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Segunda Conferência - Parte I

08 Oct 2007   |   comentários

A fundação de Iskra e a luta contra o economismo

Em sua obra “Que fazer?” , publicada originalmente no início de 1902, Lênin divide a história do marxismo russo em três períodos. Um inicial que se desenvolve entre 1884 ’ desde a fundação do grupo Emancipação do Trabalho ’ e 1894. Segundo as palavras de Lênin: “Foi o período em que brotaram e se afiançaram a teoria e o programa da social-democracia. Se podia contar o número de adeptos da nova tendência na Rússia com os dedos das mãos. A social-democracia existia sem movimento operário e passava, como partido político pelo processo de desenvolvimento intra-uterino” . Refere-se às origens que desenvolvemos na conferência anterior.

Em seguida assinala uma segunda etapa, que se situa entre 1894 e 1898, e a descreve com estas palavras: “A social-democracia aparece como movimento social, como impulso das massas populares, como partido político. Foi o período de infância e adolescência (...). Formados nesta luta (contra o populismo, NdeR) os social-democratas acudiam ao movimento operário sem esquecer ”˜um instante”™ nem a teoria do marxismo que lhes proporcionou luz, nem a tarefa de derrubar a autocracia. A formação do partido, na primavera de 1898, foi o ato de maior importância, e último por sua vez, dos social-democratas daquele período” . Aqui faz referência a aquele congresso do POSDR de que, como assinalamos anteriormente, não ficou quase nada, já que todos os seus dirigentes foram detidos pouco depois de sua realização.

Em 1898 começa um terceiro período, que é o que está transcorrendo enquanto Lênin escreve estas linhas. Segundo ele “é o período de dispersão, de desagregação, de vacilação (...) A luta proletária englobava novos setores de operários, e propagava por toda Rússia, contribuindo por sua vez indiretamente para avivar o espírito democrático entre os estudantes e entre outros setores da população” .

Isto é importante para ver que, não necessariamente, o desenvolvimento do movimento operário e do partido segue pelos mesmos caminhos.

Na primeira etapa, o partido se desenvolve mais rápido que o movimento operário e, nesta terceira etapa, apesar de que o movimento operário ganha força e dinâmica, este processo não resultou em que o POSDR seguisse o mesmo ritmo. Mais ainda por não estar dotado de uma direção centralizada, por se encontrar disperso e golpeado pela autocracia czarista, o POSDR se encontrava num momento muito complexo.

Ademais, há que considerar que precisamente porque o movimento operário se desenvolvia com força, a maioria dos dirigentes social-democratas tendiam a se adaptar a este estado de desenvolvimento sindical ou tradeunionista. Por isso, Lênin é muito crítico do panorama do movimento social-democrata deste período e diz que a “consciência dos dirigentes cedeu ante a magnitude e o vigor do crescimento espontâneo. Entre os social-democratas predominava já outra classe de pessoas: os militantes formados quase exclusivamente no espírito da literatura marxista ”˜legal”™ [1], coisa tanto mais insuficiente quanto mais alto era o nível de consciência que a espontaneidade das massas lhes exigia. Os dirigentes não só ficavam estagnados, tanto no sentido teórico (”˜liberdade de crítica”™) como no terreno prático (”˜métodos primitivos de trabalho”™), como tentavam defender seu atraso recorrendo a toda espécie de argumentos extravagantes” .

O terceiro é um momento no que setores descontentes da juventude se aproximam das idéias do marxismo, enquanto os dirigentes com mais tradição ’ que haviam se forjado no período de 1894 a 1898 ’ são detidos e deportados. Lênin assinala que esta nova geração que se aproxima ao marxismo tem a característica negativa de adotar a linguagem eclética dos “marxistas legais” , desprezando a luta teórica e rebaixando o programa. Por isso é que sua pergunta “Que fazer?” conclui: “Acabar com o terceiro período” . A isto vinha sendo dedicada, justamente, a atividade do jornal Iskra: combater os elementos que lhe haviam dado esta fisionomia ’ que Lênin considerava enormemente prejudicial -, ao movimento social-democrata russo.

