Quinta 18 de Abril de 2024

Teoria

ENTREVISTA

Saúde, capitalismo e revolução

13 Oct 2014   |   comentários

Gilson Dantas, médico e sociólogo, a partir da experiência da recente greve da USP, reflete sobre como os trabalhadores podem dar uma saída de fundo para a crise do sistema de saúde no país.

Na entrevista a seguir, Gilson Dantas, médico e sociólogo, a partir da experiência da recente greve da USP, reflete sobre como os trabalhadores podem dar uma saída de fundo para a crise do sistema de saúde no país.

Site Palavra Operária: Você acha que o modelo de saúde pública e as condições dos trabalhadores de saúde no Brasil poderiam ser qualitativamente diferente? Em sua opinião, uma revolução na saúde tal como ela é concebida hoje é possível?

Gilson Dantas: A resposta é sim. A realidade nos hospitais públicos e centros de saúde é bem conhecida da massa trabalhadora: filas enormes, esperas de horas para atendimento nas emergências, meses ou até anos para conseguir uma cirurgia para retirada de um mioma, meses para conseguir consulta ambulatorial, dificuldades para exames complementares e laboratoriais, falta de material inclusive para fazer um exame simples como o Papanicolau, medicina preventiva praticamente inexistente.

Enfim, nem do ponto de vista de orçamento, nem do ponto de vista humano, de gestão social e comunitária do sistema, da qualidade do atendimento, a verdade é que saúde pública não é prioridade, seja para tucanos ou para petistas. Por isso, nada muda na saúde. E mais: do ponto de vista do modelo médico, da maneira como o sistema pensa a saúde pública, a coisa está essencialmente errada. Primeiro eles deixam as pessoas adoecerem – por falta de nutrição, de prevenção, de emprego, de renda, de qualidade de vida e de mobilidade urbana – para depois medicalizarem a doença. Isto é, tratam a saúde como se fosse um problema puramente médico e ainda assim tratam mal.

Pertenço a uma geração de médicos que lutou pelo SUS, por uma medicina estatal, pública e gratuita. Mas posso afirmar que o SUS atualmente está em franca decadência, e por isso muitos trabalhadores procuram os planos de saúde, que por sua vez também funcionam mal, apenas fazem jogo de aparências, de marketing. Ocorre que o SUS, embora tenha sido fruto das lutas populares e dos trabalhadores, teve sua gestão e planejamento conduzidos pelo Estado capitalista, o mesmo que impulsiona a medicina privada.

Ou seja, cria-se um sistema híbrido, público-privado, mas onde a parte pública é dirigida pela burocracia de Estado a serviço dos interesses privados. Por isso, hoje se vê que a saúde se converteu amplamente em uma mercadoria. Você paga cada vez mais caro para ter saúde e tem cada vez menos saúde. Nunca os capitalistas ganharam tanto com a indústria da doença e, principalmente, com a indústria do câncer, na qual o paciente gasta milhares e milhares de reais para, ao final, morrer do “tratamento”.

Na nossa perspectiva, da classe trabalhadora, a estratégia da mudança do sistema de saúde é a de lutar contra a privatização, pela estatização, e impedir que qualquer patronal (e sua burocracia de Estado) dirija o sistema. Foi isso que levou o SUS ao fundo do poço atual. Nós conquistamos um sistema público e universal, mas ele é dirigido pelo Estado patronal. Que hoje quer ir no osso, destruindo os últimos bastiões, como o HU da USP. No entanto, nossa perspectiva tem que ser outra: pela estatização com controle dos trabalhadores e usuários.

Qualquer novo modelo médico, que negue e supere o vigente, obsoleto e sucateado, só pode ser conquistado na medida em que adotemos essa perspectiva de luta lado a lado com a luta dos trabalhadores por um Estado de novo tipo. A revolução na medicina é uma revolução no poder político, na perspectiva da classe trabalhadora e da sua maneira própria e independente de fazer política, diametralmente oposta da politicalha dominante hoje.

