Quinta 28 de Março de 2024

Internacional

Um inverno egípcio

05 Dec 2014   |   comentários

Ao contrário de mais liberdade de organização política do povo e dos trabalhadores, o que existe é uma perseguição implacável da casta política atual contra todos os setores que possam se opor ao atual governo, e não apenas contra a Irmandade Muçulmana, como querem fazer crer.

O Egito foi o centro da primavera árabe, quando em 2011 massivas mobilizações ocuparam a Praça Tahrir e derrubaram a ditadura de Hosni Mubarak. Mas três anos depois disso, o regime se recompôs em chave regressiva com o atual governo chefiado pelo marechal Abdelfatah Al-Sissi. Desde que assumiu o poder, o chefe do exército Al-Sissi está endurecendo a repressão. Em mais uma sentença absurda, 188 simpatizantes da Irmandade Muçulmana foram condenados à morte. E isso ocorre três dias após a absolvição do ditador deposto, Hosni Mubarak. Com isso o governo quer acabar definitivamente com qualquer lembrança das manifestações, que foram a marca indelével da primavera árabe, e uma grande inspiração mundo afora.

Absolvição de Mubarak e colaboração com o imperialismo

A absolvição de Mubarak foi promulgada pelo juiz Mahmud al Rashid, que declarou o ditador inocente pelas 840 mortes durante os protestos da primavera árabe, que o tirou do poder. Essa decisão revoga o julgamento anterior, que o havia condenado à prisão perpétua por esses mesmos crimes. Além de Mubarak foi inocentado também o ex-ministro do exterior, Habib Al Adly. A decisão foi tomada com a negação “por falta de provas” do juiz às acusações de que Mubarak, como chefe do Estado por ocasião das manifestações, havia ordenado a repressão responsável pelas mortes. Também anulou as inúmeras acusações de corrupção que Mubarak respondia, dentre as quais a de enriquecimento ilegal com as exportações de petróleo a Israel a preço abaixo do mercado. Mais de 50 policiais que haviam atuado nos confrontos da Praça Tahrir também foram absolvidos.

Em uma entrevista dada aos canais de comunicação do país, Mubarak afirmou “eu não fiz nada errado”. O ex-ditador afirmou ainda que as mortes das manifestações de 2011 seriam de responsabilidade da Irmandade Muçulmana, e não sua. E que as mobilizações que tomaram a Praça Tahrir nada teriam de populares, tendo sido apenas um complô armado pelos sionistas e norte-americanos. Tais afirmações, utilizadas como pretexto para sua absolvição, causou revolta entre grande parte da população egípcia, pois é amplamente conhecido que foi o próprio quem sustentou os acordos de colaboração com o Estado de Israel, e também recebia financiamento dos Estados Unidos.

Essa sentença foi entendida por setores da população egípcia como uma provocação, principalmente para os que participaram das manifestações por sua queda. “É deprimente. Eu vi o sangue das pessoas que morreram em 2011, e as carreguei eu mesmo. Que vergonha para o poder judiciário e o Estado egípcio”, afirmou Ahmad Abd Allah, ao jornal britânico The Guardian. Do lado de fora do prédio em que se realizava o julgamento, cerca de mil pessoas foram brutalmente atacadas pela polícia, que as dispersou com bombas de gás lacrimogêneo. Manifestações ocorreram no centro do Cairo e nas principais universidades. A absolvição de Mubarak é parte do clima político de reação e endurecimento do regime que tomou o país, com a ascensão de Abdel Fatah Al-Sissi ao poder após a derrubada em 2013 de Mahmoud Mursi, então presidente da Irmandade Muçulmana. Parte integrante e orgânica da burguesia local, Mubarak pôde contar com a solidariedade de classe do regime.

E a absurda condenação à morte de 188 simpatizantes da Irmandade Muçulmana

Enquanto liberta Mubarak as cortes egípcias acabam de condenar à morte por enforcamento mais 188 pessoas, sob a alegação de serem simpatizantes da Irmandade Muçulmana, e terem invadido uma delegacia em Kerdasa, nos arredores do Cairo. Essa absurda condenação foi desferida após o massacre ocorrido no acampamento islâmico de Rabá al-Audawiya, em 14 de agosto desse ano. Após isso o governo egípcio já havia condenado à morte mais de 500 pessoas, consideradas próximas à Irmandade Muçulmana, e opositoras a Fatah Abdel Al-Sissi.

As condenações em massa estão sendo cada vez mais comuns no Egito. São ordenadas por sessões completamente arbitrárias, que duram cerca de 20 minutos, muitas vezes sem contar sequer com a presença dos acusados. É uma demonstração dramática de que os anseios da população de acabar com um regime de opressão, que durante décadas foi a ditadura de Mubarak, foram absolutamente traídos. Ao contrário de mais liberdade de organização política do povo e dos trabalhadores, o que existe é uma perseguição implacável da casta política atual contra todos os setores que possam se opor ao atual governo, e não apenas contra a Irmandade Muçulmana, como querem fazer crer. O regime vigente no Egito desde 2013 já é responsável por cerca de 2500 mortes, seja como fruto da repressão aos protestos, ou como resultado das condenações em massa.

A perseguição se estende também a outros setores. Enquanto liberta Mubarak, a justiça egípcia manda prender oito pessoas que teriam participado de uma manifestação em que se simulava um casamento homoafetivo. Sob a acusação de que os jovens estariam “promovendo o vício e a libertinagem”, a procuradoria obrigou-os a realizar diversos exames para averiguar se teriam mantido relações sexuais. Apesar de legalmente a homossexualidade não ser considerada crime no Egito, como acontece em outros países cujos governos praticam a lei islâmica (sharia), o regime atual tem se caracterizado pelo aumento incessante da repressão contra esse setor.

Só os trabalhadores e o povo são capazes de responder aos anseios democráticos

O que está acontecendo no Egito é a prova de que ao contrário do que afirmaram setores da esquerda, como a LIT-PSTU, não houve no país uma revolução democrática vitoriosa. A resposta progressista às demandas democráticas mais sentidas pelos trabalhadores e a população, que os levaram às ruas em 2011, só pode ser dada pelos trabalhadores e o povo. São eles, que com seus métodos de organização, em base à uma política de independência de classe, poderiam ter derrubado o regime, e instaurado em seu lugar um governo dos trabalhadores e do povo.

Ao essa perspectiva não ter se dado, as variantes burguesas que assumiram o poder, fossem as islâmicas como a Irmandade Muçulmana, ou as laicas, como agora a de Al-Sissi, trairiam inevitavelmente as aspirações das massas. O governo atual não apenas persegue toda e qualquer força opositora, como também segue a cartilha econômica do FMI responsável por lançar na miséria uma ampla massa dos trabalhadores. Esse debate segue sendo relevante para todos os que se colocam como parte da esquerda. É preciso tirar a lição, que o processo egípcio oferece, de que a necessidade de uma política de independência da classe trabalhadora é uma questão da qual não se pode abrir mão.

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