O Iskra começou a ser publicado em dezembro do ano de 1900 em Munique (Alemanha), produto do plano de Lênin de sentar as bases de uma organização centralizada do marxismo russo, o qual ’ apesar do I Congresso do POSDR realizado em 1898 ’ continuava sendo um mosaico de círculos locais e de exilados. Iskra (cujo projeto se encontra desenvolvido por Lênin no artigo “Por onde começar” ?) se propunha a ser um jornal nacional para toda Rússia, que fizesse de “organizador coletivo” para todos os grupos social-democratas. Dessa forma, se esperava superar o estado dos círculos e jornais locais que teriam uma existência efêmera, devido à precariedade dos meios com que contavam e a perseguição czarista. A combinação de um firme centro no estrangeiro, encarregado da edição do jornal com uma rede de agentes que recorreriam os círculos existentes em toda Rússia, cumprindo a dupla tarefa de distribuir a imprensa se nutri-la da realidade nacional, permitiu ao Iskra cumprir este importante papel, em dura luta contra o economismo [2]. Iskra é uma palavra russa que significa Faísca e o lema do jornal era “uma faísca pode acender uma chama” .

O Comitê de Redação de Iskra estava composto por seis membros: três que pertenciam ao velho grupo fundador do marxismo russo, Emancipação do Trabalho, que eram Plekhanov, Vera Zazulich e pavel Axelrod, e outros três (Lênin, Martov e Potresov), que provinham da Liga de Emancipação da classe operária. Lênin e seus companheiros haviam escapado da deportação na Sibéria em 1898, e acordaram com os anteriores a saída do jornal, na Conferência de Pskov. Plekhanov tinha duplo voto no comitê de redação e estava a cargo também da publicação da revista teórica do grupo, chamada Zaría (A Aurora) [3]. Quando Trotsky conseguiu escapar de sua deportação à Sibéria e chegou à Europa, Lênin propós sua incorporação como sétimo membro da redação, ao que Plekhánov se opós. Nestes primeiros momentos Trotsky ’ que era conhecido pelo pseudónimo de Pluma ’ foi um aliado de Lênin no círculo dos iskristas.

A Declaração do Comitê de redação do Iskra, uma espécie de plataforma inicial, se separava claramente das outras tendências existentes na social-democracia russa. Recordemos que havíamos falado em artigos anteriores das diferentes tendências que se davam no marxismo russo: os economistas mais abertamente berteinianos, cujas idéias se expressavam no período Rabotchaia Misl (O Pensamento operário) [4]; os que se agrupavam ao redor do jornal Rabotchéie Dielo (A causa operária) [5].

Há que assinalar também que ao mesmo tempo em que surge o Iskra se funda um órgão de imprensa dos antigos “marxistas legais” ’ Struve e Tugan Baranovsky -, chamado Osvobozhdenie (Libertação), que tenta um acordo de colaboração com o Iskra em seus dois primeiros números. Isto rapidamente se demonstrou impossível pela clara orientação política do Iskra que colocava a necessidade da hegemonia do proletariado na revolução democrática, enquanto os antigos “marxistas legais” iam se inclinando abertamente às posições liberais [6].

Como já assinalamos, o comitê do Iskra estava integrado por seis pessoas e Plekhanov tinha voto duplo, ainda que Lênin era verdadeiramente seu centro. Sua companheira, Nadezhda Krupskaia era a responsável pelas relações com todos os comitês do interior da Rússia, que eram os que nutriam o jornal de notícias e denúncias operárias que povoavam suas páginas.

Fazer chegar o jornal ilegalmente na Rússia às vezes levava vários meses, e se recorria a todos os métodos possíveis. Inclusive se organizavam gráficas ilegais em Moscou, Odessa e Baku para facilitar sua reimpressão local. O Iskra tinha agentes em Berlim, Paris, Suíça e Bélgica que recolhiam fundos, entre os emigrados para sustentá-lo financeiramente.

Com este Comitê de Redação até o racha do IIº Congresso do POSDR ’ que desenvolveremos mais adiante -, se editaram 45 números do Iskra. A participação dos membros do Comitê em sua publicação foi muito díspar: há 39 artigos escritos por Martov, 32 por Lênin, 24 por Plekhanov, 8 por Potresov, 6 por Zazulich e 4 por Axelrod (depois veremos a importância que isto tem na discussão do Congresso).

O Iskra, na dura batalha contra o economismo foi se consolidando progressivamente como a tendência mais forte dentro da social-democracia russa, e com essas condições foi o real organizador do IIº Congresso do POSDR.

Mas antes vamos nos deter na transcendente obra de Lênin na qual ’ segundo suas próprias palavras ’ se resume à atividade dos primeiros anos do Iskra, o famoso “Que fazer?” . Este será o tema com o qual continuaremos no próximo número.