Não estamos falando de utopias. No século passado, em vários países onde o capital foi confiscado, tivemos grandes avanços em termos do modelo médico. Na União Soviética de Lênin, a assistência pré-natal, assim como também o aborto, foram tornados públicos e gratuitos. Os trabalhadores passaram a ter colônias de férias dignas do nome. Os soviéticos instituíram a primeira e mais ampla reserva ambiental e florestal do mundo. Mais adiante, mesmo já em processo de degeneração pelas mãos da burocracia stalinista, o Estado operário soviético desenvolveu, pela primeira vez no mundo, o parto humanizado, o parto subaquático, sem intervenção cirúrgica, feito ao ar livre e sem dor, e no qual a criança já nasce nadando dentro da água salgada e morna.

Foi também a URSS quem criou o sistema referenciado de saúde, depois aperfeiçoado em Cuba, onde as unidades de saúde de cada bairro, de cada zona do bairro, de forma descentralizada, fazem triagem de pacientes, praticam atendimento primário efetivo, ficando para os hospitais os atendimentos mais complicados, nos dois casos, sem fila de espera. Em Cuba, implantaram o médico que mora no próprio bairro, com o pessoal de enfermagem também, vinculados 24 horas, à unidade de saúde regional. Tive o privilégio de conhecer de perto esse sistema em 1990.

A China tentou implantar o mesmo sistema da URSS na saúde, centralizado/descentralizado (referenciado), com a incorporação das medicinas populares tipo acupuntura, plantas medicinais no atendimento médico amplamente, além de instituir o agente comunitário (médico-descalço), que fazia o link com as unidades de saúde zonais, tirando pressão arterial, coletando material de exames, curando doenças simples (inclusive com acupuntura, ervas). Enfim, uma ampla rede de acompanhamento de cada família na comunidade a partir de agentes recrutados entre os moradores, na condição de agentes de atenção primária.

Em todos os casos a doença deixou de ser tratada como mercadoria. E o modelo médico, invasivo, medicamentoso, também começou, parcialmente, a ser questionado. Não apenas através das experiências de humanização do parto, mas de outras também, a exemplo do tratamento da asma em minas de sal, onde o enfermo de asma passava uma temporada respirando aqueles ares saturados de sais e ia para clinicas nas montanhas onde entrava em processo de cura.

Todos esses e tantos outros são elementos de uma nova medicina, de um novo modelo médico, que a classe trabalhadora deve retomar, aprofundar e ampliar, mudando também o modelo médico vigente e ultra-medicalizado, voltado para os sintomas e não para a causa da doença.

Palavra Operária: De onde virão estas forças para a mudança?

Gilson Dantas: Dos trabalhadores, do ativismo político organizado a partir do local de trabalho. E, naturalmente, da sua organização em comitês de luta, de greve, frente única de sindicatos combativos. Sem essa auto-organização nenhuma conquista na saúde será duradoura. Observem que o governo degenerou e solapou toda conquista histórica que tivemos nessa esfera. O setor privado, dos planos e barões de hospitais e clinicas privadas, não tinham o poder que têm hoje.

Fomos derrotados em nossas conquistas, já que na verdade não eram conquistas amplamente apoiadas nas organizações dos trabalhadores devidamente democratizadas e baseadas na democracia de local de trabalho. O movimento sindical, a CUT, as demais centrais, se desenvolveram, todas, por fora e contra a auto-organização dos trabalhadores a partir de delegados de local de trabalho, de comitês de greve democráticos, abertos a todo o ativismo.

Uma rara e honrosa exceção foi a recente greve de quatro meses dos trabalhadores da USP e do HU da USP, que assentaram um exemplo histórico de como deve ser a luta dos trabalhadores, uma luta que deve se apoiar na democracia de base, deve liga a luta por salário à luta pelos interesses de todo o povo (nesse caso, a saúde), deve se unir à população. Nesta medida a luta dos companheiros e companheiras do HU e dos trabalhadores da USP é histórica, aponta para formas socialistas de organização.

