Sexta 19 de Abril de 2024

PARTE I

Os sujeitos

23 Dec 2007 | “Não tinha nada de social nem de econômico, era o anticomunismo, era a posição exacerbada deles, ideológica também. Isso realmente deu coesão às Forças Armadas, quando nós sentimos o processo subversivo atingir o sargento, as nossas unidades, as nossas organizações” (coronel Moraes Rego) [1] “Nós os sargentos e oficiais progressistas, autênticos nacionalistas, pegaremos em nossos instrumentos de trabalho e faremos as reformas juntamente com o povo, e lembre-se os senhores reacionários que o instrumento de trabalho do militar é o fuzil” (intervenção do subtenente Gelsy Rodrigues Correa no comício organizado pela CGT em 11 de maio de 1963).   |   comentários

1. O “FATOR” PCB

Para precisar o papel cumprido pelo PCB na etapa de enfrentamento
aberto, é útil recapitular brevemente a trajetória percorrida pelo partido nos
anos anteriores, desde os fins da Segunda Guerra Mundial, quando chegou
a alcançar uma posição proeminente entre as massas em todo o Brasil,
especialmente entre 1945 e 1946.

Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que o “Partidão” desempenhou
nesse momento um papel duplo: por um lado, colocava-se como portador
das reivindicações económicas e democráticas que explodiam em greves de
norte a sul do país, lutando para se mostrar como representação política do
proletariado que recém terminava de se colocar como ator central na política
nacional, e aproveitando as condições dadas pela crise do Estado Novo. Por
outro lado, desempenhava um papel contra-revolucionário consciente, como
agência de Moscou, aproveitando o grande prestígio que a vitória da URSS contra Hitler havia dado aos PCs de todo o mundo, para implementar a
linha de colaboração com o imperialismo, segundo o esquema de divisão
do mundo em “zonas de influência” , definida nos acordos de Yalta e
Potsdam. Isso significava, no plano nacional, um alinhamento irrestrito com
Vargas, desde quando este passa em 1942 a integrar o bloco dos Aliados,
encabeçado por EUA e URSS.

São os tempos em que o lendário Luiz Carlos Prestes, maior líder popular
do país depois de Vargas, recém saído da cadeia, do alto dos palanques
exortava os milhares e dezenas de milhares de trabalhadores e camponeses a
“evitar agitações” , “apertar os cintos” , “passar fome se for preciso” , tudo isso
para “combater o fascismo” , que seria, na retórica stalinista, o único
beneficiário da desestabilização do regime. Na verdade, o sentido traidor de
uma tal orientação só pode ser entendido tendo em vista que o enorme
ascenso grevístico, primeiro de suas proporções na história do país, havia
sido preparado nos anos anteriores pelos ritmos de trabalho extenuantes
impostos pela burguesia, a pretexto do esforço de guerra e sob a guarda do
Estado Novo varguista. Assim, a linha do “apertem os cintos” era a resposta
do PCB, que jogava com as ilusões democráticas das massas ao mesmo
tempo em que buscava conter a explosão do descontentamento operário,
quando as massas se rebelaram contra tais condições e buscaram reivindicar
sua parte no crescimento económico alcançado pelo país neste período.

Através de campanhas de filiação massiva, de acordo com relatos da
época, o partido nesse período organizava reuniões em clubes com todos os
operários de tal ou qual fábrica para discutir problemas cotidianos, e,
enseguida de um breve discurso de algum dirigente exaltando o papel do
PCB na luta pela democracia e por melhores condições de vida para o povo,
era realizada a filiação de todos os que se mantivessem presentes, fossem
dezenas, centenas ou inclusive milhares de uma só vez. Repetindo esse
método, o Partidão chegou em clima de euforia a contabilizar a cifra de 200
mil afiliados, o que se revertia em uma pressão das massas sobre a militância
do partido que gerava constantes crises entre as bases e a direção do PCB, o
que levou a que alguns intelectuais viessem a caracterizar a existência de
“dois PCs” .

O caráter oportunista ’ e portanto superficial ’ de sua construção ficou
demonstrado pela sua incapacidade de lutar contra o giro bonapartista do
regime que em 1947 o pós na ilegalidade, fechou suas sedes e imprensa, e
cassou seus parlamentares em todo o país.

Depois disso, e como resposta à intensa repressão governamental, o PCB
’ mantendo integralmente seu caráter contra-revolucionário e de agente
incansável da conciliação de classes ’ assumirá umdiscurso “insurreicionalista” ,
quer dizer, atravessará os anos seguintes pregando um constante apelo ao “levantamento armado” contra os governos de plantão (tanto contra Dutra
quanto posteriormente contraVargas), caracterizando-os indistintamente como
governos de traição nacional e entrega ao imperialismo norte-americano,
recusando-se a atuar na estrutura sindical oficial (onde estavam as massas) e
chamando a construção de sindicatos paralelos, etc. Entretanto, essa nova fase
era apenas uma máscara de “esquerda” para a mesma estratégia de conciliação
com a burguesia. O PCB, ao mesmo tempo em que se isolava das massas,
chamava a formar uma “Frente de Libertação Nacional” com setores da
burguesia oposicionista que só existiamemsua imaginação, para “derrubar” os
setores burgueses realmente existentes. Ou seja, a surrada estratégia de
“revolução por etapas” , nos velhos moldes do que foi defendido pelo partido
desde os anos 1930 e que, como veremos, continuaria pautando sua ação nos
embates seguintes da luta de classes.

A partir da segunda metade do governo de Vargas, o PCB se relocaliza e
inicia o processo de enraizamento no movimento operário que lhe dará o
papel de destaque no futuro ascenso operário e de massas que até então
apenas se esboçava. Para os fins deste artigo, basta dizer que o novo giro era
produto do choque da orientação anterior com a própria realidade, choque
esse que se dava por distintas vias, seja pelo isolamento a que o partido
chegou, seja pela clara (inclusive para as massas) diferença entre os governos
de Dutra e o governo eleito de Vargas com respeito a suas relações recíprocas
com o imperialismo e com o movimento operário, seja pela pressão existente
no meio sindical para que os militantes pecebistas atuassem em frente única
com os sindicalistas trabalhistas (getulistas). Esses elementos pesaram
internamente no partido, e fizeram com que, primeiro em 1952 e logo mais
profundamente em 1954, a linha “esquerdista” do Manifesto de Agosto de
1950 fosse abandonada. A “Resolução Sindical” de 1952, a greve dos 300
mil de 1953 em São Paulo e o suicídio de Vargas, seguido do IV Congresso
do partido no ano seguinte, irã marcar esse processo de substituição da linha
anterior por uma outra muito mais abertamente colaboracionista com a
burguesia ’ o que, a rigor, só terminará de se consolidar plenamente em
1958 ’ após uma série de crises que iremos desenvolver a seguir. Ao mesmo
tempo, buscando capitalizar o ascenso operário em curso, o PCB desenvolve
um trabalho paciente e “orgânico” em setores estratégicos da classe operária,
conquistando ao longo dos anos posições chave no movimento sindical, a
despeito do partido estar na ilegalidade já desde 1947.

Ligado a esse movimento, o PCB já em 1955 fará parte da base de apoio
a Juscelino Kubitschek ’ líder do principal partido da grande burguesia e dos
latifundiários, o PSD ’ e irá se posicionar ao longo de seu governo de
maneira similar à do próprio vice-presidente João Goulart (do PTB),
sustentando o governo e ao mesmo tempo assumindo a postura de “oposição
dentro do bloco governista” .

É nessa localização que o PCB irá vivenciar as sucessivas crises após o XX Congresso do PC da URSS (PCUS), conforme discutiremos abaixo; do
mesmo modo, é sobre essa base que o partido participará do ascenso operário
que se ergue comvigor crescente na segundametade dos anos 1950, emmeio
ao clima geral de renovação política e cultural que o desenvolvimentismo
entreguista de JK promove no país.

O XX Congresso do PCUS e suas conseqüências: crise e divisões no
stalinismo brasileiro

Em fevereiro de 1956 reuniu-se o XX Congresso do PC da União
Soviética, no qual o novo secretário geral Nikita Kruschev apresentou seu
“relatório secreto” sobre os crimes de Stálin. Reconhecendo pela primeira
vez oficialmente várias das inúmeras denúncias apresentadas pelo trotskismo
acerca das práticas criminosas de Stálin à frente do PCUS e da URSS, o
informe de Kruschev atua como detonador para uma crise generalizada nos
PCs de todo o mundo, inclusive o PCB. Os “erros” apontados por Kruschev
”” “culto à personalidade” de Stálin, autoritarismo, burocratismo, ruptura
da “legalidade socialista” ”” estariam muito longe de representar um
verdadeiro acerto de contas com o passado, porém isso não impediu que
seu relatório tivesse um efeito devastador, pois sobretudo com ele era
rompida a atmosfera de monolitismo e ausência completa de crítica no
interior dos PCs, o que abriu brechas inclusive para o questionamento do
programa histórico do PCB, tanto pela direita como pela esquerda.