Um partido assim

“Na medida de nossas forças trataremos de que todos os camaradas russos considerem nosso jornal como próprio, de que cada grupos comunique suas informações acerca do movimento, compartilhe suas experiências, opiniões, suas necessidades em literatura, sua apreciação sobre as edições social-democratas, em uma palavra, que participa de tudo o que aporta ao movimento e de tudo o que este dá. (...) Unicamente um jornal assim é capaz de levar o movimento em direção ao caminho das lutas políticas. (...) Dirigimos nosso chamado, não só aos socialistas e aos operários conscientes. Chamamos também a todos os que são oprimidos e explorados pelo atual regime e lhes oferecemos as páginas de nosso jornal para que desmascarem as vilanias do absolutismo russo. Os que entendem a social-democracia russa como uma organização a serviço exclusivo da luta espontânea do proletariado, podem conformar-se só com a agitação local e com a literatura “puramente operária” . Nós entendemos a social-democracia de outra maneira: como um partido revolucionário dirigido contra o absolutismo, ligado indissoluvelmente ao movimento operário. O proletariado, a classe mais revolucionária da Rússia atual, somente se está organizada num partido assim será capaz de realizar a tarefa histórica a que está destinada: unir sob sua bandeira todos os elementos democráticos do país e conduzir esta luta tenaz de tantas gerações sacrificadas até o triunfo final sobre o detestado regime.” V. I. Lênin, “Declaração da redação de ISKRA” , setembro de 1900.

Glossário

Axelrod, Pavel (1850-1928) Revolucionário russo. Antigo colaborador de Plekhanov. Depois de seu enfrentamento com Lênin no IIº Congresso do POSDR (1903), se converteu em um dos líderes dos mencheviques.

Bersteinianos, seguidores de Bernstein.

Krupskaia, Nadehzda (1869-1939) Socialista russa. Casou-se com Lênin em 1898. Após a revolução de outubro de 1917, desempenhou diversos cargos políticos, em especial no âmbito da educação. Foi membro do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética até 1927.

Riazanov, David - Diretor desde 1920 do Instituto Marx-Engels de Moscou até 1931 e considerado o marxólogo mais importante de todos os tempos. Responsável editor das Obras completas de Marx e Engels, da primeira edição da Ideologia Alemã e por decifrar os Manuscritos de 1844 que não chega a publicar, devido sua expulsão do instituto. Preso pela polícia secreta do regime, Riazanov foi acusado de proteger mencheviques. Sob este cargo foi expulso do partido, da Academia Comunista e da Academia de Ciências. Foi deportado a Saratov. Ali trabalhou como tradutor e foi detido novamente em 1937 sob a acusação de pertencer a uma “organização terrorista trotskista” . Nos interrogatórios nunca aceitou confessar supostos crimes que não cometeu. Em 21 de janeiro de 1939 foi sentenciado à morte pelo Colégio Militar da Corte Suprema e fuzilado imediatamente. Em 1931 a propósito de sua prisão, Trotsky dizia a Riazanov: “o velho revolucionário se dirigiu a si mesmo: servir enquanto se mantém a boca fechada com os dentes apertados, está bem; ser um entusiasta lacaio, impossível. É por isso que Riazanov caiu sob a justiça do partido dos Iaroslavskis” . Destacamos uma anedota que mostra seu caráter: em 1929, Stalin, se gabando de seu novo poder entra no estúdio de Riazanov e observa os retratos de Marx, Engels e Lênin. Então lhe pergunta: Onde está a minha foto? Riazanov lhe responde: “Marx e Engels são meus mestres, Lênin é meu camarada. E você, quem é para mim” ?

[1Recordemos aqui o que assinalamos em artigos anteriores sobre os autodenominados “marxistas legais” , cuja personalidade mais importante é Struve, que será o redator do programa do Iº Congresso do POSDR.

[2A rede de agentes do Iskra oscilou entre os 10 iniciais e 150 (as fontes diferem nas cifras).

[3Zaría era editada em Sttutgart e foram publicados quatro números entre abril de 1901 e agosto de 1902.

[4Entre suas principais referências estão S. N. Prokopovich e sua esposa Y. D. Kuskova, autora do Credo.

[5Este era o órgão da União dos Social-democratas no Estrangeiro, que foi editado entre 1899 y 1902. Entre suas principais referências estão B. N. Krichevsky e A. S. Martinov.

[6Existiam também outros jornais de grupos intermédios como Yuzhny Rabochii (O operário do sul), que publicou treze números entre 1900 e abril de 1903, editado no estrangeiro, que contava com David Riazanov entre seus membros.









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