Quarta 24 de Abril de 2024

Primeira Conferência - Parte III

08 Oct 2007   |   comentários

O populismo russo e o marxismo

Agora desenvolveremos o que consideramos um tema central: a polêmica entre populistas e marxistas. Os narodniki [1] negavam que o proletariado poderia cumprir um papel importante na próxima revolução russa. Os populistas ’que, em sua maioria, eram estudantes- atendiam ao chamado de Herzen, Chernichevski e outros grandes líderes liberais da burguesia, que propunham se dirigir para o campo. E centenas de jovens de classe média giram suas atenções para lá, ansiando despertar a paixão revolucionária nos camponeses, que os vêem com maus olhos; da mesma forma que a polícia czarista que logo descobre os agitadores, debaixo das falsas roupas do povo pobre.

O populismo não era um movimento uniforme; se caracterizava por sua grande diversidade que incluía desde um setor definido claramente como anarquista, até um setor liberal burguês. No entanto, se observa-se bem, percebe-se que não se trata de duas posições tão contrapostas, porque bem se poderia denominar os anarquistas de “democratas revolucionários” : não acreditavam no socialismo, mas sim na Revolução Francesa que encarnava os ideais da fraternidade, igualdade e liberdade. Sua teoria se inclinava ao modelo de uma revolução burguesa; claro que não para construir um novo estado centralizado como havia sido o estado francês, mas um sistema de comunas associadas. O mais exato é dizer que se tratava de democratas pequeno-burgueses.

Se o populismo de 1870 teve um papel muito revolucionário, foi porque despertou os camponeses ’ e inclusive grande parte da classe operária - para a vida política; por outro lado, o populismo de 1880 formou uma corrente que pode ser denominada, com toda justiça, como burguesa liberal. Ou seja, há dois populismos que são totalmente distintos: um é progressivo; ainda que o caracterizemos como democrata pequeno-burguês, tem o objetivo de libertar o campesinato, de emancipar-se da autocracia. Os narodniki dos anos 70 criaram um grande número de organizações que entraram no movimento revolucionário e que representaram grandes conquistas para as massas, como Zemlia i Volia (Terra e Liberdade) e Narodnaia Volia (Liberdade do Povo). Entre esses primeiros narodniki houve importantes figuras que mostraram um grande heroísmo, e ainda que não tenham sido proletários revolucionários, foram grandes democratas revolucionários.

A segunda geração de narodniki, pelo contrário, cumpriu um papel diretamente reacionário: buscou aproximar-se dos liberais burgueses e em seu seio se encontram os que, mais tarde, darão origem ao KDT, um partido democrata constitucional.

Então, entre os populistas, havia anarquistas que estavam contra a luta política, mas eram revolucionários que queriam derrubar a autocracia; enquanto o outro setor estava constituído por oportunistas liberais. No entanto, cabe esclarecer que a ala revolucionária nunca foi proletária nem comunista, porque não buscava a libertação definitiva da escravidão assalariada, que é a chave do programa socialista. É justo dizer que levavam adiante ações heróicas que haviam permitido que ganhassem o respeito e a simpatia das massas: participavam em atentados contra ministros, contra o czar, contra todos esses funcionários do regime autocrático tão odiados por um povo que se encontrava esmagado sob a bota da opressão. Suas ações violentas se amparavam num clima geral de hostilidade e desprezo a esses funcionários, que é revelado neste poema de Puchkin: Oh despóticos vilões / os odeio a vós e a vossa descendência / verei vossa ruína e a morte de vossos filhos / com a mais malvada das delícias. Como está distante a sensibilidade dos intelectuais pequeno-burgueses atuais dos versos deste grande poeta nacional russo que, em ocasião da Revolução Dezembrista da qual participou, escreveu estas ferozes linhas!

Os marxistas, porém, não se opunham por princípio à violência individual do tipo terrorista que praticavam os narodniki, mas diziam que o assassinato deste ou daquele ministro não alterava as coisas, que era necessário impulsionar a sublevação das massas, organizar milhões de pessoas, e só quando as massas estivessem organizadas e quando chegasse a hora decisiva, recorreriam ao levantamento armado (algo que, como veremos mais adiante, foi um fato na Rússia em 1905 e levou à vitória em 1917). É claro que a prática do terrorismo individual, de alguma maneira, misturava as cartas: dava aos populistas uma aparência mais revolucionária que aos marxistas.

Mas a chave da discussão entre marxistas e populistas era o papel da classe operária na Rússia. A classe operária industrial cumprirá um grande papel na próxima revolução russa?

