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RIO DE JANEIRO

RIO 450 ANOS, UMA HISTÓRIA QUE OCULTA OS TRABALHADORES E OS NEGROS

20 Jan 2015   |   comentários

O Rio de Janeiro comemora 450 anos. Nas mãos de sua elite continuará uma história de ocultamento dos negros e dos trabalhadores.

A cidade do Rio de Janeiro completa no dia 1 de março do 2015, 450 anos. Seguindo a lógica das cidades globais, concorrentes num mercado internacional de cidades para atrair investimentos, o Rio é gerido como uma empresa e um produto a ser amplamente explorado.

Considerando as grandes vantagens que as características do Rio oferecem para os empreiteiros como, por exemplo, as riquezas do petróleo o prefeito Eduardo Paes junto com os empresários cariocas aproveitaram a ocasião do aniversário da cidade para transformá-la com uma série de comemorações festas e eventos que se estenderão até março de 2016. Estes eventos começaram no dia 31 de dezembro de 2014, com o réveillon de Copacabana. A desculpa perfeita para emendar a Copa do Mundo e as Olimpíadas, e não parar a festa de lucros que a cidade maravilhosa oferece à burguesia nacional e estrangeira. Lucros que também se relacionam com as imensas intervenções urbanas, deslocando e removendo moradores e contribuindo para a especulação imobiliária.

Mas além da sede de lucro por trás do RIO 450 qual o discurso da comemoração dos 450, ou dito de outra forma, o que a prefeitura comemora e o que oculta com a comemoração do RIO 450?

Cidade Maravilhosa? Nem para todo mundo...

O portal da prefeitura criado para o 450º aniversário apresenta um calendário anual dedicado inteiramente a comemorar um determinado Rio de Janeiro. O portal retrata uma cidade de fantasia, distante da realidade da maioria da população carioca, onde tudo é festa, praia e samba, cultura e conversa de boteco. Isto dista do dia a dia de milhões de cariocas da zona norte, oeste e baixada e mais se aproxima com a realidade dos moradores da "cidade formal" na zona sul da cidade, ou de outras áreas, mas que gozem de tempo suficiente para tal modo de vida em toda sua extensão de tempo.

O vídeo promocional do RIO 450faz um chamado a uma comemoração com "a cara do carioca". Em 37 segundos, a prefeitura do Rio simplifica a realidade de uma cidade inteira, de quase sete milhões de habitantes a "quem gosta de praia, de samba, de funk, cinema, skate e boteco". Isto é verdade. Muitos cariocas gostam de praia, samba ou funk, mas representa só uma pequena parte da vida desses Cariocas, muitos deles trabalhadores e moradores de zonas distantes das praias. A praia está lá, o sol nasce para todos, porém a sombra para se refrescar do sol, o fácil acesso à praia, o tempo para deslocarem-se à praia, os custos de consumir coisas, bem isto, aí não é para todos e choca-se com o mundo da cidade maravilhosa da propaganda oficial.

A marca RIO450 torna uma "obrigação" o ser feliz, ou ao menos mostrar-se feliz. Não importa o trabalho precário, as horas no trem, a moradia precária, a violência policial. Os cariocas, "gente que vive, cria, sofre, ama e enfrenta a dificuldade sem nunca tirar o sorriso do rosto". Isto faz parte do que define os ideais burgueses para a cidade, mas não estão separados da dura vida dos trabalhadores da cidade do Rio, e que acontece, na sua maioria, longe das praias de Copacabana e Ipanema ou da Barra da Tijuca.

450 anos reduzidos a um "estilo de vida", e que tentam tornar feliz tudo, até mesmo o sofrido trabalho dos vendedores de mate na praia. Os vendedores deste produto viram uma marca da cidade na propaganda da prefeitura, ignorando o drama do sol, os danos aos olhos que sofrem estes trabalhadores tão expostos à luminosidade e reflexo da areia.