No interior do PCB, enquanto o Comitê Central tentava adiar o
inevitável debate entre os quadros e a base do partido, logo se instalou a
confusão e as discussões se impuseram inclusive na própria imprensa
partidária, ainda antes de a direção resolver sair de sua paralisia e tentar
encaminhar o debate, coisa que tardou vários meses para acontecer. Para
além de um grave desgaste daqueles que vinham compondo o núcleo central
de direção do PCB desde a década de 1940, e da desmoralização e do
abandono de inúmeros militantes das fileiras partidárias, especialmente
intelectuais e jornalistas, o tortuoso processo de crise interna terminou por
sedimentar três tendências mais ou menos definidas. Em primeiro lugar,
surge a corrente renovadora, composta principalmente por quadros de relativo
destaque nos organismos partidários, que tem seu principal expoente em
Agildo Barata, então dirigente do trabalho sindical do PCB. Esta corrente
responde à crise com uma crítica aos métodos burocráticos empregados na
condução do partido, e defendendo posições mais abertamente nacionalistas
burguesas, rompendo inclusive formalmente com o “marxismo” stalinista.
Em resposta à corrente capitaneada por Agildo, toma corpo a corrente
conservadora, formada pelo núcleo central que dirigiu o partido no período precedente, com Prestes, João Amazonas, Maurício Grabois, Carlos
Marighella e Diógenes Arruda, entre vários outros. Como o nome indica,
congrega os principais setores atacados pelas críticas das bases e se caracteriza
por uma postura defensiva com respeito aos “princípios” stalinistas e à
trajetória do partido até ali; são os principais responsáveis pelo atraso nos
debates, tentando mesmo impedi-los de se desenvolver, o que lhes valeu no
início a alcunha de “fechadistas” . Finalmente, entre as duas correntes
“extremas” , forma-se um centro pragmático, capitaneado num primeiro
momento por dirigentes como Giocondo Dias, Mário Alves e Jacob
Gorender, entre outros. Sua postura básica é conciliatória, tentando
promover os debates necessários para a superação da crise, porém impondolhes
os limites e controles julgados convenientes.

A dinâmica da crise interna se resume então a dois momentos: uma
primeira fase dos debates, quando a aliança entre conservadores e pragmáticos
consegue isolar os “renovadores” e impor-lhes a alternativa entre a cisão e a
expulsão; e uma segunda fase em que o centro pragmático se volta contra os
conservadores, atraindo uma boa parcela tanto dos “renovadores” derrotados
quanto importantes setores dos “conservadores” dispostos, como o próprio
Prestes, assim como mais tarde o guerrilheiro Carlos Marighella, a
acompanhar a evolução política ditada pela burocracia soviética a partir de
Moscou. Esta evolução conduziria, como sabemos hoje, ao “eurocomunismo”
e à social-democratização completa da maioria dos PCs em todo o mundo. É nessa segunda fase que são derrotados os membros mais inflexíveis da ala
defensora do velha ortodoxia stalinista (em oposição à “desestalinização” de
Krushev), encabeçada por João Amazonas e Maurício Grabois, a qual será
primeiro deslocada para posições de menor influência na estrutura partidária
e, após um processo de luta interna, excluída em 1961, formando o PCdoB
em fevereiro de 1962 [2].O centrão que assume a direção do PCB desde 1957,
chefiado por Prestes, Giocondo Dias, Jacob Gorender e os demais,
consolidará a guinada à direita através de um novo programa aprovado em
1958 (conhecido como “Declaração de Março de 1958” ), e que constituirá
a orientação básica com a qual o stalinismo brasileiro irá chegar ao processo
revolucionário aberto em 1961, tema central deste artigo.

2. A QUESTÃO AGRà RIA E AS LIGAS CAMPONESAS

A colocação histórica do problema agrário no Brasil se dá concretamente
por meio das diferentes formas de concentração da terra; dos velhos
latifúndios aos grandes monopólios capitalistas, a estrutura agrária atravessou
as diversas fases do desenvolvimento económico brasileiro conservando essa
sua grande característica principal””a enorme concentração das terras. Esse
fato, motivo de vergonha histórica para as classes dominantes brasileiras e
cuja dura realidade apenas seus intelectuais mais cínicos e reacionários são
capazes de contestar, constitui o verdadeiro palco para o caráter recorrente
dos conflitos e lutas sociais no campo e o fundamento para a dependência
estrutural da economia nacional em relação ao capital estrangeiro.

As contradições no campo brasileiro eram aceleradas pela combinação
entre êxodo rural devido à industrialização acelerada e a degradação das
condições de vida no meio rural ’ expulsão dos camponeses de suas terras ’
ligado à expansão dos métodos de produção capitalistas no campo, disputa
entre o plantio e a criação de gado que se valoriza muito com o adensamento
populacional das grandes cidades. De conjunto, todo esse processo, acrescido
da expansão da produção açucareira no Nordeste ’ que tinha um fator
adicional na retirada de Cuba do mercado internacional ’ empurrava a classe
capitalista do campo contra os trabalhadores rurais.

Em resposta a isso, a luta de classes irá atingir no campo um patamar
inédito na história do país, em particular no fervilhante início dos anos 60,
muito embora este seja talvez um dos aspectos menos conhecidos do
problema.

Num momento em que os camponeses pobres constituíam dois terços da
força social do país, a mobilização dos camponeses e trabalhadores rurais
em todo o Nordeste acendeu a chama da revolução social ”” e deslocou o
foco das atenções do imperialismo norte-americano para a região como em
nenhum outro momento [3].

O ascenso camponês na década de 50

No início da década de 50, os primeiros conflitos que se desenvolveram
no campo apresentaram um caráter basicamente pontual e localizado,
mesmo quando possuíam alto grau de radicalidade. Dentre estes, os que
mais se destacaram foram a guerrilha de Porecatu (em 1950, nas divisas dos
estados de São Paulo e Paraná), a revolta de Dona Noca (no interior do
Maranhão, em 1951) e a implantação do Território Livre de Tromba-
Formoso em 1953, o mais importante deles. Tromba-Formoso abrangeu
uma área de 10 mil quilómetros quadrados ao norte de Goiás, há 250
quilómetros de Brasília, onde se estabeleceu um governo paralelo, baseado
em comitês políticos e milícias armadas e promoveu, em toda a região
ocupada, uma reforma agrária. A chamada “República deTromba-Formoso”
formulou uma constituição própria que definia o Estado de Tromba-
Formoso como popular e socialista. Após 1964, seus líderes se evadiram,
ocultando um importante arsenal de armas e munições numa gruta chamada
Vereda do Exu, na Serra da Cana Brava, posteriormente encontrado e
apreendido pelos órgãos de segurança nacional em 1969.Tanto na guerrilha
de Porecatu como emTromba-Formoso o PCB atuou e exerceu importante
influência política.

Os militantes do PCB, apoiando-se sobre os resquícios das chamadas
“Ligas Camponesas” ’ que em 1946 eles impulsionaram em várias partes do
país, mas que foram reprimidas em 1947 antes de ganharem uma influência
de massas ’ recomeçaram, a partir de 1953, a impulsionar novas tentativas
de organização dos camponeses pobres. Neste mesmo ano foi realizada,
simultaneamente em São Paulo, Paraíba e Ceará, a 1ª Conferência Nacional
de Trabalhadores Agrícolas. E, em agosto de 1954, em Limoeiro,
Pernambuco, o 1º Congresso Nordestino de Trabalhadores Rurais
(preparatório regional para a 2ª Conferência Nacional). No Congresso de
Limoeiro, tropas da polícia cercaram o local do encontro para impedir sua
realização.Mas os participantesmobilizaramcentenas de camponeses armados
de foices e enxadas e invadiram a cidade obrigando o recuo da polícia e
garantindo a realização do evento. Meses depois, realizou-se em São Paulo a 2ª ConferênciaNacional de Lavradores eTrabalhadores Agrícolas, que contou
coma participação de 308 representantes de 16 estados e decidiu criar aUnião
dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB), dirigida
centralmente pelo PCB.

Em 1955, no interior de Pernambuco, no Engenho da Galiléia, vai ser
fundada uma associação rural que entra para a história conhecida com Liga
Camponesa da Galiléia.Oconflito teminício a partir da recusa dosmoradores
da Galiléia em pagar um aluguel (foro) maior ao proprietário das terras ou a
acatarem a ordem de despejo em massa emitida por este. A partir deste
momento desenvolve-se um longo processo de resistência, que combinava a
utilização do Código Civil em defesa dos moradores, com a ação política nas
cidades e a resistência à repressão no campo, culminando na desapropriação
do terreno votada pela Assembléia Legislativa do Estado em 1959.

Em fins dos anos 1950, as Ligas Camponesas contavam com 35 mil
associados em Pernambuco e 70 mil em todo o Nordeste. A ULTAB, com
peso nos estados do Centro-Sul, possuía no mesmo período uma débil
penetração no Nordeste, precisamente até o ano de 1963.

Já no segundo semestre de 1963, segundo registro em arquivos do
Exército brasileiro, as Ligas Camponesas atingiam 18 dos 22 estados
brasileiros existentes à época, com 218 Ligas no total concentradas sobretudo
no Nordeste, mas também em estados importantes do centro sul, segundo
os números que seguem: 64 ligas em Pernambuco, 15 na Paraíba, 12 no
Maranhão, 10 no Ceará e 9 na Bahia, 15 em São Paulo, 14 no Rio de
Janeiro, 12 em Goiás e 11 Espírito Santo. Em seu momento de auge, as
Ligas afirmavam contar com 500 mil afiliados, e um número ainda maior
de simpatizantes, que apenas não se filiavam ao movimento devido à
perseguição criminosa exercida pelos latifundiários.

