Quarta 24 de Abril de 2024

Debates

Ruy Braga e o "Podemos": qual a amplitude dos partidos aceitáveis para a LIT-QI?

12 Nov 2014   |   comentários

Ruy Braga, ainda estando no PSTU, se prepara para defender organizações que não se propõem nenhuma revolução social, não pretendem tocar na propriedade privada dos exploradores, e nem sequer se definem como de esquerda. Sua opinião sobre o Podemos, do Estado Espanhol, estampa a razão do por que é tão contrário ao programa de independência de classe frente a todas as variantes (...)

Recentemente, tivemos debates públicos com Ruy Braga, professor da USP e intelectual do PSTU, em que este abusou dos adjetivos para acusar a intervenção do Movimento Nossa Classe na greve da USP como autoproclamatória, e sua própria existência como “monstruosa”. Há alguns dias, pudemos entender com seu próprio escrito o profundo conteúdo do que se tratava. Braga, ainda estando no PSTU, se prepara para defender organizações que não se propõem nenhuma revolução social, não pretendem tocar na propriedade privada dos exploradores, e nem sequer se definem como de esquerda. Sua opinião sobre o Podemos, do Estado Espanhol, estampa a razão do por que é tão contrário ao programa de independência de classe frente a todas as variantes burguesas.

Segundo Trotsky, a política pode ser definida como “a arte de tirar vantagem das situações favoráveis.” O Podemos, à sua maneira, teve um surgimento meteórico na cena política nacional e, segundo pesquisa de voto do Metroscopía para o ElPaís, tendo apenas 11 meses de existência aparece como a formação com maior intenção de voto no país para as presidenciais de 2016, superando PP e PSOE, com 27%. O ascenso do Podemos – produto de um crescente mal-estar social – é acompanhado por um discurso de “pragmatismo” e “prudência” que soa cada vez mais aos apelos à moderação aos marcos do capitalismo, tão comuns ao cientista político líder da formação, Pablo Iglesias.

Mas o que surpreende é o poder que tem de encantar intelectuais de organizações que se reivindicam trotskistas, como Ruy Braga, do PSTU. Cabe ao PSTU nos explicar.

Podemos: alternativa ao bipartidarismo ou máquina eleitoral?

Ruy Braga do PSTU dedicou um artigo ao Podemos na mídia eletrônica da editorial Boitempo. Todo o argumento consiste em destacar que o Podemos teve sucesso em “organizar a indignação” da juventude e dos trabalhadores precários no Estado Espanhol numa formação partidária, ameaçando a ordem neoliberal com um “terremoto político devastador” (em referência às perspectivas eleitorais). É inegável que, no decorrer do artigo, apesar de algumas reservas cerimoniais quanto à intenção de Iglesias de “democratizar o Estado social de direitos com um reformismo forte”, o tom é de satisfatórias felicitações e esperanças diante de uma formação de cujo futuro supostamente dependeria “a sobrevivência do Estado social na Europa.”

Se a realidade não fornece as virtudes que se procura, basta inventá-las. De fato, a filosofia política do núcleo dirigente de Pablo Iglesias é menos apoteótica do que apregoa Ruy Braga. Apresenta-se como um pragmatismo político absoluto, em que o “objetivo” eleitoral é tudo, ao qual a organização interna, a política e o programa se adaptam como componentes subordinados. Durante os debates sobre as propostas organizativas do Podemos, cresceu o descontentamento nos círculos de base frente às ameaças de Iglesias ao dizer que, se não se votasse sua proposta, “sairia da formação”, no melhor estilo da chantagem feita por Felipe González no Congresso do PSOE em 1979 para legitimar seu giro à direita.

A formação política que “coroa a indignação social” espanhola se baseia num regime plebiscitário, em que o líder hipermidiático Iglesias elabora resoluções a serem “democraticamente” referendadas pela internet. E que não se questione este modelo, no qual não há espaço para dissidências. O documento de “princípios éticos” proposto por Iglesias (e aprovado na “urna virtual”, já que não existe competição para sua influência midiática) incluía uma cláusula de restrição à “dupla militância”, ou seja, que os cargos dirigentes de Podemos não podem ser ocupados por pessoas que forem militantes de outra organização política. Um ataque direto à liberdade de tendências e a formações da esquerda como Izquierda Anticapitalista (que obteve 12,37% de votos em sua proposta).

