Sábado 20 de Abril de 2024

Questão negra

APONTAMENTOS HISTORIOGRAFICOS E MILITANTES INICIAIS SOBRE O RIO DE JANEIRO E A QUESTÃO NEGRA

Rio de Janeiro: capital mundial do genocídio negro e de suas lutas escondidas pela burguesia

08 Feb 2013   |   comentários

O reacionarismo constitutivo e sua vasta operação ideológica para encobertar sua origem e erguer um país ao mesmo tempo esbranquiçado e da “democracia racial” passam a fazer sentido. Os negreiros, com seu acumulo de capital, fundavam ou compravam engenhos e plantações de café, os impostos de venda de escravos eram a principal fonte de receitas do Império. Negar à elite brasileira seu passado negreiro é parte da operação que fez o PC brasileiro para (...)

“As nossas esperanças ainda mais redobram observando-se que a África nos está em frente, e em boa parte nos pertence”. José Maria Lisboa, visconde de Cairu, conselheiro de estado, senador do Império.

É com esta certeza de escravocrata que este homem de Estado ergue parte de seus argumentos sobre o futuro destinado ao Brasil. Em 1808 quando escreveu estas linhas não havia modos de e era impossível argumentar a favor de uma “democracia racial”. O Brasil era o principal destino dos negros sequestrados na África. A elite carioca e sua concorrente soteropolitana, era, antes de mais nada, constituída por comerciantes de “grosso trato”(negreiros) 1,2 .

Recuperar parte da história de quem é a elite brasileira, como ela se constituiu, ajuda a entender o presente e a operação ideológica – e material – que ela fez para ocultar seu passado e, ao mesmo tempo, armar a luta contra sua reprodução atual que mantém viva a herança da escravidão no trabalho precário, na moradia precária em favelas, nos “autos de resistência”, nas chacinas e nos presídios.

Relações comerciais, financeiras e de parentesco entre a casa grande, o tráfico negreiro e o senado

Parte substancial da historiografia brasileira não ultrapassa a conclusão de que a elite nativa era senhora de engenho. Não se pergunta de onde vinham os escravos que ela comprava. Uma nova historiografia encontra os mais ricos homens de Salvador e Rio de Janeiro como monopolistas deste tráfico. Pensar uma elite escravocrata que, por um lado, mantinha uma relação comercial com Portugal e Inglaterra baseado no tráfico de escravos, no rebaixamento dos preços do açúcar e café fornecidos pela colônia e nos altos preços dos manufaturados importados da metrópole e que por outro lado era temorosa do levante dos negros é o alicerce para uma historiografia desde já crítica e que ajuda a pensar o Brasil semi-colonial e sua reprodução no trabalho precário e no latifúndio. Porém ilumina só parcialmente o reacionarismo dessa elite, que é já desde o seu nascimento associada aos imperialismos e metrópoles (que lhe permitiam lucrar com o tráfico), que seu Estado foi erguido não só para reprimir, mas também para traficar negros.

O reacionarismo constitutivo e sua vasta operação ideológica para encobertar sua origem e erguer um país ao mesmo tempo esbranquiçado e da “democracia racial” passam a fazer sentido. Os negreiros, com seu acumulo de capital, fundavam ou compravam engenhos e plantações de café, os impostos de venda de escravos eram a principal fonte de receitas do Império. Negar à elite brasileira seu passado negreiro é parte da operação que fez o PC brasileiro para buscar em sua estratégia etapista uma burguesia democrática, nacionalista, etc.

E pela via da compra de terras e de favores diretos ou indiretos à família imperial os senhores do tráfico e do trabalho escravo, esta elite de “grosso trato”, passando por um processo de “latifundiarização” e “nobrificação, iam se constituindo na elite imperial. O Brasil independente foi um Brasil mais monárquico, mais dependente do imperialismo inglês, e onde o tráfico negreiro cresceu exponencialmente3 .

Rio de Janeiro: capital mundial do sequestro negro

As estatísticas mais aceitas cifram em 12,5 milhões os negros sequestrados e trazidos às Américas de 1501 a 1866. Destes, 5,8 milhões vieram ao Brasil (46,4%). O grosso do sequestro negro aconteceu no século XIX, ou seja, já combinando ao capitalismo industrial inglês. De 1776 a 1866 foram trazidos às Américas 5,9 milhões de escravos (47%), dentre estes 3,1 milhões ao Brasil (52%). No Brasil, o apogeu escravocrata concentra-se no período imperial ou do Brasil como sede imperial portuguesa, de 1800 a 1866 foram cerca de 2,47 milhões4 .

Grande parte dos escravos entraram no país pelo Rio de Janeiro. Um milhão destes somente pelo cais do Valongo (1769-1831) recentemente redescoberto, enterrado primeiro pelo Império e depois pela reforma Pereira Passos (1904-1910). Em 1831, com a lei brasileira que proíbe o tráfico de escravos, fica em desuso este cais. Porém, outro milhão e meio de escravos entra ilegalmente no país, movimentando Ilha Grande e Sepetiba como os grandes atracadouros ilegais do país. Entraram mais escravos no Brasil de 1831 a 1850 (segunda lei de proibição do tráfico) do que de 1800 a 1831 5 .