Um velho dirigente das Ligas, de origem do pecebista, Clodomir de
Morais, enumerava assim os principais acontecimentos da luta no campo no
período inicial dos 60 (os setores dirigentes de cada processo):

(...) a grande marcha de camponeses sobre Brasília (Ligas de Formosa e Tabatinga);
levantamento armado de camponeses de Jales, São Paulo (Ultab); a guerrilha
camponesa de Prado, Bahia (Ultab); invasão do campo de treinamento guerrilheiro
das Ligas, Divinópolis (Goiás), por fuzileiros navais e pára-quedistas do Exército;
choque armado entre camponeses domunicípio de Pato Branco, e a polícia do Paraná
(Ultab); rebelião de camponeses armados de Tocantinópolis, Goiás (Ligas); choques
armados entre policiais e camponeses na região de Sapé, Paraíba (Ligas e Ultab), em
Buísque, Pernambuco (Ligas), em Mutum e Jaciara, Mato Grosso (Ultab).

Além disso, houve conflitos salariais importantes sobretudo entre os
operários cortadores de cana. No mais importante deles, em 18 de novembro de 1963, a Federação de Sindicatos Rurais dirigida pelos padres católicos
deflagrou greve estadual contra a indústria açucareira, que durou três dias;
contou com adesão praticamente total de 200 mil trabalhadores rurais;
conquistou aumento de 80% nos salários, gratificação anual (13º salário)
e pagamento dos dias parados. Esta foi, para muitos historiadores, a maior
greve no campo brasileiro ocorrida até então.

As estratégias em disputa no campo

Em seu V Congresso, em 1960, o PCB define que a luta anti-imperialista
poderia levar alguns setores latifundiários a posições nacionalistas, o que
exigiria uma frente única com estes setores, levando o partido a defender
uma reforma agrária restrita às propriedades improductivas ou pouco
cultivadas e ainda assim mediante indenização, além do loteamento de terras
aos pequenos agricultores, que deveriam pagá-las através de financiamento.
A direção majoritária das Ligas, por outro lado, defende o enfrentamento
direto contra o latifúndio, que passa a ser sintetizado em sua consigna de
reforma agrária radical (“na lei ou na marra” ). Enquanto o PCB defendia
um arremedo de reforma agrária passível de ser implementado no bojo das
chamadas “reformas de base” de Jango, as Ligas defendiam a utilização de
métodos de guerra civil no campo para impór o fim do latifúndio.

Ao mesmo tempo, nesse período, foi estabelecida por parte da burguesia
uma clara política de cooptação e institucionalização do enorme
descontentamento camponês, tanto por parte do presidente Goulart como
do governador de Pernambuco Miguel Arraes [4]. Este último inclusive tentou
assumir, e de fato assumiu em alguns momentos, a defesa dos camponeses
e trabalhadores agrícolas contra os ataques dos bandos dos latifundiários,
utilizando sua polícia estadual para isso. Em todo o país, com uma política
consciente e ofensiva do governo federal, o número de sindicatos rurais
reconhecidos pelo Estado passou de 6 em 1961, para 60 em 1962 e 270 no
início de 1963, saltando para 1300 justamente nas vésperas do golpe contra-revolucionário.

Nessa política, a burguesia contava com dois agentes: a Igreja Católica e
o PCB, este atuando centralmente através da ULTAB, ambos trabalhando
em aliança com o Ministério do Trabalho na criação dos sindicatos rurais.
Por outro lado, a direção das Ligas Camponesas, sob o impulso direto da
revolução cubana, se colocava à esquerda do ponto de vista da amplitude da
reforma agrária reivindicada e dos métodos para conquistá-la. No entanto, apostando na estratégia da guerrilha camponesa, voltava as costas para a
centralidade do proletariado na revolução brasileira, e terminava se
adaptando, mesmo que criticamente, à pressão do nacionalismo burguês
frente aos fatos concretos da política nacional.

Como parte da institucionalização burguesa do movimento camponês,
o PCB, num pacto com o Estado, funda em fins de 1963 a CONTAG, que
irá reunir em uma Confederação todos os sindicatos criados no período
anterior, processo do qual as Ligas se recusaram a participar.

Pela combinação entre a brutal repressão do Estado e dos latifundiários, e
a disputa com o PCB e a Igreja, as Ligas passam, a partir de meados de 1963,
a perder espaço e enfrentar um processo de crise, do qual tiram a conclusão
da necessidade de adotar uma forma centralizada de organização. Experiência
esta que, antes mesmo de se consolidar, foi interrompida pelo golpe.

A polarização burguesa em torno da questão agrária

Evidentemente, tal desenvolvimento político não deixou de ser
acompanhado e combatido pela classe dominante, tanto antes como depois
do golpe de Estado. A repressão às Ligas e ao movimento dos trabalhadores
do campo em geral foi brutal em todo o período, organizada tanto a partir
das forças repressivas estatais como a partir dos bandos armados sustentados
pelos proprietários. Além das prisões, perseguições e expulsão forçada com
destruição de moradias camponesas, foram inúmeros os casos de assassinato
de trabalhadores, incluindo a morte, entre abril de 1961 e janeiro de 1962,
de dois principais líderes das Ligas em todo o Nordeste; Alfredo Nascimento
e João Pedro Teixeira (da Liga de Sapé). Além disso, o assassinato de um
jovem dirigente trotskista em Pernambuco [5] dá uma boa visão da eficácia do
terror latifundiário contra os dirigentes do movimento camponês antes do
golpe de 64.

Mas não era somente através da violência que a burguesia tentava
responder à mobilização das massas no campo. Por sua importância histórica
e por seu caráter emblemático das contradições que envolviam a questão
agrária em meio ao processo que narramos, um episódio merece relevo
especial: a desapropriação do Engenho da Galiléia, por expressar com
particular agudeza as contradições na classe dominante. Pressionado pela
luta dos camponeses da Liga da Galiléia, embrião de todo o desenvolvimento
posterior das Ligas, o governador Cid Sampaio decretou a desapropriação
das terras do velho engenho decadente, com pagamento de gorda indenização ao proprietário (que já não fazia uso da terra havia muitos anos)
e impondo a divisão da terra em lotes sob critério de comissões estatais,
transformando de imediato uma parcela daquelas famílias que vinhamlutando
conjuntamente empequenos proprietários, impondo o deslocamento de uma
grande maioria das mesmas famílias. Essa medida, transformada pelo mesmo
Cid Sampaio em modelo para uma política burguesa de “colonização” , nada
mais era do que amaneira reacionária de “atender” às reivindicações inadiáveis
das massas camponesas. Com essa política, que incluía a divisão da terra em
lotes administrados emseu conjunto por funcionários do Estado, comdiversas
restrições ao uso, e com sua posterior venda aos camponeses beneficiados, o
governo procurava atingir o duplo objetivo de, por um lado, responder
cirurgicamente àquelas regiões precisas onde haviamaior luta de classes, e por
outro lado, favorecer algum desenvolvimento capitalista em regiões
despovoadas onde ele simplesmente não existe.

Porém nada reflete melhor o grau de acirramento dos ânimos entre as
frações burguesas do que a reação do conhecido órgão da burguesia paulista,
O Estado de São Paulo, frente à medida de desapropriação ’ realizada,
lembremos, nos mais estreitos limites da lei burguesa e como parte de uma
manobra para desarmar o movimento das Ligas ’ visão esta expressa em
editorial:

Ao criticarmos, não faz ainda muitos dias, a absurda iniciativa do governador Cid
Sampaio, de desapropriar as terras do Engenho Galiléia para, num ilícito e violento
golpe no princípio da propriedade, distribuí-las aos empregados daquela empresa,
previmos o que disso poderia resultar. A violência seria, como foi, considerada uma
conquista das Ligas Camponesas, e acenderia a ambição dos demais campesinos
assalariados, desejosos de favores idênticos (...) o movimento ganhará novas
proporções, atingindo as classes proletárias das cidades, com invasão de oficinas,
com o apossamento violento de fábricas, com assaltos a casas de residências, com
depredações de bancos e estabelecimentos comerciais. A revolução é assim. E o que,
com sua cegueira, o governo pernambucano incentivou, foi a revolução. [6]

Como representante da ala golpista da burguesia mais pró-imperialista,
o Estadão não confiava na capacidade da ala reformista da burguesia de
conter e desviar o movimento de massas com concessões e controle. De
fato, da desapropriação do Engenho da Galiléia ’ na qual o governo de
Pernambuco separou as famílias que lutaram pela terra, cobrou um preço
pela mesma e estabeleceu um mecanismo de controle burocrático da
produção ’ as Ligas Camponesas tiraram como conclusão programática a
necessidade de lutar para que as terras expropriadas fossem controladas pelos próprios camponeses pobres. A experiência da Galiléia serviu como
um “efeito demonstração” que fez com que as Ligas se espalhassem como
rastilho de pólvora por todo o país, sobretudo no Nordeste. No entanto,
essa organização, pela falta de uma direção operária revolucionária, não
conseguiu acompanhar o ritmo que o enfrentamento de classes impunha,
pois no mesmo período:

