Quinta 18 de Abril de 2024

Internacional

Bolívia

Temos que dar o golpe de misericórdia com a mobilização nacional!

05 Mar 2003   |   comentários

A Bolívia foi abalada até os alicerces pelas jornadas de 12 e 13 de fevereiro. Quando nos primeiros dias do mês o Governo anunciou um “impostazo” que afetava praticamente todos os assalariados e as classes médias, esperava resistência, mas não imaginava que poria todo o país em estado de rebelião. Os dias 12 e 13 significam um giro na história nacional. A própria lista de vítimas: 35 mortos, 205 feridos, muitos deles pelas balas militares, mostra a magnitude do enfrentamento. A isto há que acrescentar as dezenas de edifícios públicos, de empresas, de sedes de partidos oficialistas destruídos. As jornadas de 12 e 13 se inscrevem na cadeia de levantes que têm sacudido a América Latina nos últimos anos. Em particular, apresentam semelhanças ’ e também diferenças ’ com as jornadas revolucionárias de 19 e 20 de dezembro de 2001 na Argentina, que derrubaram o presidente De la Rúa quando este, obedecendo ao FMI, também pretendeu arrumar as contas do Estado às custas do salário operário, da fome dos desempregados e das poupanças da classe média. Ainda que os meios de comunicação, o governo e uma legião de “politólogos” e analistas, se esforcem em tirar a relevância política destes acontecimentos para pintá-los tão somente como dias de “morte e vandalismo” , a verdade é que a rebelião operária e popular, facilitada pela crise no aparato repressivo causada pelo motim policial, acertou um golpe mortal ao governo e abriu uma nova situação política, na qual está colocado continuar a ofensiva operária, camponesa e popular, até acabar com o governo e com o regime atual, e abrir o caminho para um governo dos explorados.

Do anúncio do “impostazo” ao motim policial

Pressionado pela crise económica e pelas exigências do FMI, o governo cometeu um gravíssimo erro ao anunciar o “impostazo” , atacando não só os assalariados, mas também a sua própria base social nas classes médias, empurrando-a para a oposição. Ao mesmo tempo, transferiu o principal cenário de conflito social para as cidades e dividiu a burguesia, já que os empresários e os exportadores viram estas medidas como um novo ataque aos seus interesses e destinadas a favorecer somente os bancos e às empresas “capitalizadas” . Por outro lado, nacionalizou a rebelião, pois desde La Paz e El Alto, o protesto, ainda que com menor intensidade, se estendeu a Cochabamba, Chapare, Santa Cruz e Oruro.

Nos primeiros dias da semana uma imensa onda de descontentamento corria o país, diversos setores sindicais (como os professores) anunciavam paralisações, marchas e outras medidas de protesto, e era evidente que se encubava uma rebelião operária e popular. O aquartelamento dos policiais no GES [grupos especiais de segurança ’ tropas de elite] de La Paz (seguido por outros destacamentos como em Santa Cruz) na noite de terça-feira agregou um componente inesperado à conturbada situação. No motim confluíam vários fatores: o descontentamento da tropa mal paga e mal tratada, a oficialidade afetada pelo impostazo, as camarilhas corruptas dispostas a bloquear o projeto de “reforma policial” do governo. O efeito foi explosivo, acelerando enormemente os acontecimentos.

A jornada da quarta-feira 12/02

Desde as primeiras horas de quarta-feira, a paralisia do aparato repressivo do Estado burguês, que chegou a fraturar-se com o combate entre os policiais e o Exército enviado por Goni para reprimi-los, abriu uma ampla brecha para que a mobilização de massas começasse a avançar. Estava em marcha a rebelião e o governo e a maquinaria do Estado estavam praticamente imobilizados. Começavam a contabilizar-se mais de uma dezena de mortos e uma centena de feridos, a maioria no meio da guerra entre policiais e militares que viveu a Plaza Murillo.

A Sánchez de Losada faltaram forças, ficou isolado, cambaleante. Não só fracassou a expressão económica do plano do governo: o “impostazo” . Também fracassaram os preparativos repressivos para impó-lo. Ao lançar o Exército contra a polícia, não se tratava somente de disciplinar os “pacos” (policiais) sublevados. O passo seguinte devia ser impor uma saída autoritária, repressiva, frente à onda ascendente de protestos. Mas o governo teve que retroceder apressadamente quando já era tarde, somente para que a derrota não fosse maior, tentando controlar o levantamento em marcha.
Colunas de manifestantes se formavam espontaneamente em diversos pontos de La Paz e de El Alto. Ainda que nas primeiras horas fossem setores ainda não massivos, os que haviam saído à rua alcançavam importantes êxitos graças à crise policial.

Começaram os ataques aos símbolos do poder político e económico: vários edifícios estatais, as sedes dos partidos do governo (MNR, MIR, UCS, ADN), escritórios de financeiras e de empresas privatizadas. Na falta de uma organização e de uma orientação superiores, se descarregava assim o ódio contra o governo e à sua maneira, começava a colocar-se o problema do poder.

As primeiras ações tinham um claro conteúdo político, evidenciado nos próprios objetivos, nas consignas e em que os manifestantes não permitiam que atuassem ladrões. Todo aquele que pretendia levar algo para si, era sistematicamente obrigado a jogá-lo na fogueira, fosse um sofá ou um computador.

