Unidos ainda tenham que lidar militarmente com uma guerrilha, muito inferior desde o ponto de vista do armamento, mas que conta com base social e que, portanto, exige a colaboração local -militar e de inteligência - para uma campanha de contra-insurgência, alenta o surgimento de outras forças deste tipo na região ou em outras partes do mundo, que sobre o modelo de uma resistência irregular enfrentem o poderio militar norte-americano.

A ocupação do Iraque revelou também os limites militares da principal potência do mundo. A permanência de cerca de 150.000 soldados no Iraque, junto à continuação de missões e bases militares em amplas zonas do mundo - desde a Europa Ocidental e o Japão até o Afeganistão - está chegando ao topo das capacidades de tropas disponíveis, dado que depois da derrota do Vietnã o exército norte-americano eliminou o alistamento obrigatório e está composto por soldados profissionais e reservistas.

Se por um lado é certo que a ofensiva norte-americana não podia sustentar-se por meio da intervenção militar exclusivamente, dando lugar a um tipo de guerra “permanente” de operações policiais, em qualquer parte do mundo, por outro a política de reação democrática expressa na retórica de mudança “de regime” e de reformas “democráticas” não poderia ser efetiva sem o poderio militar norte-americano.

A débil coalizão que acompanhou os Estados Unidos à guerra sofreu duros golpes. A aliança com Bush custou ao premiê britânico Tony Blair a crise mais importante de seu governo. A Espanha abandonou a coalizão depois dos atentados de Madri de 11 de março de 2004, que provocaram a derrota do governo de Aznar e a ascensão do governo do PSOE. O governo de Berlusconi, outro aliado de Bush, encontrou sérias dificuldades para sustentar seu apoio à guerra depois que soldados norte-americanos dispararam contra o veículo que transportava a jornalista Sgrena, tomada como refém e libertada, ferindo-a gravemente e matando o oficial do serviço secreto italiano que tinha conseguido sua libertação.

Está longe de ter-se recomposto o quebra-cabeça do Oriente Médio. A intervenção norte-americana procura acelerar os ritmos de mudanças profundas na região que apontem a fortalecer a posição dos Estados Unidos e de Israel, realinhando países que historicamente têm laços com a Europa, conseguindo novos agentes locais que tomem a tarefa de liquidar a resistência das massas e desarmar suas organizações mais radicais. Nesse sentido vão os acordos entre a renovada direção palestina de Mahmoud Abbas e Sharon para liquidar a luta nacional palestina, a tentativa no Iraque de formar um governo local que tenha a capacidade de reconstruir um aparelho repressivo capaz de lidar com a resistência, ou o apoio a mobilizações motorizadas pela ala pró-imperialista das elites locais como forma de impulsionar com agentes internos a “mudança de regime” . As crescentes turbulências que atravessam a região indicam que o Oriente Médio será uma das zonas conflitivas onde seguirá à prova a capacidade de domínio dos Estados Unidos.









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