(...) a direita, sim, formava organizações paramilitares, dentro de uma estratégia
de guerra civil, a fim de fomentar arruaças, dissolver comícios, promover
sabotagens e até desencadear guerrilhas, caso as Forças Armadas se dispusessem a
sustentar a implantação de uma República sindicalista no Brasil, propósito este que
se atribuía a Goulart [7]. Elementos vinculados ao marechal Odílio Denys armavam
os fazendeiros no sul do país, e o mesmo fazia o almirante Sílvio Heck no Estado
do Rio de Janeiro e emMinas Gerais, distribuindo apetrechos bélicos, conseguidos
por intermédio do governador de São Paulo, Ademar de Barros, e do jornalista
Júlio Mesquita Filho, diretor de O Estado de São Paulo. Em vários pontos do
território nacional havia campos de treinamento [8] para a guerrilha, montados
clandestinamente, pelos militares que conspiravam contra Goulart, desde 1961.
(...) Com efeito, as forças de direita, no interior, estavam armadas e adestradas
para combater até mesmo o Exército. Em Goiás, os latifundiários revelaram que
tinham condições de enfrentar os camponeses ”˜quer com a ajuda do Exército e da
Força Pública, quer sem ela”™ [9]. Francisco Falcão, presidente da Associação dos
Fornecedores de Cana de Pernambuco, declarou, publicamente, que não precisava
da solidariedade da Associação Comercial do estado, mas, sim, dos seus recursos
financeiros para comprar armas, pois o Brasil, conforme sua opinião, estava em
plena guerra revolucionária [10]. Em Alagoas comerciantes e latifundiários
mobilizaram um exército particular de 10.000 homens sob supervisão do próprio
secretário de Segurança, coronel João Mendonça, todos treinados para sabotagem
e luta de guerrilhas [11]. Dos 28 grupos empresariais organizados no estado, 22
contavam com pelo menos 150 homens e 15.000 litros de combustível cada um.
Para cada metralhadora foram distribuídos 1.000 tiros. (...) A organização desse
Exército clandestino, com know-how da CIA, custou cerca de Cr$ 100 milhões [12].
E em todo o Nordeste havia formações do mesmo tipo [13]. Diariamente, o piloto de um avião particular fazia vóos de reconhecimento, ao longo das divisas do
Estado de Alagoas, a estabelecer contato com grupos de guerrilheiros, organizados
por outros latifundiários da região [14]. [15]

3. OS MARINHEIROS COMO EXPRESSÃO MAIS AVANÇADA DO PROCESSO NAS BASES DAS FORÇAS ARMADAS [16]

A década de 50 e 60 foi marcada por um intenso processo de politização
nas Forças Armadas, percorrendo desde o alto-mando até as bases e passando
por toda a oficialidade ’ um período marcado por um importante peso dos
militares na vida política nacional: a tentativa de golpe militar contra Vargas
em 1953, a “Novembrada” em 1954, o peso determinante de Lott na
estabilidade do governo JK e a tentativa de golpe militar em 1961. As
divisões entre as distintas frações burguesas e a polarização de classes
atravessavam o Exército e as demais Armas, reunindo de um lado os setores
que se ligavam ao trabalhismo e apoiavam o ascenso popular e de outro os
setores mais diretamente pró-imperialistas e que se ligavam à UDN. A partir
de 1961, as divisões que até então se expressavam predominantemente entre
setores da oficialidade e do alto-mando, passaram a se expressar também
com revoltas das bases contra o alto-mando e tendências à ligação dos
soldados e sub-oficiais com o movimento operário e camponês.

A “Rebelião dos Marinheiros” , expressão mais avançada do conjunto
deste processo, foi um levante dirigido pela Associação dos Marinheiros e
Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB) que ocupou o Sindicato dos
Metalúrgicos da Guanabara de 25 a 27 de março.

A AMFNB surgiu em 1962 no bojo da etapa revolucionária aberta após
a renúncia de Jânio Quadros. Ela organizava baixas patentes (da 1ª à 4ª de
um total de 16) e conseguiu o apoio das massas dos marinheiros. AMarinha
estava marcada por um profundo antagonismo entre oficiais e marinheiros [17],
os primeiros vindos das classes dominantes e os praças dos setores mais
empobrecidos, sobretudo do campo nordestino. O Almirantado era parte
integrante do golpe; os marinheiros, por outro lado, muitos deles simpáticos
às Ligas Camponesas e às reformas de base, e organizavam-se como
trabalhadores. Contribuía a isto também a dura opressão que sofriam: mal
podiam sair dos navios, comiam em cozinhas separadas por patente, não
podiam se casar, ouvir rádio, votarem e serem eleitos, e seus salários não
chegavam sequer a um salário mínimo.

A AMFNB evoluiu de mero sindicato assistencialista a um sindicato com
elementos de auto-organização. A primeira direção da AMFNB foram os
chamados “conciliadores” . A radicalização da entidade se acentuou em 63
quando os “combativos” , com base nos setores mais proletários da Marinha
(navios e centros de distribuição), conquistaram a direção. Os “combativos”
foram expressão e limite do que ocorria na base. Parte de seus principais
dirigentes eram militantes do PCB ou influenciados por este partido. Ainda
que mais combativa, esta direção também conciliava com os oficiais,
defendia que os oficiais e os marinheiros “recebessem cada um o seu” , ao
mesmo tempo em que dava vazão ao desejo da base defendendo para a
AMFNB um funcionamento similar aos exemplos históricos de democracia
operária. Entre 63 e 64, a Associação funcionou baseada em um sistema de
delegação arraigado nos setores mais proletarizados das repartições e dos
navios, que passaram a participar ativamente da vida política da entidade,
preenchendo a sede com centenas de ativistas envolvidos diariamente entre
assembléias, reuniões, panfletagens etc.

As contradições na AMFNB traziam à tona o maior limite do processo,
a direção do PCB. Com uma estratégia de seguidismo às alas janguistas da
burguesia e contendo a espontaneidade das massas, o PCB impediu que se
desenvolvessem as potencialidades de uma aliança mais orgânica entre os
marinheiros, o movimento operário e o movimento camponês. Apesar destes
limites, a AMFNB trazia à tona a espontaneidade dos marinheiros, e por esta via era prestigiosa dentro e fora da Marinha. A Tribuna do Mar, órgão
da associação, ajudava a organizar as bases das outras armas. A AMFNB era
produto e motor do despertar dos marinheiros. Isto se expressava, por
exemplo, em como as deliberações da associação chegavam até aos navios em
alto-mar em poucas horas. Segundo um de seus diretores, “os transmissores
dos navios eram usados secretamente para enviar mensagens, mas como e
quem fazia era um mistério (...) Sentíamos que era uma massa humana em
movimento e disposta a enfrentar qualquer obstáculo que se interpusesse
no seu caminho” [18].

A pressão da base também forjava uma aliança com os operários e
camponeses. Os diretores mantinham contato com sindicalistas,
organizavam cursos de auto-defesa para militantes camponeses das Ligas.
Um diretor da AMFNB assim relata a participação da associação frente à
ofensiva repressora que recaiu sobre as Ligas ao final de 1962:

A sub-sede de Brasília participou de dois episódios que acabaram custando a vida de
um companheiro fuzileiro. O primeiro fato esteve relacionado com um
acampamento das Ligas Camponesas em Goiás, ao norte de Brasília. O local foi
detectado pelos serviços de informação e o batalhão de fuzileiros, sediado em
Brasília, recebeu ordens de reprimir. A sub-sede informou a diretoria da associação
e nós, imediatamente, repassamos o informe para Francisco Julião, líder das Ligas,
que resolveu pedir nosso apoio. (...)Tínhamos uma grande simpatia pelas Ligas e um
bom relacionamento com Julião. Traçamos um plano imediatamente. Enquanto
orientávamos a sub-sede para atrasar ao máximo a operação militar, Julião e seus
companheiros deveriam sair do local. Se os fuzileiros fossem obrigados a atacar o
acampamento, fariam barulho, mas não atirariam nem prenderiam ninguém, apenas
exortariam as pessoas do local. A sub-sede de Brasília conseguiu levar a orientação
na prática e tudo saiu melhor do que planejamos, mas criou-se uma tensão dentro
da corporação que extrapolou os limites de Brasília. [19]

Na Marinha e nas Forças Armadas, esta pressão da base e da situação,
potencializada a partir dos elementos de auto-organização, faziam com que
a associação expressasse parte do mais avançado no ascenso operário e
popular: elementos embrionários de duplo poder em relação ao almirantado
e aos planos golpistas.

Os próprios diretores reconheciam que eram levados pela luta de classes:
“tinha a sensação de que eu não decidia nada” , e sem o controle a “diretoria
era forçada a agir na defensiva” [20]. A separação entre a base e a direção ocorreu quando a intervenção da AMFNB na luta de classes foimais aguda: na “revolta
dos sargentos” , na “rebelião dos marinheiros” e na resistência ao golpe.

Na “revolta dos sargentos” de 1963, a diretoria orientou a sede de Brasília
a ler um apoio aos sargentos da aeronáutica e nada mais. A regional, porém,
participou da tomada de prédios públicos e de um tiroteio. Temendo
represálias e tentando alcançar a situação, a diretoria organizou a tomada
dos quartéis e navios. Segundo relato de Capitani, um diretor, houve uma
ordem da Associação para:

tomar o Quartel dos Marinheiros. (...) Conversei com todos os marinheiros de
confiança (...) os sentinelas de serviço naquele horário que não forem de inteira
confiança não serão acordados e deveremos substituí-los por outros companheiros
(...) semelhante orientação foi dada também nos navios (...) foi a primeira
experiência de ação baseada em um plano.