Segundo a declaração da marca do RIO450 "é uma proposta para provocar reflexões lúdicas sobre quem somos e o quanto amamos estar onde estamos. Ela foi pensada para resgatar o orgulho de pertencer" (ao Rio). Neste esquema o trabalho que sustenta a fantasia do Rio nem é reconhecido nas comemorações do 450º aniversário. Quase como se todo gari, todo motorista de ônibus devesse agradecer por ser explorado no Rio e não em São Paulo ou BH porque pode fazer isto enquanto observa uma bela paisagem. Sabemos que essa prazerosa vida de sonhos não é a realidade da maioria dos cariocas. Muitos dos moradores da cidade do Rio têm pouco e difícil acesso as principais praias da zona sul. E os cariocas que chegam deônibus da zona norte são revistados e achacados pela polícia.

Esse amor pela cidade é utilizado por estes políticos e empresários corruptos e disfarçam a roubalheira e as negociatas com a cara da "felicidade do povo". Porque numa cidade tão dividida entre as classes sociais, entre áreas cheias de direitos, inclusive “à cidade”, com praças, transporte, e outros objeto de descaso com direito a moradia e sob mira da polícia e UPP, o amor pela cidade e o sentimento de se sentir parte desse sonho e desta festa, as vezes é a única forma de inclusão dos trabalhadores e dos negros nas favelas.

Esta “inclusão” dos trabalhadores nesta cidade, é parte fundamental da hegemonia burguesa no Rio. Sem este “pertencimento” a tão flagrante contradição social só poderia explodir e o medo burguês do “morro descer” ser contido com um nível ainda maior de repressão e assassinatos policiais. Sem “amor ao Rio”, “um Rio de todos”, sem estes elementos de “consenso” a hegemonia exigiria níveis ainda maiores, e difíceis de lidar, de coerção. Para fundar este consenso, que se insere na ideia de “democracia racial”, é preciso apagar as classes sociais, sobretudo a classe trabalhadora.

A Carioquice do RIO450 promovida pela prefeitura representa os interesses que as elites cariocas conseguem manipular para fazer do aniversário da cidade um grande negócio a sua imagem e semelhança, para consumo do capital imperialista. Não nasce de uma analise dos cariocas, mas do projeto de sociedade e de cidade que está sendo impulsionado. E não é novo na história da cidade do Rio.

A cidade de todos por todos e para todos

A partir do final do século XIX, começou a implementar -se um projeto de cidade conforme os padrões das grandes cidades europeias. O ideal era Paris, cidade cosmopolita e moderna. O Rio, na cabeça da burguesia local, já era europeia, mas na realidade a cidade parecia um grande mercado persa, mais semelhante às cidades do oriente médio do que das cidades europeias referências das elites. Foi expulsa do centro cidade uma grande parte da população. Uma gentrificação implementada pelo Estado, principalmente pelas mãos da polícia, sob pretexto de melhorar a saúde, associando as moradias do povo pobre com doenças e retirando a grande maioria dos moradores do centro da cidade e deslocando-os para os morros e novos bairros em formação nos limites da cidade. Por exemplo, o magnífico Teatro Municipal e a Avenida Rio Branco, que estilizam este projeto foram construídos a partir da expulsão de milhares de moradores de pensões, e este processo deu lugar ao adensamento de favelas que surgiam naquele momento como o morro da Providência e Santo Amaro.

O sonho da Paris tropical implicava o branqueamento do centro da cidade, branqueamento racial associado ao conceito de higiene e limpeza "necessário" para modernizar a cidade. Assim, a questão de cor, de raça, passava a ser uma questão de saúde, e o corpo negro visto como portador de doenças. As elites impulsionaram estas mudanças na cidade colocando-as como necessárias para o desenvolvimento da cidade e da sociedade brasileira. Apresentaram a renovação como uma transformação feita por todos e para todos.

Assim, com a exploração do sentimento dos cariocas pela cidade do Rio, os interesses da elite conseguem chegar até os habitantes pobres e trabalhadores da cidade, utilizando a identificação com a cidade para implementar as mudanças sociais e urbanas relacionando-as com essa imagem da cidade de todos por todos e para todos. Uma cidade sem classes, onde o amor pelo Rio une e elimina as diferenças e os antagonismos. Quem questionar isto pare como anti-carioca.