Palavra Operária: Qual relação existe entre a forma como os trabalhadores da USP se organizaram e sua greve, a forma da luta por uma saúde realmente a serviço das necessidades humanas e a forma de organização dosocialismo?

Gilson Dantas: É crucial a intervenção ativa dos trabalhadores como sujeito do processo, antes, durante e depois da tomada do poder político. O modelo de saúde medicocrático, onde o poder fica na mão dos médicos e da burocracia de Estado, não funciona. Esta é a lição maior do século XX. Desde as menores batalhas, a lição deve ser aquela que foi levada adiante pelos trabalhadores do HU e Sintusp: comando de greve e organismos de luta baseados na mais ampla democracia; não apenas a democracia de barricadas, de luta, mas também a defesa de que a assistência de saúde e as unidades de trabalho e produção sejam todas controladas por quem nelas trabalha e produz.

Queremos um Estado operário, não um Estado burocratizado. Queremos o socialismo, não o socialismo de caserna, de burocratas iluminados. Para isso, o próprio movimento, hoje, as lutas atuais, devem ser conformadas a partir da democracia de base, da auto-organização, da politização da greve e da defesa de bandeiras que unem trabalhadores e povo pobre. Temos que ter sempre presente que sob a direção da classe burguesa e seu Estado o setor saúde não tem como funcionar. Seu interesse é o lucro, é ceder aos lobbies da indústria de medicamentos e equipamentos, à corporação médica (sendo que parte desta são empresários, médicos donos de clínicas, de consultórios onde exploram força de trabalho etc). Nenhum desses setores pode ter interesse na saúde como bem público.

Somente os trabalhadores podem, coletivamente, em seus órgãos de base, ter interesse coletivo, agir como gestores efetivamente públicos. Interesses privados e saúde pública jamais combinaram, em pais algum. Lembrando que a burocracia tem, também ela, interesses privados. Basta ver como age a burocracia acadêmica que manda na USP. Somente a classe dos trabalhadores da saúde, em aliança com os usuários, pode fazer a saúde reencontrar sua vocação humana, comunitária, preventiva, e funcionar como bem comum e não à mercê de interesses privados.

É preciso sempre ter claro: não há saída para a saúde pública no capitalismo. Várias descobertas absolutamente impressionantes para a cura do câncer, todas elas não-invasivas, baratas e bem simples, já foram feitas ao longo do século XX. Mas, uma a uma, foram encobertas, aniquiladas e desviadas pelos interesses capitalistas da indústria do câncer. Eles não podem permitir e nem legalizar tratamento que não gere altos lucros, que não seja patenteável. A indústria do câncer usa seu poder midiático e de polícia, lado a lado com a corporação médica, para impedir que o tratamento do câncer com métodos como a alimentação anti-câncer, enzimas digestivas, oxigênio-ozone, hipertermia, possam ser difundidos e instituídos.

Desde o início do século XX, vários pesquisadores sérios do câncer, como John Beard, Max Gerson, Otto Warburg, Johana Budwig, Raymond Rife, W. Kelley e tantos outros foram marginalizados e neutralizados porque descobriram que a cura do câncer pode ser mais simples, mais barata e mais cientifica do que a atual e dominante oncologia do horror, altamente lucrativa. Essas linhas de pesquisa só podem funcionar onde o objetivo não seja o lucro e sim o ser humano.

O capitalismo não tem a menor possibilidade de descobrir a cura do câncer e nem de curar pela raiz as doenças degenerativas, prevenir os acidentes de trabalho ou combater o mundo tóxico que nos rodeia. Somente os trabalhadores, com seu Estado, podem fazê-lo e, por isso mesmo, saúde, luta operária e socialismo são inseparáveis.

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