Um mensageiro da diretoria avisa Capitani para levantar o plano e ele e
os marinheiros desorganizam a tomada do quartel,

o mais impressionante é que foi traçado, levado à prática, houve um recuo sem que
o Comando do Quartel tomasse conhecimento (...) Os fatos demonstraram o
quanto a marujada estava coesa e predisposta a agir em nome da Associação (...) isso
só foi possível porque já havia discutido muitas vezes com meus companheiros de
confiança um plano. [21]

O caráter embrionário de duplo poder de tipo soviético existente na
Associação deMarinheiros se expressava na dialética entre uma organização
que combinava uma direção com grande autoridade, reformista, que
conciliava com o alto-mando, a oficialidade e o governo; mas que ao mesmo
tempo era obrigada a aceitar métodos de auto-determinação das bases em seu
funcionamento que permitiam a vazão da espontaneidade dos setores mais
explorados e oprimidos das repartições e dos navios.

Em 1964, a enorme polarização nacional provocava reflexos no
antagonismo entre praças e oficiais e, ao mesmo tempo, a política do PCB
e do PTB reforçava o papel conciliador da diretoria da AMFNB. A base
estava radicalizada, disposta a tomar em armas com os operários, resolver
suas demandas por si mesma e, por outro lado, a direção conseguia ser um
freio maior. A “rebelião dos marinheiros” e a tentativa de resistência ao golpe
são um processo só, marcado por essas mesmas contradições.

Em março, a diretoria programou um ato-festa no Sindicato dos
Metalúrgicos. O almirantado o proibiu. Sabia-se também que o almirantado queria atacar osmarinheiros.Osmarinheiros que serviamcafé ao almirantado
informaram aos diretores que eles seriam presos naquele mês, como parte da
preparação do golpe. No dia do ato, 25 de março, eclodiram os primeiros
confrontos diretos: marinheiros presos sem justificativas; diretores da
AMFNB presos; oficiais jogados ao mar pelos marinheiros; marinheiros
metralhados no caminho do sindicato. O ato ocorreu e reuniu cerca de 4mil
marinheiros. Desde o começo já era uma revolta.

Vários marinheiros defendiam ir à prisão para libertar à força seus
companheiros. A diretoria propunha dispersar, e para isso utilizava o
pretexto de que seria “cair em provocação” . Sem sucesso, até surgir uma
proposta intermediária que convenceu a base: ficariam ali em vigília no
sindicato em assembléia permanente até a libertação. Os Sindicatos e a
população traziam comida e solidariedade; alguns marinheiros deixavam a
ocupação para retornar em centenas. Sem controle, a Marinha resolveu
reprimir. Enviaram a mais especial das forças: o batalhão de choque dos
fuzileiros navais. O movimento conseguiu que os membros do batalhão
deixassem suas armas e aderissem à assembléia. O almirantado não mandava
mais. O CGT mais uma vez se limita a uma ameaça de greve geral em 28
de março se não houvesse anistia aos amotinados.

Logo, porém, a direção da AMFNB conseguiu prestar um valioso serviço
à burguesia: com oposição de parte da base, aprovaram a resolução, vendida
como vitória, de abandonarem a reivindicação central de liberdade imediata
dos presos (que seriam libertos apenas dias depois para evitar a
desmoralização do almirantado) em troca da nomeação de um ministro
“nacionalista e democrático” ligado ao trabalhismo janguista. Ou seja,
reconquistou a confiança dos marinheiros no governo e no Estado. Este
primeiro passo ainda não resolvia o conflito e a diretoria continuou
contendo os marinheiros. Capitani relata que foi

ao Clube dos Sargentos para ajudar a diretoria coordenar a enorme quantidade de
marinheiros que chegavam com informações sobre os problemas de suas unidades
ou em busca de orientação. A diretoria se esforçava para orientar os marinheiros e
fuzileiros rebelados na sua volta à normalidade e na garantia de apoio ao novo
Ministro. [22]

Apesar do desvio do levante para eleger um ministro, a base ainda se
mostrava disposta a resistir ao golpe e medir suas forças e as do movimento
operário com as dos oficiais e da reação. Todos, da AMFNB ao PCB e
Goulart, sabiam, há muito, que ocorreria o golpe, e não tomaram medidas
de defesa. Nos dias 30 e 31 ele era totalmente visível e novamente a base tentou ultrapassar a direção, e esta, forçada pela base e pela situação, também
começou a agir. Os marinheiros inviabilizaram os canhões e os motores de
vários navios e ficaram aguardando ordens. A AMFNB por sua vez emitiu
ordens para buscar armas e obedecer aos oficiais fiéis ao governo de Goulart
e surgiram milícias de marinheiros que se preparavam para prender Lacerda
(governador do Rio de Janeiro e uma das principais lideranças do golpe).
Aguardavam ordens de Goulart e outros “progressistas” que nunca
chegaram. Preparavam-se para distribuir armas para os operários através do
CGT e formar batalhões de operários e marinheiros. O CGT nunca
apareceu. Depois da covardia de Goulart e dos sindicalistas, ambos
contrários a resistir ao golpe com os métodos da revolução proletária, os
marinheiros ficaram isolados. Decidiram não morrer lutando isolados,
apesar da vontade da base em lutar até o último homem. Esta decisão mostra
como, diferente do que o PCB depois procurou propagandear, não eram
impacientes pequeno-burgueses. Eram, ao contrário, expressão do mais
avançado. O que lhes faltava era o que faltava ao proletariado: uma direção
revolucionária.Tinham disposição de lutar e, frente à covardia e capitulação
de suas direções, não se propuseram a ser massacrados. Estavam em menos
de 5 mil homens, com armamentos da 1ª guerra mundial, sem treinamento
para enfrentamento terrestre, frente a uma força de 11 mil efetivos do
Exército, melhor armados, treinados, e que ainda esperavam um reforço de
mais 50 mil homens que vinham de Minas Gerais e São Paulo.

Perdidas as brechas à esquerda, a situação se fechou à direita. Morreram
na praia as possibilidades de desenvolvimento do que foi um embrião de
auto-organização dos marinheiros, e de sua vontade de forjar uma aliança
com batalhões de operários. Os marinheiros eram vanguarda e a ditadura os tratou assim: tentou prendê-los antes do golpe, e depois dele o número de
presos e desaparecidos na Marinha foi o maior das Forças Armadas.

O PCB sabia do golpe e não organizou a resistência; quando a base
tentou ultrapassar os oficiais e ministros, o “Partidão” chamou a confiar
neles. Desta forma, o stalinismo brasileiro arou o terreno onde os generais
semearam repressão, arbítrio e sangue. Para não se culpar por este crime, o
PCB culpou os marinheiros. Em 1967 afirmaram que

ações precipitadas deram pretexto aos golpistas para atrair largas parcelas da
oficialidade, sob a bandeira da defesa da disciplina e da hierarquia militar (...) [um]
surto de impaciência e outras manifestações de radicalismo pequeno-burguês (...)
levantamento de palavras de ordem e a preconização de meios e objetivos de luta não
condizentes com o caráter do movimento nacionalista e democrático e com a
correlação de forças existente. [23]

Em nome de continuar buscando “progressistas” como Jango e Brizola,
negaram as demandas, a organização e sobretudo o desejo dos marinheiros
de se unir com a classe operária.

Os marujos do pré-64 construíram um embrião de soviet, estiveram
dispostos a se aliar aos trabalhadores contra o Estado burguês, tomar em
armas e resolver por si mesmos suas demandas: são uma mostra, como
expressão mais avançada do que ocorria na base das Forças Armadas, das
condições existentes para resistir ao golpe militar com os métodos da
revolução proletária.

4. SOBRE O PROLETARIADO E AS GREVES

Em todo o pré-1964, o nível de atividade do proletariado será um fator
constante de desestabilização do regime, sobretudo com o movimento quase
permanente de greves e a recusa a permitir que a patronal descarregue sobre
suas costas todo o custo da enorme crise económica. Por outro lado, a falta
de uma política independente do proletariado enquanto classe repercutiu
em todo o processo em seu conjunto, esboroando suas feições
revolucionárias. Essa é a razão profunda para a particular dinâmica de classe
que assumiu o processo político que antecedeu o golpe.

Ao longo da década de 1950, no marco do “boom” económico do pósguerra,
no qual a expansão do capital internacional se dá não só através da
exportação de capitais e produtos manufaturados, mas também através da instalação de parques produtivos inteiros em grande parte do mundo
semicolonial sob a égide dos grandes monopólios, o perfil industrial do Brasil
sofre profundas alterações. Isso está por trás da entrada em massa de capitais
para o estabelecimento do chamado “Departamento III” da economia (bens
de consumo duráveis, tais como automóveis e eletrodomésticos), gerando
como nunca antes uma enorme concentração de operários emgrandes centros
de produçãomodernos, como por exemplo nas automotrizes do ABC paulista.

Após 1950 há o declínio proporcional da indústria “tradicional” , como
têxtil, alimentos, couro, gráfica, madeireira, tabaco, com exceção de alguns
ramos que se mantiveram, tais como a produção de borracha, minério e
papel. O crescimento agudo nessa fase concentra-se na indústria moderna,
principalmente metalúrgica, de máquinas, automobilística, equipamentos
elétricos e química. Enquanto o crescimento da indústria tradicional esteve
na casa dos 0,88% ao ano, a indústria moderna crescia a 6,6%.