Alegria do pobre dura pouco

A mesma situação se repete agora na comemoração dos 450 anos da cidade e foi o eixo da campanha de Eduardo Paes na reeleição para prefeito da cidade em 2011. Sob o slogan de sua coligação "SOMOS UM RIO" a campanha de Paes explorou os mesmos conceitos e ideias que conformam a Carioquice das comemorações de 2015. Praia, Lazer e Samba. A cidade nos une. Tudo é felicidade e paz. O carioca “enfrenta a dificuldade sem nunca tirar o sorriso do rosto".

Essa tentativa de do governo e das elites tem a mesma lógica de alinhar o povo pobre e trabalhador nos parâmetros dos projetos burgueses de sociedade, através da festa e da comemoração, como foi durante a década de 30. A utilização do carnaval para promover uma identidade nacional durante o governo de Getulio Vargas que alinhasse a população pobre e trabalhadora no projeto de enriquecimento da nação do monocultivo paulista à Industrialização do Brasil assemelha-se bastante ao projeto de cidade do Rio atual.

O projeto de Vargas também procurava fomentar ideias nacionalistas. Utilizando-se do samba, perseguia fortalecer a identidade nacional para combater as influências de ideias externas que contaminassem dito projeto, tal como as de operários estrangeiros entre a classe trabalhadora, que pudessem atentar contra a ordem brasileira. E este projeto permitia além disto incorporar, ritual e sorridentemente, e não como sujeito das greves, rebeliões e quilombos, mas como mero adorno, a imensa população negra da cidade.

A história negra que não entrou na festa

O projeto do RIO450 praticamente nem toca o fato que durante parte desses 450 anos o Rio de Janeiro foi o maior porto escravista do mundo e a cidade com a maior população escrava urbana, segundo o censo de 184913. (Segundo alguns autores, a maior cidade negra no mundo no século XIX). O portal dedica escassas linhas em 2 artigos à importância dos escravos e dos negros para o Rio de Janeiro. Mas o faz esvaziando-a de toda a luta que os negros levaram a frente contra a elite escravista do Rio de Janeiro. Elite esta que é em parte a mesma que hoje ao contrário dos grilhões e instrumentos de tortura exibe sua saída de praia e um sorriso cínico de que a cidade estaria integrada e livre de racismo.

Comemoram 450 anos vazios. Sepultam no esquecimento a greve de escravos do estaleiro Mauá, segundo algumas fontes a primeira greve da história do Brasil. Sepultam as lutas e colocam a presença negra na cidade separada de todas as lutas dos escravos no Rio. Ou mesmo lutas operárias como o controle da produção pelos trabalhadores gráficos que, defendiam a abolição da escravidão e proibiam qualquer associado de seu sindicato de imprimir, mesmo sob ordens dos patrões, qualquer material contra a abolição. E da mesma maneira que os trabalhadores do Arsenal da Marinha coletavam dinheiro para comprar alforrias e libertar os negros ou o sindicato dos panificadores que forjava alforrias e organizava fugas de escravos.

A zona portuária, agora batizada o Porto Maravilha, área vital nesse projeto, definida pelos seus organizadores como "A nova porta de entrada do Rio" já foi à porta de entrada de milhares de escravos na cidade. O Cais do Valongo foi o ponto de entrada de mais de 700 mil escravos até 1830. O porto também foi o túmulo de muitos deles que morriam ao chegar ao Brasil, produto das condições miseráveis em que viajavam. Isto é parte da história da cidade e recentemente na frente do Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos na Gamboa, foram achados novos ossos de escravos num momento em que o próprio instituto enfrenta uma crise e anunciava o fechamento das suas portas por falta de apoio do Estado que leva frente um projeto de RIO que não tem espaço para a história dos negros, só exploração, violência e opressão da mão da Policia Militar que nasceu para caçar escravos e desde então vem controlando e assassinando a população pobre e negra das favelas do Rio de Janeiro. Da mesma forma que o prefeito Pereira Passos que liderou o projeto “parisiense” do Rio havia enterrado sob asfalto o Cais do Valongo, agora sem enterrar nada, um novo Rio, novamente com os negros deixados de lado vai sendo erguido, mesmo que uma plaquinha seja dedicada aos negros.

E outra festa está acontecendo nas Ruas do Rio

A história recente mostra que o carioca não é simplesmente aquele sujeito naturalmente ordeiro e pacífico e que enfrenta a dificuldade sem tirar o sorriso do rosto. Em junho de 2013 a juventude carioca com 1 milhão reunidos na presidente Vargas, demonstrou que essa imagem contrasta com a vida cotidiana dos jovens e trabalhadores da cidade do Rio.