No entanto, com o correr das horas começaram os saques, produto da irrupção de milhares de famintos, de desempregados, de marginalizados que manifestavam assim seu desespero e seu ódio social, e logo, finalmente, de ladrões e lumpens urbanos que viram uma oportunidade para o roubo, atacando inclusive pequenos comércios ou casas de família. O epicentro dos saques se deslocou para El Alto, como ocorreu com os armazéns da Alfândega e de algumas empresas.

A paralisação nacional da quinta-feira 13/02

A declaração de “feriado” por parte do Governo para a quinta-feira não póde ocultar que de todas as maneiras a paralisação nacional havia sido muito forte, marcando a entrada em cena do movimento operário e arrastando diversos setores da população. Isto, ainda que a mobilização em La Paz, que reuniu cerca de 10 mil pessoas segundo a imprensa, não tenha sido tão multitudinária como permitia esperar a convulsiva situação. Em Cochabamba, em Santa Cruz, em Oruro, em Potosí etc. se realizavam marchas e em alguns casos, novos ataques às sedes dos partidos de governo e saques.
Em La Paz, as forças militares posiciona-das na Plaza Murillo recorreram à tática criminosa dos franco-atiradores como provocação, como meio de aterrorizar os manifestantes e criar um clima sangrento que impedisse o desenvolvimento da mobilização. Os primeiros feridos e vítimas fatais ’ jovens, trabalhadores da saúde que cumpriam seu dever, operários ’ eram os alvos escolhidos.

Enquanto isso, os meios de comunicação estavam histéricos, acusando os manifestantes de “vândalos y delinqüentes” e mentindo descaradamente.

Ao mesmo tempo, os dirigentes se encarregavam de diminuir as projeções da paralisação. Se negaram abertamente a dar continuidade à luta. A pergunta elementar de E depois de hoje? não foi respondida nem por Evo Morales nem pela COB (Central Operária Boliviana), ainda que tenham reiterado o pedido de “que se vá Goni” . Assim, a paralisação e a mobilização, em vez de converter-se em um ponto de apoio para desenvolver a luta e dar o golpe decisivo ao cambaleante governo foi utilizado pelos dirigentes para começar a “descomprimir” e evitar que as tendências insurrecionais pudessem desenvolver-se.

Ao entardecer, a polícia voltava às ruas ’ durante toda a noite se havia articulado um acordo ’ e começava a deter não só ladrões e saqueadores, mas também quem voltava para casa depois da mobilização e qualquer jovem que estivesse à mão.

Para completar a obra iniciada nos dias 12 e 13!

Ainda que a mobilização tenha retrocedido logo, como demonstrou a débil marcha do dia 14 e mais ainda o reduzido impacto da paralisação nacional de 48 horas da COB durante os dias 17 e 18, a rebelião operária e popular e a enorme crise política dos dias 12 e13 abalaram o país até os alicerces, abrindo uma nova situação política que favorece a ofensiva operária e popular, o que os marxistas chamamos uma situação pré-revolucionária.

O governo saiu ferido mortalmente. Com razão o semanário Pulso (14/02) se perguntava na capa “vai embora ou fica?” . Ainda que fique ’ ir-se seria antes de tudo reconhecer o triunfo das massas e que a burguesia não tem uma alternativa sólida ’, é evidente que é um governo completamente esgotado. A coalizão está fraturada e o gonismo isolado social e politicamente. Demorou uma semana para dar algum “sinal de vida” mudando o gabinete. É evidente que não poderá fazer passar nenhum ataque à economia e aos direitos do povo sem provocar novos conflitos. A burguesia fica assustada e sem um plano claro de mudança. A classe média, ainda que tenha retrocedido a posições mais conservadoras, não oferece nenhum apoio social estável para os planos reacionários e setores da mesma estão girando à esquerda.

O movimento operário, os trabalhadores das cidades começaram a entrar em cena de uma forma que não se via desde 1985. Uma nova vanguarda de milhares está despertando para a vida política. O fantasma da insurreição social, que havia despertado na Guerra da à gua em Cochabamba em abril de 2000 e nos bloqueios de setembro desse ano, e que a burguesia havia querido desterrar com o desvio eleitoral e com os “diálogos” emergiu com força inusitada nas cidades, centro do poder político e económico e da classe operária, criando condições mais favoráveis para a aliança operária, camponesa e popular. Se a ofensiva operária e popular não póde ir mais além, não foi porque faltasse energia e disposição para a luta das massas, e sim pela atitude traidora das direções majoritárias que não lhe deram continuidade e que enquanto se limitam a propor “vigílias” , buscam a saída de Sánchez de Losada e Mesa pela “via constitucional” , parlamentar, quando estava colocado impó-la mediante uma verdadeira greve geral indefinida com bloqueio de estradas.

A necessidade de uma nova organização, de uma estratégia para vencer e de uma direção revolucionária que possa estar à altura dos combates colocados, começa a se fazer sentir com maior força.

A Liga Obrera Revolucionaria por la Cuarta Internacional (LOR-CI), é a organização irmã da LER-QI na Bolívia, e também faz parte da Fração Trotskista - Quarta Internacional

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