A década de 50 e o início dos anos 60 constituem, notadamente, uma
fase de transição no perfil industrial do país: por estes anos, enquanto o setor
moderno já é mais dinâmico e lucrativo, a maior concentração da força de
trabalho ainda está no setor tradicional. Esta dinâmica será ainda mais aguda
no que se refere à luta de classes, isto é, a preponderância dos setores
modernos é ainda maior nos processos de luta, com as categorias dos
metalúrgicos e dos químicos encabeçando o auge paredista de 1961-1963,
em contraste com o ascenso de 1946 em que os operários têxteis estiveram
à frente de uma luta grevista na qual os maiores contingentes se compunham
de trabalhadores da indústria tradicional.

O interessante aqui é notar que, embora não haja uma relação mecânica
e direta entre os dois processos, a profundidade da crise pré-64 foi preparada
pela combinação dessas mudanças estruturais na própria estrutura de classes
do país, com um padrão de atividade grevista que englobou ano após ano,
cada vez um número maior de trabalhadores e processos cada vez mais
concentrados nos grandes batalhões da classe operária moderna.

Durante o segundo governo Vargas, ocorreram importantes greves de
massa, porém no marco de uma quantidade geral de greves pequena; com a
diferença de que Vargas consegue usar a cooptação e o clientelismo como
métodos preferenciais para conter as greves.

Já no período JK as greves são principalmente categoriais, e orientadas
em primeiro plano para lutar contra o aumento da carestia de vida provocada
pela crescente inflação [24], particularmente do setor industrial. Aqui, ao contrário do período anterior, a maioria das greves são dirigidas diretamente
pelos sindicatos, e não por organismos de base como os que organizaram a
greve dos 300 mil em 1953 em São Paulo. [25]

É nesse marco que a aliança de pecebistas e getulistas conquista posições
em relação à burocracia sindical ligada ao PSD e à ala direita do PTB
(amarela), passando a dirigir as intersindicais de caráter regional forjadas ao
calor dos principais conflitos, e que seria a base do futuro Comando Geral
dos Trabalhadores.

Entre 1961 e 1963, o processo dá um novo salto, quadruplicando o
número de greves económicas nos serviços e na indústria. Os grevistas
chegam a 5,6 milhões, caracterizando o maior ascenso grevístico da história
do país até aquele momento.

A partir de agosto de 1961 o ascenso de greves económicas passa a se
combinar também com greves políticas, como àquela que se enfrentou
contra a tentativa de golpe dos ministros militares após a renúncia de Jânio
Quadros. [26] Essa greve, que rapidamente se generalizou no Rio de Janeiro e
na Bahia, e passou a se expandir por todo o país, adquiriu importantes
elementos de espontaneidade. Ainda que, pela política do PCB, a ação das
massas tenha sido contida e canalizada para a defesa da posse do vice João
Goulart, a derrota dos golpistas resultou em um importante fortalecimento
da subjetividade das massas operárias.

As greves gerais políticas de 5 de julho e de 15 de setembro de 1962, ao
mesmo tempo em que significaram uma combinação entre as manobras de Jango em se apoiar no movimento sindical para barganhar com a
UDN/PSD e as manobras do PCB para pressionar o próprio Jango, também
expressavam a disposição de luta e de “fazer política” das massas operárias,
e demonstravam em seus resultados a força da classe em conquistas históricas
como o 13º salário. Aquelas duas greves de 1962, ao mesmo tempo em que
representaram um pico na ação conjunta e organizada da classe a nível
nacional, ocorreram como mobilizações controladas, organizadas pela
burocracia do CGT para demonstrar seu apoio político a João Goulart e
seus projetos. As direções, em primeiro lugar o PCB, faziam assim da classe
operária o fiel da balança da correlação de forças entre as distintas frações das
classes dominantes. [27]

Por isso, exatamente, o efeito das greves políticas para a consciência do
proletariado foi contraditório: ao mesmo tempo em que foi uma
demonstração material do seu poder de classe, influindo de maneira decisiva
sobre as questões do momento da política nacional e aumentando assim a
noção que a classe trabalhadora tinha de sua própria força;esteve, por outro
lado, a serviço do apoio a um dos setores burgueses em pugna, e com isso o
proletariado deixava de elevar-se à altura das tarefas imediatas que se lhe
punham por diante, pois a grande questão de toda revolução era e continua
sendo a possibilidade dasmassas realizaremuma ação histórica independente,
e sua capacidade (consciência e direção) para fazê-lo.

A seguinte citação, extraída do livro de um dos principais dirigentes do
PCB da época, é reveladora tanto da profundidade do ascenso grevista como,
na frase conclusiva, do caráter “ultra-esquerdista” que o PCB atribuía às
heróicas ações das massas:

Durante os anos de 1961 a 1963 ocorrem cerca de duzentas greves generalizadas ou
gerais por setor, a maioria por reivindicações de ordem económica e algumas poucas,
mas significativas, de caráter político.[...] Uma das greves mais importantes foi a
que irrompeu a 6 de outubro de 1963, em São Paulo, que mobilizou cerca de 700
mil trabalhadores, 79 sindicatos e quatro federações ligadas à CNTI [...] A paralisação começou em São Paulo, entre os metalúrgicos, e se estendeu a outras
categorias, espraiando-se pelo interior: Santos, Campinas, Jundiaí, ABC, Piracicaba,
São José dos Campos, Ribeirão Preto, Americana,Tatuí e Guarulhos. Sua realização
coincide com uma grave crise política do governo Goulart, que está sob o fogo de
Carlos Lacerda, governador da Guanabara. A greve é parcialmente vitoriosa e já
revela alguns aspectos da radicalização que desde 1963 vai progressivamente pesando
na ação das forças democráticas. [28]

Segundo essa visão, portanto, a “culpa” pelo golpe estaria no excesso de
radicalização da luta das massas, e não, precisamente, na traição das direções
do PCB e CGT. A seguinte citação de Trotsky, extraída do livro Aonde vai
a Inglaterra?, apesar de extensa, é interessante para contrastar com a política
das direções do PCB e do CGT. Trotsky analisa a dialética existente entre a
preparação da greve geral e a questão do poder político, resolvida sempre
em última instância pelas armas. Assim, uma direção que faz uso da greve
geral como uma mera “manobra” , sem dar-se conta da influência objetiva
que a realização da greve adquire imediatamente e sem ligar a organização
da greve geral com os preparativos para a conquista da base das forças
armadas e para o levantamento revolucionário pela tomada do poder
político, está não apenas renunciando à sua tarefa mais fundamental, mas
concretamente pavimentando o caminho para as derrotas mais sangrentas.

Nas palavras de Trotsky:

Uma insurreição revolucionária triunfa quando consegue infligir uma derrota às
forças mais firmes, mais resolutas e mais seguras da reação e atrair para si a simpatia
do restante das forças armadas do regime. Este resultado, digamos uma vez mais, não
pode ser obtido senão no caso de que as tropas governamentais titubeantes se
convençam de que as massas operárias não se limitam a manifestar seu
descontentamento, achando-se absolutamente decididas a derrubar o governo, custe
o que custar, sem retroceder ante os meios mais desapiedados. Este sentimento é o
único capaz de fazer passar as tropas vacilantes para o lado do povo. Quanto mais
hesitante, titubeante e evasiva seja a política dos dirigentes da greve geral, menos
vacilação haverá nas tropas, mais firmemente sustentarão o poder e mais
probabilidades terá este de sair vitorioso da luta, para abater em seguida a cabeça
da classe operária com as mais sangrentas repressões. Em outros termos, quando
a classe operária se vê obrigada a recorrer para sua emancipação à greve geral, deve
dar-se conta previamente de que isso traz consigo inevitavelmente a produção de
colisões armadas e de conflitos análogos, locais e gerais; deve dar-se conta de
antemão de que a greve geral só não será reprimida no caso de que se tenha dado imediatamente a resposta necessária aos fura-greves, aos provocadores, aos fascistas
etc.; deve prever com antecipação que o governo cujo destino se joga lançará
inevitavelmente à luta, em tal ou qual momento, suas forças armadas, e que o destino
do regime e, por conseguinte, o do proletariado dependerá do resultado do
confronto das massas revolucionárias com essas forças armadas. Os operários devem
previamente tomar todas as medidas precisas para atrair os soldados para o lado do
povo mediante uma agitação preliminar; porém também deve prever de antemão
que sempre restarão ao governo bastantes soldados seguros ou quase seguros para
tentar reprimir a insurreição, de modo que a questão se resolverá em última instância
por um conflito armado, para o qual é necessário preparar-se segundo um plano
determinado com antecedência e no qual será preciso empenhar-se com uma
completa resolução revolucionária. (...) Somente a mais extrema resolução na luta
revolucionária pode arrancar as armas das mãos da reação, abreviar a guerra civil e
diminuir o número de suas vítimas. Se não se admite isso, não há para que tomar
as armas; se não se tomam estas, impossível uma greve geral; se se renuncia à greve
geral, não se pode pensar em uma luta séria. [29]

5. BONAPARTISMO, IMPERIALISMO E NACIONALISMO BURGUÊS

Também do ponto de vista das classes dominantes os anos de que
tratamos foram palco de transformações de caráter estrutural. Tais
transformações, que constituem o substrato material para as divisões e
conflitos que permearam todo o seu comportamento político ao longo desse
período, possuíam dois fatores fundamentais: de um lado, a pressão própria
do ascenso das massas urbanas e rurais em todo o país; de outro, as
conseqüências do novo padrão assumido pela penetração imperialista no
país, que provocava um surto “industrializante” de tipo específico e uma
“modernização” geral das relações económicas no interior do país e, deste,
com o mercado mundial.