Trata-se, portanto, de garantir ao núcleo dirigente de Podemos mãos livres para moderar-se “rumo ao centro político”… do sistema de Estados da União Europeia, impondo todas as restrições à liberdade de ação dos círculos de base.

Populismo 2.0: “se me perguntam, Podemos não é nem de esquerda, nem de direita”

Pablo Iglesias, Iñigo Errejón e Juan Carlos Monedero não escondem sua admiração pela “nata” dos governos pós-neoliberais latinoamericanos, inclusive lideranças bonapartistas que não se enfrentam coma propriedade privada, como o venezuelano Hugo Chávez. Iglesias, num giro pela América Latina, se mostrou “fascinado” pelo estilo de governo “que não se intimida com os ricos”, como o de Evo Morales na Bolívia ou de Rafael Corrêa no Equador. O pupilo trilhou os gastos caminhos dos mestres: quanto à economia, Iglesias admitiu que, “É terrível, mas ainda que defendamos que o capitalismo pode ser a destruição do mundo, amanhã é preciso dar o que comer às pessoas e nós somos muito pequenos para enfrentar o capitalismo sozinhos”.

Este fascínio do Podemos pelo populismo reformista está enraizado nos objetivos de seus referentes. Iglesias foi assessor da Izquierda Unida (IU), partido que aplica os planos de ajuste na Andaluzia ao lado do PSOE. PSOE que, em meio ao seu apodrecimento social-liberal atacando as conquistas sociais das massas espanholas, não deixa de “ter méritos a serem reconhecidos” por Iglesias e Errejón. “O Partido Socialista foi o artífice da integração das classes subalternas ao Estado de 1978 – e, portanto, também das conquistas sociais subordinadas a este. [...] Caso se recompusesse parcialmente de seu desprestígio e de seus problemas internos, e postulasse um novo líder com poucos vínculos com o passado, poderia recuperar parte do espaço perdido e estreitar assim as opções para uma força de ruptura democrática,” diz seu documento político. Ou seja, seu objetivo nem sequer chega a ser a ruptura com o sistema bipartidário, mas ocupar um espaço vago pelo PSOE, sugerindo as condições para uma “união de esforços democrática” com um partido imperialista.

Nesse sentido, dificilmente se poderia concordar que a vitória de Iglesias “seria um duríssimo golpe na Troika”.

Questão catalã: todos decidimos?

Sobre uma questão democrática fundamental no Estado Espanhol, a autodeterminação dos catalães, é espantoso ver como Podemos se integra às posições políticas do regime. Diante da consulta do 9N ilegalizada pelo governo central sobre a independência da Catalunha (1,6 milhão de catalães, 80,7%, votaram pela independência), uma formação que “potencializa a defesa radical dos direitos sociais” devia se posicionar contundentemente em favor desse direito democrático dos catalães.

Entretanto, Nacho Álvarez, do núcleo dirigente, nos comunica que “a posição do Podemos sobre o tema catalão é inequívoca [...] a partir do Podemos convidamos os catalães, os bascos, os irmãos dos espanhóis que querem exercer o direito de decidir a que o façamos todos juntos e que fiquemos todos juntos precisamente para lançar um projeto constituinte que mude o país.” Uma ambiguidade presente na entrevista à Cadena Ser da referente Carolina Bescansa, “Eu creio que temos todos que opinar sobre muitas coisas. Sobre o modelo territorial certamente.”

Apesar deste problema democrático não ser mencionado por Ruy Braga em seu laudatório ao Podemos, é forçoso dizer que o núcleo dirigente de Iglesias tem as mesmas opiniões que o PSOE e o PP sobre este tema: os catalães não podem decidir sozinhos o seu destino, ou seja, um Estado opressor tem o direito de decidir sobre a retenção violenta de um povo oprimido em suas fronteiras.

Um “leninismo amável” em defesa do Estado social, ou um claro programa anticapitalista?

Inspirado no sociólogo da Universidade Complutense de Madri, Ruy Braga desliza barranco abaixo no que concerne à concepção de Estado e mesmo às tarefas dos marxistas revolucionários, aderindo a um “leninismo à la Podemos.” Segundo Monedero, “vivemos tempos em que precisamos de um ‘leninismo amável’, que enfrente a casta financeira de maneira deliberativa e dialogável”. Já conhecemos a maneira “deliberativa” (plebiscitos pela internet apoiados na proibição da liberdade de tendências políticas) e “dialogável” deste leninismo amável. “Reestruturar a dívida com auditoria” e continuar pagando os abutres credores e a política econômica antiausteridade para “recuperar” os serviços públicos e salários… nos marcos do estado imperialista: propostas bem dialogáveis com o regime de 1978.