Esta discussão, em última instância, está intrinsecamente ligada à questão da hegemonia do proletariado [ver quadro], quer dizer, ao papel de liderança do proletariado e sua primazia na revolução social, em relação às outras classes oprimidas. O pai desta idéia foi Plekanov, quem no primeiro congresso da IIº Internacional, em Paris em 1889, disse: “A revolução russa triunfará como uma revolução da classe operária ou não triunfará” . A perspicácia dos marxistas ’ em um tempo em que o proletariado só começava a surgir e quando ainda não se revelava como uma grande força na arena política ’ prenunciou que esta classe incipiente podia ser líder na revolução que se aproximava, assumindo inclusive a liderança do campesinato, numericamente mais poderoso.

Um dos líderes da Narodnaia Volia, Lev Tijomirov, impactado pelo surgimento do proletariado nas cidades ’ particularmente em São Petersburgo -, havia se convencido de que estes eram muito receptivos à propaganda revolucionária e que era necessário contar com eles. Tijomirov, que havia se enfrentado com Plekanov em diversas oportunidades, fez uma fórmula de compromisso, dizendo que não negava que “os operários eram muito importantes para a revolução” . Plekanov inverteu os termos e lhe disse que os populistas não compreendiam o papel histórico da classe operária; que o correto era dizer que “a revolução é importante para os trabalhadores” .

Outro pai da idéia da hegemonia do proletariado foi Lenin. Em 1894 escreveu sua primeira grande obra revolucionária intitulada Quem são os ”˜Amigos do povo”™ e como lutam contra os social democratas, na qual sustenta a idéia de que, se ainda os trabalhadores russos não compreendem o papel hegemónico da classe operária ’ ou só o compreendem setores minoritários’; se aproxima o tempo em que todos os trabalhadores avançados da Rússia o compreenderão. E quando isso acontecer, a classe operária liderará o campesinato e levará a Rússia à revolução comunista.

Os marxistas legalistas

Anteriormente assinalamos que houve uma grande onda de lutas operárias na Rússia entre 1895 e 1900, que não foi só um ascenso proletário, mas também uma luta política generalizada. Então, surgiu uma tendência denominada “marxismo legal” .

Os primeiros círculos marxistas haviam surgido na Rússia em 1883, quando Plekanov criou o grupo Emancipação do Trabalho; os “marxistas legalistas” surgiram doze anos depois, em 1895. A primeira corrente estava dirigida por Plekanov e Lênin, a segunda, por dois economistas que logo terminaram na reação, mas que tiveram grande importância nas discussões do marxismo internacional, Struve e Tugan Baranovsky.

Struve escreveu um livro intitulado Notas Críticas, que estava dirigido contra o populismo e se centrava em se havia ou não capitalismo na Rússia. Struve tinha razão quando, em sua crítica aos narodniki, escreveu: “Vocês sonharão em vão com alguma Rússia auto-suficiente e com independência de pequenos proprietários. Saião do cenário narodniki e olhem ao seu redor: a Rússia está se movendo adiante, fábricas e estabelecimentos estão crescendo e o proletariado urbano está realizando sua aparição. O capitalismo na Rússia é inevitável e a Rússia passará por ele.” Nisto, os marxistas legalistas coincidiam com Lênin e Plekanov. Mas na verdade, a tarefa imediata da época consistia em demonstrar não só que o capitalismo era um sistema superior ao escravismo e à servidão feudal, mas sim em dar uma saída para esta nova exploração que surgia. Struve e Baranovsky, pelo contrário, eram apologistas do capitalismo. Falavam com palavras poéticas do surgimento das fábricas, da eletrificação do país, dos meios de transporte e comunicação e de que isso abria brechas nas paredes do feudalismo.

A tarefa dos marxistas, pelo contrário, era dupla: por um lado, tinham que golpear os narodniki, que não criam que houvera capitalismo e asseguravam que esse sistema era como um inferno, uma praga, porque quebrava a comuna camponesa, enfrentando a ricos e pobres. Frente a isto, os marxistas legalistas diziam “sim, é assim, mas é inevitável” . Por isso, os marxistas como Lênin e Plekanov, por um lado, tinham que lutar contra os populistas e, por outra parte, enfrentar os “marxistas legalistas” , aportando que era necessário organizar a classe operária em um partido de trabalhadores. Struve resolveu bem a primeira tarefa, mas se esqueceu da segunda!

Nestes combates contra os populistas, os marxistas legalistas e outras tendências foram forjando o Partido Operário Social-democrata Russo (POSDR) [2]. Disso trataremos no próximo artigo.