De conjunto, esse processo provocava um crescente deslocamento e uma
conseqüente busca de nova localização por parte do setor latifundiário agroexportador,
o qual, embora até meados dos anos 1950 ainda possuísse um
enorme peso na renda nacional, desde a década de 30 apresentava
taxas de crescimento muito menores do que seus “rivais” industriais ligados
ao grande capital financeiro estrangeiro e nacional. Este é um fator essencial
das transformações da burguesia brasileira, tanto do ponto de vista sócio-económico como do ponto de vista das relações políticas recíprocas
entre seus distintos setores.

Assim, a partir do final dos anos 1950, e em meio ao processo de agitação
social crescente no país, aqueles setores mais ligados ao capital imperialista
e aos grandes grupos monopólicos atuantes no país começam a disputar
cada vez mais abertamente a hegemonia política sobre as demais frações da
classe burguesa, inclusive aquelas tradicionalmente representadas pelo PTB.
Tal disputa pela hegemonia entre as distintas frações das classes dominantes,
que ao mesmo tempo ajuda a entender as fortes características de arbitragem
desempenhadas pelo Executivo desde os governos de Dutra e de Vargas, será
uma marca determinante em todo o período crítico da situação nacional.

À medida que o peso social e económico dos setores mais diretamente
atrelados ao grande capital imperialista passa a se sobrepor de maneira
esmagadora sobre as demais frações, estas últimas passarão a buscar, através
da mediação de seus representantes políticos, em primeiro lugar o PTB e
João Goulart, utilizar-se do apoio no movimento de massas para tentar
contrapor o avanço hegemónico do grande capital ligado ao imperialismo.
Ao mesmo tempo, buscam com isso garantir base social para a realização de
determinadas reformas parciais que de fato lhes interessavam, no sentido da
criação de condições mais favoráveis para o desenvolvimento de um
capitalismo de base nacional e cuja autonomia relativa com respeito às
economias imperialistas fosse levada a um nível máximo (valendo para isso
inclusive a barganha com os países do chamado “campo socialista” ).

Como dizia Trotsky na década de 1930:

Nos países industrialmente atrasados o capital estrangeiro cumpre um papel decisivo.
Daí a relativa debilidade da burguesia nacional em relação ao proletariado nacional.
Isto cria condições especiais de poder estatal. O governo oscila entre a relativamente
débil burguesia nacional e o relativamente poderoso proletariado. Isto dá ao governo
um caráter bonapartista sui generis. Se eleva, por assim dizer, por cima das classes.
Na realidade pode governar ou bem convertendo-se em instrumento do capital
estrangeiro e submetendo o proletariado com as cadeias de uma ditadura policial,
ou bem manobrando com o proletariado, chegando inclusive a fazer-lhe concessões,
ganhando deste modo a possibilidade de dispor de certa liberdade em relação aos
capitalistas estrangeiros. [30]

Se o pólo burguês encabeçado pela UDN civil e militar corporificava a
primeira tendência descrita por Trotsky, a um bonapartismo sui generis de
direita, apoiado sobre o imperialismo e as Forças Armadas, para a realização de contra-reformas de ataque direto às massas, submetendo o movimento
operário e camponês mais diretamente à repressão; a fração burguesa
representada por Jango, Arraes e, como variante mais radical dessa mesma
tendência histórica, por Leonel Brizola, representava a segunda, isto é, uma
forma de bonapartismo mais apoiada sobre o movimento de massas, porém
sem romper seus laços com os latifundiários, as demais frações burguesas e
com o imperialismo.

As medidas propostas por Jango com o nome de “reformas de base” são
extremamente parciais e atenuadas em relação às reformas estruturais de
caráter democrático-burguês (reforma agrária, unificação nacional, reforma
urbana etc.) realizadas na Europa ocidental e nos EUA e que foram a mola
propulsora do desenvolvimento capitalista nestes países. Ao serem pactuadas
como latifúndio e como imperialismo, as “reformas de base” não respondiam
ao problema estrutural da acumulação primitiva de capital que só seria possível
com uma profunda reforma agrária no país, e neste sentido não respondia ao
problema estrutural da dependência em relação ao capital imperialista, pois
está intimamente ligada à inexistência de capital interno capaz de desenvolver
as forças produtivas de forma independente. As “reformas de base” eram
atenuadas inclusive emrelação àsmedidas de governos nacionalistas burgueses
latino-americanos adotadas entre as décadas de 30 e 70 na América Latina,
como Perón na Argentina ou Cárdenas no México.

Em última instância, esses são os elementos que permitem configurar,
com contornos cada vez mais nítidos, dois grandes campos burgueses em
disputa, que respondem às duas grandes formas de bonapartismo em países
semicoloniais como o Brasil. Como dizia Trotsky:

Estamos num período em que a burguesia nacional busca obter um pouco mais de
independência frente aos imperialismos estrangeiros. A burguesia nacional está
obrigada a flertar com os operários, com os camponeses, e temos agora o homem
forte do país orientado à esquerda como hoje no México. Se a burguesia nacional
está obrigada a abandonar a luta contra os capitalistas estrangeiros e trabalhar sob
sua tutela direta, teremos um regime fascista, como no Brasil, por exemplo. Mas ali
a burguesia é absolutamente incapaz de constituir sua dominação democrática,
porque, por um lado tem o capital imperialista, e por outro, tem medo do
proletariado porque a história, ali, saltou uma etapa e porque o proletariado se
tornou um fator importante antes que tenha sido realizada a organização
democrática do conjunto da sociedade. (”¦) Inclusive nestes governos semi
bonapartistas democráticos, o Estado necessita do apoio dos camponeses e é graças
ao seu peso que disciplina os operários. É mais ou menos o que ocorre no México. [31]

Orientando a IV Internacional sobre como atuar frente aos setores
burgueses que tentam desenvolver uma política nacionalista,Trotsky escreve:

Estamos em perpétua competição com a burguesia nacional, como única direção
capaz de assegurar a vitória das massas no combate contra os imperialistas
estrangeiros. Na questão agrária, apoiamos as expropriações. Isso não significa, bem
entendido, que apoiemos a burguesia nacional. Em todos os casos em que ela
enfrenta diretamente os imperialistas estrangeiros ou seus agentes reacionários
fascistas, damos a ela nosso pleno apoio revolucionário, conservando a
independência íntegra de nossa organização, de nosso programa, de nosso partido,
e nossa plena liberdade de crítica. O Kuomintang na China, o PRM no México, o
APRA no Peru [32] são organizações totalmente análogas. É a frente popular sob a
forma de um partido. (...) Corretamente considerado, a Frente Popular não tem na
América Latina um caráter tão reacionário como na França ou na Espanha. Tem
duas facetas. Pode ter um conteúdo reacionário na medida em que esteja dirigido
contra os operários, pode ter um caráter agressivo [33] na medida em que esteja dirigido
contra o imperialismo. Porém, considerando a frente popular na América Latina
sob a forma de um partido político nacional, fazemos uma distinção com respeito
a França e a Espanha.Mas esta diferença histórica de apreciação e esta diferença de
atitude só estão permitidas com a condição de que nossa organização não participe
do APRA, do Kuomintang ou do PRM, que conserve uma liberdade de ação e de
crítica absoluta. [34]

Estas últimas considerações levantadas por Trotsky adquirem grande
importância, pois rejeitam qualquer postura sectária e assim previnem o seu
oposto, isto é, o impressionismo oportunista diante de eventuais medidas de
confronto com o imperialismo que pudessem vir a ser tomada por setores da
burguesia. No caso brasileiro, descrevem perfeitamente a atitude a ser
tomada frente a medidas como as de Brizola, quando este “encampou”
(estatizou) a companhia de energia elétrica do RS, subsidiária da AMFORP
estadunidense, em 1959, assim como a telefónica gaúcha em 1961
(subsidiária da ITT, outra companhia norte-americana). Medidas pelas
quais, somadas ao desejo expresso de combater pelas armas aos golpistas, que nos levaram a identificar Brizola como a ala mais radical da corrente
burguesa que tendia a um bonapartismo sui generis de esquerda.

Do outro lado, a articulação das alas encabeçadas pela UDN civil e
militar com o imperialismo norte-americano é hoje comprovada por
inúmeros documentos, que provam que, sobretudo através do IPES e do
IBAD, o imperialismo realizou gastos sistemáticos, por um lado no trabalho
de arregimentar os setores burgueses capazes de engajar-se na preparação do
golpe militar, e as alas das Forças Armadas dispostas a dirigir a transformação
reacionária do regime; e por outro lado, na criação de associações especiais
para a infiltração de agentes pró-imperialistas nas organizações da sociedade
civil, com instrumentos especializados e voltados a seus diversos segmentos:
as associações populares e de mulheres, de juventude, os parlamentares, e
inclusive no movimento operário e nas organizações camponesas [35]. Além
disso, o contingente de militares norte-americanos no Brasil atingiu nos
anos imediatamente anteriores ao golpe recordes históricos, superando
inclusive os números da época da Segunda Guerra (quando a presença de
bases americanas no Nordeste era oficial), atingindo cerca de dez mil pessoas,
quatro mil a mais das que entraram no Brasil apenas no ano de 1963.