Na greve dos Garis que em pleno Carnaval do 2014, lutou e venceu os burocratas do sindicato do Asseio, a patronal da Comlurb e o governo de Eduardo Paes que chamou esses trabalhadores de marginais e delinquentes.

Enquanto as escolas de samba desfilavam no Sambódromo, os garis fizeram a festa, quebrando com a imagem do Renato Sorriso, que trabalhando (supostamente) e sorridente, aceita seu destino. Os garis lutaram com a certeza de que a vitória era possível com unidade e sem arrego. Sabendo que os patrões perderam, que o lixo estava no chão, e ninguém ia tirar. Que a luta da classe trabalhadora, a confiança em suas forças, pode trazer melhoras na vida dos habitantes e do povo pobre negro e trabalhador do Rio de Janeiro e nunca será da mão do projeto capitalista de cidade-empresa que Eduardo Paes tenta implementar desde a prefeitura que haverá melhorias. Pois esse projeto o que pretende é sequestrar a cidade para os interesses privados das empresas. Prova disso são as inúmeras remoções que precederam a Copa do Mundo e as próximas olimpíadas em 2016. Esse projeto de cidade também pretende se utilizar da cultura dos Cariocas para encher mais os bolsos de dinheiro. Prova disto é que promovem expressões culturais como o funk para os turistas e estrangeiros na zona sul, mas dentro das favelas, a polícia militar e as UPP’s proíbem bailes Funk.

O RIO450 é uma festa, mas também é uma campanha para elevar os "ideais cariocas" que à burguesia lhe são úteis. Reforça os estereótipos do carioca e do brasileiro que são por hoje o "produto de exportação" em que se baseiam a atual indústria cultural e turística em que a própria cidade do Rio tem se transformado. E sob estas bases “cariocas” que o domínio e imagem do brasileiro e do carioca para si mesmo pode ser feita, ignorando tão flagrantes conflitos de classe.

A "carioquice" é hoje utilizada pelos empresários e políticos corruptos para fomentar o Rio empresa. A "carioquice" sem história, aliás, essa imagem construída do Rio que todos os dias, e por trás do palco, oprime e assassina, da mão da polícia militar, o povo pobre e negro das favelas e apaga a história das lutas dos escravos e dos trabalhadores para conseguir sustentar um projeto capitalista de cidade e sociedade onde o povo pobre, os trabalhadores e os negros não tem espaço, salvo se forem sorridentes vendedores de mate.

Mas o sorriso carioca é muito maior do que o uso que a burguesia faz dele. Ele trás em germe a felicidade de uma humanidade reencontrada consigo mesma, que utilize de outra forma os espaços públicos, a cultura, a arte e as expresse em seu cotidiano. Uma felicidade que é parte fundamental da cidade maravilhosa.
Para libertar este sorriso de sua obrigatoriedade mesmo nas adversidades do trabalho e sua servidão a interesses alheios aos dos trabalhadores, é preciso libertá-lo das amarras da elite, e isto passa pela luta contra este projeto de cidade que está sendo comemorado.

Outras fontes:

RODRIGUES, Antonio Edmilson M. História da Urbanização no Rio de Janeiro - A cidade: capital do século XX no Brasil. Rio de Janeiro, Mimeo, 2007.

MALAGUTI, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro. Dois tempos de uma história. Revan,2003.

RODRIGUES, Antonio Edmilson M. História da Urbanização no Rio de Janeiro - A cidade: capital do século XX no Brasil. Rio de Janeiro, Mimeo, 2007.

SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. 2014, Em defesa do direito de greve dos trabalhadores garis: O encontro do carnaval com sua história, Revista Luta de Classes, São Paulo.
ALFONSO e MATOS (orgs). Questão Negra, Marxismo e classe operária no Brasil, São Paulo, Edições ISkra. 2013.

MEIRELLES, RENATO. Um país chamado favela: A maior pesquisa já feita sobre a favela brasileira / Renato Meirelles, Celso Athayde. São Paulo. Editora Gente, 2014

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