Lênin e a hegemonia do proletariado

“... o grande capitalismo rompe inevitavelmente toda ligação do operário com a velha sociedade, com determinado lugar de residência e com determinado explorador; o une, o obriga a pensar e o situa em condições que lhe permitem dar começo à luta organizada. Por conseguinte, os social-democratas [se refere aos revolucionários, NdeR] dirigem toda sua atenção e toda sua atividade à classe dos operários. Quando seus representantes de vanguarda assimilarem as idéias do socialismo científico, a idéia do papel histórico do operário russo, quando estas idéias alcançarem uma ampla difusão e entre os operários se construírem sólidas organizações que transformem a atual guerra económica esporádica dos operários em uma luta consciente de classes, então o OPERà RIO russo, colocando na cabeça todos os elementos democráticos, derrubará o absolutismo e conduzirá O PROLETARIADO RUSSO (ao lado do proletariado de TODOS OS PAà SES), pelo caminho direto da luta política aberta, à REVOLUÇÃO COMUNISTA VITORIOSA.” Lênin, Quem são os “Amigos do Povo” e como lutam contra os social-democratas, 1894

Glossário

Chernichevski, Nikolai (1828-1889) Filósofo e economista russo, democrata revolucionário. Desmascarando o caráter feudal da reforma camponesa de 1861, exigia que se confiscassem as terras dos grandes latifundiários que foram nacionalizadas e fossem cedidas para o usufruto das comunidades camponesas.

Herzen, Alexander (1812-1870) Intelectual e revolucionário russo. Afirmava que a comunidade camponesa tradicional da Rússia (mir) respondia a um modelo socialista. Desde 1852 viveu exilado em Londres, mas exerceu grande influência sobre a oposição clandestina ao regime dos czares.

KDT Sigla em russo de Partido Constitucional Democrata, um partido burguês fundado em 1905, que apoiou a monarquia constitucional e logo se inclinou a uma república liberal burguesa.

Plekanov, G. (1857-1918) Pensador e ativista do socialismo russo. Era considerado o introdutor na Rússia do pensamento de Marx e Engels. Nascido numa família da pequena nobreza se uniu aos círculos revolucionários que lutavam contra o czarismo desde seus tempos de estudante. Exilado na Suíça desde 1880, ali conheceu Lênin e lhe introduziu as idéias marxistas; ali fundou também, em 1883, o grupo Emancipação do Trabalho, embrião do Partido Operário Social-democrata Russo (que contribuiria na fundação em 1894). Ao mesmo tempo, desenvolveu toda uma obra teórica seguindo as idéias da social-democracia da Europa Central e Ocidental. Quando em 1903 o partido rompeu entre os bolcheviques de Lênin e os mencheviques de Martov, Plekanov se inclinou pelos primeiros, para decidir-se mais tarde pelos últimos.

Puchkin, Aleksandre (1799-1837) Poeta e novelista russo. Pouco antes, em 1817, entrou em contacto com um círculo literário que, progressivamente, foi se convertendo em um grupo político clandestino. Fez parte do movimento de oposição ao regime czarista que foi o gérmen da revolução dezembrista. Acusado de atividades subversivas, foi obrigado a exilar-se.

Struve, Piotr (1870-1944) Ensaísta e político russo, um dos principais representantes do chamado “marxismo legal” . Em 1894 escreveu Notas críticas acerca do desenvolvimento económico da Rússia, criticada por Lênin e Plekanov, na qual opós as teses marxistas e populistas, solidarizando-se com as teorias malthusianas. Depois de romper definitivamente com o marxismo e a social-democracia russa, foi membro do Comitê Central do KDT e líder da ala direita liberal.

Tijomirov, Lev (1850-1922) Escritor e ativista populista russo. Em sua juventude foi um ardente defensor do uso da violência e do terror contra o regime czarista. Depois da Revolução de 1917, se converteu no líder dos periodistas e escritores direitistas.

Tugan-Baranovski, Mijail (1865-1919) Economista e historiador russo. Foi ministro de Finanças da Ucrânia (1917-1918). Frente aos populistas, afirmava que era possível o desenvolvimento do capitalismo na Rússia. Também criticou a teoria marxista do valor acrescido. Em sua obra “As crises industriais na Inglaterra” expós sua teoria das crises, segundo a qual estas são provocadas pela desproporção entre inversão, economia e consumo.

[1Populistas, em russo.

[2Nessa época se chamava social-democrata e depois da Revolução de Outubro de 1917, Lênin decide mudar “social-democrata” por “comunista” . O nome “social-democrata” tinha a ver com o fato de que o movimento operário era a ala esquerda das revoluções burguesas que se faziam contra os governos feudais e as monarquias absolutas. Os operários encarnavam os ideais, então, da democracia social: aqueles democratas suficientemente conseqüentes que estavam pela resolução, não só dos problemas políticos, mas também dos problemas sociais.









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