Aproveitar a crise de hegemonia que atravessa as instituições espanholas significa para os revolucionários esforços implacáveis para convencer as massas trabalhadoras e a juventude que nenhuma de suas penúrias estruturais será amenizada com reformas no sistema de dominação de classe (o que pressupõe a defesa de reformas progressistas para os trabalhadores, mulheres, jovens, LGBTs e imigrantes, arrancadas na luta parlamentar e extraparlamentar) elevando o questionamento de aspectos do regime político burguês ao questionamento da totalidade do sistema capitalista. Goste-se ou não de falar em “esquerda e direita”, é impossível cumprir esta tarefa sem um programa anticapitalista independente dos trabalhadores.

O “excelente desempenho do ‘leninismo amável’” segundo Braga (uma definição aberrante para um marxista) se funda no fortalecimento das ilusões “cidadãs” nas instituições do sistema capitalista, apelando a um programa político moderado em que a superação do capitalismo está para além de nosso horizonte. Essa visão “realista” de ampliação das democracias liberais subestima o papel social fundamental da classe trabalhadora em qualquer processo de transformação e enfrentamento com os poderes reais do capitalismo. Errejón, ademais, já havia mencionado antes que o “Podemos não é uma coalizão de grupos de esquerda; e se me perguntam, tampouco é um partido de esquerda”.

E o curioso de tudo é que Ruy Braga reconhece, no altar de seus louvores ao Podemos, que se encanta por um tipo de partido que possui uma agenda de democratização do Estado, “Muitos dirão que o Podemos não advoga uma saída socialista para a crise europeia. [...] No entanto, nos marcos da crise que atualmente devasta o sul da Europa, a simples defesa do Estado social já configura um sério desafio à reprodução de um capitalismo financeirizado incapaz de realizar concessões aos subalternos.”

Parece que, dependendo das circunstâncias, há espaço na LIT-QI (do qual faz parte o PSTU) para entender as formações reformistas de esquerda, midiáticas e completamente afastadas dos interesses históricos dos trabalhadores, com programas de gestão dos estados capitalistas com um pouco menos austeridade, como ferramentas viáveis (e não mais um partido operário revolucionário independente, como defendemos os marxistas), se não para por fim à exploração capitalista, para “defender um Estado social” acima das classes sociais.

A estratégia-programa “deles” e a nossa

As conquistas da classe operária devem ser defendidas como ponto de apoio para o avanço de sua consciência de classe. Entretanto, não serão estas formações que conseguirão organizar toda a força social da juventude e dos trabalhadores contra o imperialismo em crise. A política é a “arte de tirar vantagem das situações favoráveis”. O “leninismo amável,” embora encante Ruy Braga e parte da intelectualidade de esquerda, não passaria à prova na escola de Lênin, pois esta escola ensina que mesmo o “Estado social” é um órgão determinado de uma classe e, mais diretamente, impõe o domínio dessa classe. E a melhor forma de defender as conquistas é subordinar a luta por reformas à luta política revolucionária contra o domínio capitalista.

A realidade dá conta de que é possível batalhar, inclusive dentro de formações como Podemos, para atrair setores do 15M e das lutas contra a austeridade que se integraram ao projeto de Podemos para estas posições independentes e outro projeto; e não acriticamente referendar os fascínios burocráticos de um secretário geral. Para nós, o importante é o programa e a estratégia que correspondam à situação.

Carlos Nelson Coutinho opinava que, em tempos que acumularam tantas derrotas e um avanço tremendo do neoliberalismo sobre as conquistas sociais, a mera luta por reformas no sistema capitalista chegava, na prática, a equivaler a uma revolução. Ruy Braga demonstra a mesma opinião neste artigo. Insistimos: o que seria permitido defender dentro do PSTU? Seria a eleição de Podemos uma “revolução democrática”, ao qual se faria exigências, como o PSTU fez ao Syriza na Grécia? É possível, nos países imperialistas, defender apenas o “mínimo” (“raras vitórias organizativas com ocupação dos espaços públicos”) e abandonar a luta por um programa independente de classe que sirva à expropriação dos expropriadores, como meio estratégico para atingir uma sociedade comunista?

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