[1Antonio Rago Filho, Opt. cit.

[2Arruda Câmara iria aderir a este último após o golpe de 1964, tornando-se automaticamente um de
seus principais dirigentes.

[3Como mostram os relatos do embaixador da época e documentos recentemente liberados pela CIA.

[4As tentativas de incorporação das demandas camponesas por parte da burguesia vinham, é claro,
desde muito antes, pelo menos desde o início da década de 50.

[5Os demais militantes trotskistas que atuavam na região foram presos em seguida ’ sob os governos
de João Goulart e Miguel Arraes ’ em nome da Lei de Segurança Nacional.

[6“Demagogia e Extremismo” , editorial Estado de São Paulo, 18.06.1960.

[7Segundo entrevista do Marechal Odílio Denys a Moniz Bandeira em 17.11.1976, Ademar de Barros
informou-lhe que este era o propósito de Goulart, que pretendia proclamá-la em 1º de maio de 1964.
Segundo autores que posteriormente se tornaram trabalhistas, como Moniz Bandeira, este propósito
nunca existiu.

[8Entrevista do marechal Odílio Denys a Moniz Bandeira. Rio de Janeiro, 17.11.1976.

[9O semanário, Rio de Janeiro, n 375, 12 a 18.05.1964, p. 5.

[10O semanário, Opt. cit.

[11O Globo, Rio de Janeiro, 11.04.1964, p. 10.

[12O semanário, Opt. cit.

[13O semanário, Opt. cit.

[14O semanário, Opt. cit.

[15Luiz AlbertoMoniz Bandeira, O governo João Goulart ’ As lutas sociais no Brasil ’ 1961-1964, Editora
Renavan e Editora UNB, 2001.

[16Este subtópico foi baseado no artigo “A luta de classes e os marinheiros no pré-1964: uma tentativa
de resistir ao golpe” , de Leandro Ventura, publicado no Jornal Palavra Operária de janeiro-fevereiro
de 2007. O artigo, por sua vez, está baseado, sobretudo, em: Avelino Capitani, A rebelião dos
marinheiros, Artes e Ofícios, Porto Alegre, 1997; Pedro Viegas, Trajetória Rebelde, Cortez, São Paulo,
2004; e Flávio Rodrigues, As vozes do mar, FFLCH, São Paulo, 2002.

[17Os relatos da revolta da Chibata expressavam este antagonismo e também marcavam subjetivamente
os marinheiros.

[18Avelino Capitani, Opt. cit., p. 35.

[19Avelino Capitani, A Rebelião dos Marinheiros, Editora Expressão Popular, 2005, p. 49-50.

[20Avelino Capitani, Opt. cit., p. 57. Flávio Rodrigues, Opt. cit., p. 84.

[21Avelino Capitani, Opt. cit., Editora Expressão Popular, 2005, p. 49-50.

[22Avelino Capitani, Opt. cit., Artes e Ofícios, p. 59.

[23Informe de Balanço do CC ao VI Congresso em PCB: vinte anos de política 1958-1979. São Paulo,
LECH, 1980.

[24Em 1959, o nível salarial geral atinge o seu pico em todo o período de 1945 a 1964, vale dizer, até o
fim da ditadura que escorchou ainda mais os salários (de 1959 até 1963 os salários já tinham perdido
25% do seu poder de compra, em 1968 essa perda acumulada chegava a 59%).

[25Dentre os principais conflitos que marcaram este ascenso nos anos 50, destacamos a “greve dos 300
mil” na qual, metalúrgicos, marceneiros, padeiros, vidreiros, têxteis e gráficos paulistas, alentados por
uma forte greve têxtil vitoriosa que havia recém ocorrido no Rio de Janeiro, pararam a produção
durante 27 dias lutando por aumento salarial e contra o Pacto Militar Brasil-EUA que neste então
tramitava no Congresso. Como subproduto da vitória parcial desta greve, surge o Pacto de Unidade
Intersindical (PUI), que chega a reunir em torno de si mais de 100 sindicatos e que vai liderar nos
anos seguintes os principais processos de luta em São Paulo. Em 1960, destacam-se, pelo grau de
radicalização e de politização, marcando o início de uma tendência que vai se desenvolver nos anos
seguintes, a greve geral na cidade de Santos em apoio a 31 operários do Moinho Santista ameaçados
de serem transferidos por perseguição política; e a chamada “greve da paridade” , encabeçada pelos
trabalhadores ferroviários, marítimos e portuários em resposta a um aumento salarial restrito ao
militares que havia sido aprovado no Parlamento, enfrentando diretamente os ministros do Trabalho
e da Justiça. Como fruto da vitória dessa greve, surge o Pacto de Unidade e Ação (PUA), uma
coordenação de sindicatos que passa a liderar os setores mais combativos do Rio de Janeiro.

[26Os 18mil ferroviários da Leopoldina paralizaramno dia 26.No dia 27, são paralisados todos os principais
bancos do país. No dia 30, constitui-se a nível nacional o organismo que ficou conhecido como
“Comando Geral de Greve” (CGG). A esta altura já estavam em greve setores de metalúrgicos do Rio de
Janeiro, vidreiros, operários da construção civil e comerciários de Nilópolis, operários da Cia. Nacional
de à lcalis de Cabo Frio, ferroviários de Minas Gerais, da Central do Brasil do Rio de Janeiro e da
Leopoldina de São Paulo, tecelões do Rio e deMinas,mineiros de Nova Lima, portuários de Santos e do
Rio de Janeiro e aeroviários emvárias partes do país. No dia 2 de setembro novos setores aderemà greve,
neste então já predominantemente sob direção do CGG: estivadores e portuários, que reuniam 300 mil
em todo o país, dentre os quais se encontram os 100 mil Oficiais de Náutica e daMarinhaMercante.

[27No mês de agosto de 1962, se reúne o IV Encontro Sindical Nacional, do qual participam 2.566
delegados representando 574 entidades de todo o país. É nesse encontro que se funda o CGT, como
desenvolvimento do Comando Geral de Greve formado na greve pela posse de Jango em agosto de
1961 e que teve continuidade em julho, e representava um fruto direto da vitória do movimento. Foi
o mais perto que a classe operária brasileira chegou de forjar uma Central Sindical Única. O CGT
era composto pela articulação entre as Confederações Nacionais de Trabalhadores da Indústria, dos
Transportes Marítimos, Fluviais e Aéreos, dos Trabalhadores das Empresas de Crédito e, mais tarde,
dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG). A única confederação que não se uniu ao CGT foi a
dos Trabalhadores do Comércio. O CGT possuía assim um duplo caráter: desafiava a legislação
brasileira que negava à classe operária o direito de organizar-se em Central Sindical; por outro lado,
mantinha a política de conciliação de classes, o cupulismo e o burocratismo da estrutura sindical
oficial, principalmente devido às suas direções, que eram compostas pelo PCB e o PTB.

[28Moisés Vinhas, O Partidão - a luta por um partido de massas 1922-1974, Editora Hucitec, São Paulo,
1982, p. 192.

[29León Trotsky, Aonde vai a Inglaterra?, Editora El Yunque, Buenos Aires, 1974, p. 94.

[30León Trotsky, Escritos Latinoamericanos, “La industria nacionalizada y la administración obrera” , 12
de maio de 1939, CEIP León Trotsky, Buenos Aires, 1999, p. 151.

[31Ibídem, “Discussión sobre América Latina” , 4 de novembro de 1938. Entrevista. Intervenção de
Trotsky na entrevista. CEIP León Trotsky, Buenos Aires, 1999.

[32O Kuomintang era o partido nacionalista burguês chinês fundado por Sun Yat Sen e utilizado por
Chiang Kai Shek. O Partido Nacionalista Mexicano foi fundado formalmente em 1928 sob o nome
de Partido Nacional Revolucionário (PNR) pelo general Plutarco Elías Calles. Cárdenas, quem dirigia
sua “esquerda” , o havia reorganizado em 1938 e o havia rebatizado Partido da Revolução Mexicana
(PRM).

[33Nota doTradutor: Na versão francesa, que tomamos como referência, figura o termo "agressive", cuja
tradução literal é "agressivo". Utilizamos esta expressão apesar de que em outras três traduções ao
espanhol deste artigo figure o termo "progressivo".

[34León Trotsky, Escritos Latinoamericanos, “Discussión sobre América Latina” , 4 de novembro de 1938.
Entrevista. Intervenção de Trotsky na entrevista. CEIP León Trotsky, Buenos Aires, 1999.

[35Moniz Bandeira faz um relato detalhado dessas operações, incluindo cifras revelando a dimensão dos
gastos financeiros, de recursos humanos e de armamentos engajados pelo imperialismo, sobretudo
através da CIA e da embaixada norte-americana, para a preparação do Golpe. Ver O governo João
Goulart ’ As lutas sociais no Brasil ’ 1961-1964, Editora Renavan e Editora UNB, 2001.









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