Esta característica do Rio de Janeiro chamava a atenção de todos viajantes e se constituía como um pavor para a elite local. Esta vivia em uma capital de ampla maioria negra, palco de diversas e pequenas resistências cotidianas, fugas massivas, formação de quilombos urbanos e outros em fazendas não tão distantes como os de Manuel Congo e Mariana Crioula em Vassouras. O medo posterior das relações entre operários brancos e negros livres com os escravos, as experiências dos primeiros sindicatos do Rio com suas compras de alforrias ou mesmo falsificação das mesmas como no caso dos panificadores, a proibição de publicar textos anti-abolicionistas pela associação dos trabalhadores gráficos, marcam também quem era (e é) a elite carioca e o Estado que ela ergueu contra seu pânico das massas negras e do potencial que começava a se vislumbrar no entrelaçamento entre luta negra e luta proletária (branca e negra)6 .

Com aterramentos, demolições e ideias, a capital do tráfico negreiro vira a da democracia racial

Como capital mundial do tráfico negreiro, o Rio também era capital mundial de cemitério para “pretos novos” (que morriam antes de serem vendidos), de armazéns de engorda e de instrumentos de tortura. Próximo ao Valongo encontra-se o cemitério dos Pretos Novos, encontrado por acaso por uma família em 1996 (!) ao realizar uma obra em seu quintal. Ali, em um pequeno quarteirão não maior que 100m², jazem 30 mil negros. Este cemitério foi aterrado: há casas, ruas em cima do mesmo. Não longe dali estavam os depósitos, o mercado de escravos que Pereira Passos em suas reformas para tornar a cidade mais rentável ao capital, expulsou pobres e negros do centro, demoliu e mandou se livrar da “quinquilharia” (instrumentos de tortura). No lugar destes nefastos armazéns ele ergueu os “jardins suspensos do Valongo”.

O século XX, da república e da abolição, é no Rio de Janeiro o período de demolição de morros no centro, destruição de cortiços, abertura de largas avenidas, aterramento de praias e regiões costeiras, de desculpas higienistas para repressão dos pobres e negros. É marcado também por revoltas, como a da Vacina (1904), com seu epicentro na região destes armazéns demolidos, que teve sua principal barricada, a da Prata Preta, justamente na rua do Cemitério dos Pretos Novos.

A história desta cidade esbranquiçada, com os pobres e negros removidos, é fundamental de ser recuperada justamente agora quando com as desculpas da Copa e Olímpiadas, Dilma, Cabral e Paes estão reorganizando a cidade e com isto removendo centenas de milhares à Zona Oeste para continuar esta obra elitista e racista do Rio de Janeiro que querem.

Retomar a história para erguer uma nova história

Apesar das ideias da burguesia e seu esforço em apagar a história com a tese da democracia racial, as lutas negra e proletária ressurgem e reerguem as barricadas nas mesmas ruas e vielas. Nos mesmos bairros os negros protagonizaram a revolta da Chibata (1910), a segunda e desconhecida revolta (1911) suprimida por bombardeio da Ilha das Cobras, que mais tarde ecoa em 1964 com os marinheiros em armas buscando o CGT (dirigido pelo PCB e PTB que nunca apareceram na vizinha Praça Mauá onde os marinheiros lhes esperavam) para formar milícias de marinheiros e operários para resistir ao golpe.

Os argumentos dessa elite carioca na academia e n’O Globo ecoam discursos proferidos por senadores do Império (como a justificativa da escravidão como instituição africana). Mas a revolução brasileira também herdará do Rio de Manuel Congo e Mariana Crioula, herdará dos primeiros sindicatos e sua postura ativa em lutar por muito mais do que sua categoria. A revolução herdará da luta negra e da luta proletária a revanche contra esta história suprimida, demolida, para erguer um novo caminho à humanidade, onde a frase que “a África em grande parte nos pertence” do Visconde de Cairu seja virada de cabeça para baixo, e desde esta cidade com um dos maiores contingentes proletários negros do planeta se erga caminho para emancipação dos negros no Brasil, nas Américas, e na África e por esta via de toda humanidade.

1 Para a elite negreira carioca e seu monopólio dos atuais Congo e Angola entre vários autores ver: FLORENTINO, Manolo. “Em costas Negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: séculos XVIII e XIX”. São Paulo: Companhia das Letras, 1997; FRAGOSO, João Luís Ribeiro. “Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830)”. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.

2 A elite baiana por sua vez dominava o comércio com Guiné e Benin. Esta, porém, teve seu comércio fortemente afetado pela proibição inglesa em 1810 de tráfico de escravos ao norte da linha do Equador (onde localizavam estas feitorias). Para aprofundar-se na elite negreira soteropolitana ver: VERGER, Pierre. “Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos: dos séculos XVII a XIX”. Rio de Janeiro; São Paulo: Biblioteca Nacional; Corrupio, 2002.

3 Duas pequenas ilustrações. Primeira, o traficante Antônio Lopes, homem mais rico do Rio de Janeiro, doou o atual Museu Nacional, antiga moradia imperial para a família real estabelecer-se. Dom João VI ao chegar ao Rio de Janeiro é agraciado por “bons homens locais” com diversas doações de dinheiro para ressarcir a viagem, sustentar a corte, quase todos eles eram negreiros e donos de fazenda no Vale do Paraíba fluminense. Todos eles são rapidamente são agraciados com títulos de nobreza.

4 Para dados da escravidão ver o projeto acadêmico coletivo “Slave voyages”, disponível em www.slavevoyages.org

5 Ver: Chalhoub, Sidney. “A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista”. São Paulo: Cia das Letras, 2012

6 Para mais ver: “A abolição não foi um presente! Os escravos e também os trabalhadores negros e brancos lutaram por ela!”, disponível em: http://www.ler-qi.org/spip.php?article3687

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