Sexta 29 de Março de 2024

Questão negra

O CALDO CULTURAL DE SANGUE NEGRO

Uma reflexão sobre Obama, Django e Lincoln

08 Feb 2013   |   comentários

Há anos se usou o termo melting pot (ou caldo cultural) para dizer que os EUA eram o país da homogeinedade cultural e da liberdade para se viver qualquer diferença. O momento em que Obama, o exaltado presidente negro, se reelege é talvez o momento onde não é possível esconder que esse caldo nasce azedo e ensaguentado, com profundas desigualdades raciais e sociais expostas no seio do país de maior população carcerária do (...)

Há anos se usou o termo melting pot (ou caldo cultural) para dizer que os EUA eram o país da homogeinedade cultural e da liberdade para se viver qualquer diferença. O momento em que Obama, o exaltado presidente negro, se reelege é talvez o momento onde não é possível esconder que esse caldo nasce azedo e ensaguentado, com profundas desigualdades raciais e sociais expostas no seio do país de maior população carcerária do mundo1 . As últimas eleições presidencias evidenciaram o tamanho da crise política que se desenvolveu durante o primeiro mandato de Obama, com um bipartidarismo polarizado ao nível de uma disputa real entre Republicanos e Democratas como há tempo não se via em uma eleição americana. Dentro do Partido Republicano, o Tea Party insiste em ser a contra mão mais radical do discurso Obamista, exigindo leis brutais de segregação a imigrantes.

O discurso de posse de Obama revelou suas intenções em meio a esse Estado fragilizado pela crise, que vem desde 2008 perdendo sua localização hegemônica no imperialismo mundial: declara com demagogia que seu governo será o dos homossexuais, negros e povo pobre norte americano. Sua política real em nenhum momento foi essa, o que se demonstra pela duríssima repressão aos movimentos sociais que explodiram desde o início da crise, em especial o movimento Occupy Wall Street, onde a repressão policial e os discursos do governo federal mostraram que, contra os 99% atacados pelos planos de resgate, Obama estava ao lado do 1% de industriais e oligarquia financeira, levando milhares de americanos ao desemprego e a condição de sem tetos.

No momento de fissura de seu discurso, onde os que votaram em Obama pela segunda vez apostaram na possibilidade de algo ainda ser possível (ao invés da sensação de salvação da primeira eleição), Spielberg e Tarantino – o primeiro um democrata declarado, o segundo um democrata um pouco mais tímido – escrevem duas narrativas para reviver o melting pot, exaltando a guerra de secessão como a salvação contra um país racista e reacionário que se formaria no sul do país. Aproveitam para escancarar a contradição do Partido Republicano, que passou de anti escravagista para voz conservadora, racista e xenofóbica do país, e tentam reconstruir o sentimento democrático que passou a se tornar a voz demagógica dos democratas após o início do século XX.

Django Livre, dirigido por Tarantino, gerou grandes debates pelo mundo, com setores reivindicando o filme como revolucionário, e outros, como Spike Lee2 , denunciando-o como sensacionalismo da violência escravista e, portanto, racista.

Tarantino escolhe dois negros para não andarem de cabeça baixa: um é Stephen, que dirige a casa grande junto com Calvin Candie; o outro, Django, que apesar de ser contra a escravidão, assume discursos profundamente racistas para conseguir libertar sua esposa, esta um personagem totalmente passivo aos rumos que os homens dão a sua vida. Será que para Tarantino só é possível que um negro seja sujeito por dentro de um sistema opressor se gradualmente passar a se tornar um corrompido? Segundo as palavras de Django para Dr. Schultz: “aprendi com você que para viver nesse mundo é preciso se sujar” (diz isso no momento em que passa a discursar contra escravos de maneira brutalmente racista.

Django aceita a proposta de seu comprador, um caçador de recompensas interpretado por Christoph Waltz, de levar o mesmo modo de vida, e questiona a proposta contente: “me propõe que eu ganhe para matar homens brancos?”. O que Tarantino e seus comentadores exaltados deixam de dizer é que os homens brancos mortos por Django são os perseguidos pelo mesmo Estado que o escravizou, e a pergunta que devemos fazer aos que vêm Django como herói é a seguinte: se este “másculo justiceiro” vivesse nos dias de hoje, quem seriam os perseguidos pelo Estado que ele assassinaria em troca de dinheiro para libertar sua esposa? As fotos e os dados de composição racial das prisões norte americanas não nos deixam mentir, e nos fazem ver claramente que a carroça de Dr Schultz estaria cheia de corpos negros.

Enquanto trotskistas, retomamos a cada discussão sobre a arte o manifesto da FIARI3 , onde Trotsky coloca que a arte deve ser livre, e que exigir que ela apresente um programa operário é retirar sua característica de arte, que representa o sentimento de um período, de uma classe, e que não deve ser proibida ou boicotada pela perspectiva de classe que apresenta. Está, entretanto, em nosso poder, criticar e demonstrar seu caráter de classe, para a partir do debate surgido em torno de cada trabalho artístico, contribuir para a emancipação dos homens. Django e Lincoln vêm à tona para contribuir à tentativa de, pela via do Partido Democrata e suas demagogias, manter a burguesia no poder, afogando o sentimento revolucionário que pode haver em torno de qualquer reivindicação democrática e tornando a figura dos lutadores dessas reivindicações partidários de uma direção também racista e profundos deturpados morais, por vezes racistas para alcançar suas realizações individuais.

1 Os dados sobre o sistema penitenciário de todos os países do globo pode ser visto no site do International Centre for Prison Studies: http://www.prisonstudies.org

2 Conhecido por filmes anti racistas, como “Malcom X” e “Faça a Coisa Certa”

3 O manifesto “Por uma arte revolucionária e independente” foi escrito em 1938 por Trotsky e André Breton e discorre sobre a reação stalinista sobre a URSS e o papel que esta cumpriu para aprisionar a arte. Essa discussão também é central no livro “Literatura e Revolução”, de Trotsky.

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