Quinta 28 de Março de 2024

Cultura

Um ano após junho de 2013, arte marginal é discutida e não-artistas são autores de obras que não conseguem ter acesso

25 Dec 2014   |   comentários

Enquanto acontecia a polêmica Bienal de São Paulo, que fez de tudo para tentar representar os conflitos políticos mais latentes no mundo evidenciando a coletividade, os oprimidos e os não-artistas, o Victoria and Albert Museum em Londres apostou em uma exposição sobre artefatos de lutas sociais também feitos por desconhecidos.

Enquanto acontecia a polêmica Bienal de São Paulo, que fez de tudo para tentar representar os conflitos políticos mais latentes no mundo evidenciando a coletividade, os oprimidos e os não-artistas, o Victoria and Albert Museum em Londres apostou em uma exposição sobre artefatos de lutas sociais também feitos por desconhecidos.

O tema da Bienal de São Paulo de 2014 jogou ao observador uma pergunta que subentende-se não ter resposta, induzindo-nos a desdobrar em verbos as coisas que não existem: como lutar por elas ou as procurar, reconhecer e imaginar. Essa postura intencionalmente aberta a infinitas interpretações, paradoxalmente se posiciona com uma certeza bem clara de que falta solidez para encarar os atuais problemas sociais; sugere que é necessário objetos novos, inexistentes, ou, na hipótese de já existirem, precisam de uma nova estratégia que ultrapasse as atuais expectativas e convicções.

Alguns trabalhos seguindo esse raciocínio e outros contrariando, por toda a seleção é possível ver inúmeros posicionamentos políticos que abrangem tanto as demandas mais levantadas nas manifestações de junho, quanto as crises internacionais que já caminham há longas datas. Com muitos trabalhos atuais e expositores de várias nacionalidades, o Brasil e outros países da América Latina compunham a maior parte do saguão em quantidade e espaço físico, sendo a Argentina o país com mais expositores depois do Brasil.

No guia que condensa todos os trabalhos e que pode ser usado gratuitamente na visitação da Bienal, está escrito que estamos sem saída, que não há uma alternativa clara e que nos faltam as ferramentas para agir; o guia conclui ainda que a complexidade do desejo humano é deixada de lado pelo modelo econômico dominante, mas que, ao mesmo tempo, as tentativas dos antigos discursos de oposição ao capital fracassam ao tentar incorporar a história e cultura locais.

Enquanto essas polêmicas eram discutidas em São Paulo, o Victoria and Albert Museum tirava o foco do contemporâneo e fazia um enquadramento em linha do tempo das gambiarras que a população do mundo precisou criar para lutar por suas demandas, exibindo de chaleiras das Sufragistas até novíssimos robôs de protesto. Segundo eles, é a primeira exposição a examinar o poderoso papel dos objetos em movimentos sociais, demonstrando como o ativismo político gera uma riqueza de designs engenhosos e criações coletivas que desafiam as normas da arte e do design.

Com o título de Objetos Desobedientes, a exposição enche-se de orgulho com a criatividade dos ativistas agora percebida, e reforça o quanto isso é relevante para a arte e o design, chegando até a distribuir guias de como fazer alguns dos objetos expostos. Estes guias são de cor amarela e seguem o estilo publicitário e panfletário dos folhetos de luta, que inseridos no contexto da exposição, só estão reproduzindo de forma limpa, organizada e digerível à elite, as únicas opções que os manifestantes têm para repassar as informações.

Um ano antes dessa exposição, em 2013, no livro Do It: The Compendium, do curador e crítico de arte Hans Ulrich Obrist, o artista e ex preso político chinês Ai Weiwei já tinha publicado um manual de como você mesmo pode fazer um spray de tinta que pinta as câmeras de segurança mais altas impedindo que capturem as imagens dos manifestantes.

Na Bienal, uma outra atitude marginal também foi posta a vista: eram fotos e desenhos, colados de maneira escolar sobre papel kraft, que retratavam uma ação de moradores da favela do moinho – colocados dessa forma então, como os autores da obra.

A favela é conhecida por conta de dois incêndios que sabemos terem sido criminosos. Foram propositalmente provocados pelo governo para abrir novas áreas de construções imobiliárias.

O trabalho exposto rudimentarmente era uma documentação explicativa de uma performance já ocorrida, ou dita a verdade sem requinte: de um ato de fúria dos moradores da comunidade. Após a prefeitura ter levantado um muro de concreto armado de seis metros de altura, impedindo definitivamente os moradores de reconstruir suas casas e deixando a comunidade sem uma rota de fuga no caso de um novo incêndio, os moradores, indignados com as tentativas sem êxito de diálogo com a administração municipal, resolveram derrubar o muro violentamente com as próprias mãos e ferramentas.

Ao redor das fotografias haviam muitas frases escritas a mão, como “os puliça pira”, “nóis por nóis”, “abaixo e à esquerda está o coração” e “a revolução através da enxada”; este último mais perto dos desenhos de ferramentas de demolição. Esta ação foi nomeada pelos próprios moradores de A Queda do Muro da Vergonha, e para a curadoria da Bienal, foi uma ação digna de exposição em um salão de importância internacional.

Esta proposta de sinalizar como arte as produções e ações de não-artistas foi reconhecida em 1948 por Jean Dubuffet sete anos depois do “Manifesto Por Uma Arte Revolucionária Independente”, e, junto com outros pensadores, entre eles André Breton, descreviam como não-artista o indivíduo que estava a salvo dos efeitos mortais da formação acadêmica e das convenções sociais e, portanto, livres parar criar obras de verdadeira expressividade. Com o tempo, essa definição acabou adquirindo diversas releituras e sinônimos, e outros críticos acrescentaram aos rótulos, em 1972, também os indivíduos que estavam sim inseridos nas convenções sociais, mas que apenas não possuíam treinamento em arte. Neste momento, de Arte Bruta, passou a ser chamada também de Arte Marginal.

Em alguns casos o fator político era essencial – como nos exemplos atuais acima citados – em outros, o foco era levado para questionamentos da própria arte; e por toda a arte moderna essas discussões podem ser percebidas em pensamentos de escolas como: Dadá, Surrealismo, CoBrA, Neodadá, Fluxus e Internacional Situacionista – esta última acreditava que a prática artística era um ato político e que por meio da arte se poderia realizar a revolução.

A partir desses dados, proponho pensarmos e discutirmos por que as instituições mais poderosas estão nos enquadrando hoje essas perspectivas, o que junho de 2013 teve a ver com isso, e pra onde querem nos levar. Já é sabido que não adianta a entrada do museu ser grátis ou existirem políticas de passeios guiados pela Bienal com escolas públicas, se toda a estrutura foi e ainda é pensada pela parcela privilegiada, e até a escolha de valorizar a marginalidade é decidida por eles, fazendo dos oprimidos e marginais, protagonistas de uma arte aplaudida pela plateia que eles não conseguem fazer parte.

O que hoje em dia está sendo um ato de vandalismo e no futuro será rigorosamente centralizado numa parede branca de Londres? Quais as denúncias que essas artes fazem mesmo estando em voga na elite artística? Como identificar, dentro do sistema da arte, as obras de artistas ou não-artistas que são realmente progressistas?

Repudiando esta afirmação caridosa escrita no guia da Bienal: “Em seu melhor estado, a arte é uma força disruptiva. Na medida em que ela permite imaginar o mundo diferente, ela cria situações em que o rejeitado pode se tornar aceito e valorizado.”, e ao mesmo tempo, me sentindo amparada por obras de extremas insistências ideológicas, afirmo que é muito importante fortalecer as ações (rotuladas como arte ou não) marginais e vândalas; e, se conseguirmos, todas as representações estéticas que fortalecem as lutas e ainda não foram descobertas pelos intelectuais que não pisam na rua.

A arte está em uma transição difícil entre refletir sobre e tornar-se de fato uma atitude política. A questão não é trazer o museu para o povo, nem usar o povo como objeto de arte, e sim exigir uma linguagem de múltiplas camadas que desafiem a própria linguagem, privilegiando a denúncia em detrimento das reflexões individualistas e apreciações a distância.

LINKS RELACIONADOS:

Guias do Victoria and Albert Museum para construir objetos desobedientes:
http://www.vam.ac.uk/content/exhibitions/disobedient-objects/how-to-guides/

Spray para cobrir camêras de segurança por Ai Weiwei:
http://cnet3.cbsistatic.com/hub/i/r/2013/08/07/83222b4d-6de0-11e3-913e-14feb5ca9861/resize/620x/f2e453c466da981e2214f9da3f3a3a2a/Crave47.jpg

Vídeo dos moradores da favela do moinho derrubando o “Muro da Vergonha”:
https://www.youtube.com/watch?v=Yqn1yT1xeFM

BIBLIOGRAFIA

[Catálogo da 31a Bienal de São Paulo – Como (...) coisas que não existem] / Organizado por Nuria Enguita Mayo e Erick Beltrán. – São Paulo : Fundação Bienal de São Paulo, 2014.

[Guia 31a Bienal de São Paulo: como (...) coisas que não existem] / Organizado por Nuria Enguita Mayo e Erick Beltrán. – São Paulo : Fundação Bienal de São Paulo, 2014.

Website Victoria and Albert Museum: http://www.vam.ac.uk/content/exhibitions/disobedient-objects/

DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas & movimentos: guia enciclopédico da arte moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

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