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Teoria

Os soviets e o "duplo poder" no começo da Revolução Russa

24 Mar 2007   |   comentários

Depois da “revolução de fevereiro” , o Soviet passou a ser a instituição que concentrava a estendida ação operária e popular. Era a principal referência da emergência de uma organização autónoma das massas operárias e populares que viria a inverter todas as relações sociais tal como haviam sido até o momento. Profundas mudanças psicológicas e de atitude das massas estavam sendo postas em prática. As mulheres usavam calças e se juntavam às milicias, as empregadas domesticas exigiam ser tratadas por “senhora” e não por “você” , que era a forma como se dirigiam antigamente os amos aos seus servos. Os jovens operários se armavam e conformavam as Guardas Vermelhas para estabelecer a proteção dos bairros operários. A cidade de Petrogrado dava a imagem de uma assembléia permanente, tudo era discutido nas esquinas, nos bairros, nos cafés. Além disso, o impulso destrutivo das massas com respeito às instituições do antigo regime era profundo, tudo que estava relacionado com ele foi eliminado.

O Soviet de Petrogrado suscitava todas as simpatias e adesões das massas e atuava como o centro dirigente da revolução. Estendendo sua influência na economia nacional (desde a subsistência cotidiana até o banco do Estado, passando pela imposição do “controle operário” nas fábricas), na organização da vida cotidiana (controlava os transportes e a segurança pública) e sendo o organismo onde os representantes das massas deliberavam politicamente, era inevitável que se mostrasse como outro poder, que rivalizava com o Estado em ruínas.

O regime do duplo poder: a “instabilidade permanente”

Porém, a tendência revolucionária inicial dos operários e soldados não chegou ao seu arremate em escala estatal. A “revolução de Fevereiro” teve um resultado paradoxal, com o governo ainda nas mãos de representantes burgueses, latifundiários e social-revolucionários, contando com o apoio do Comitê Executivo dos Soviets, hegemonizado nesse momento pelos partidos “conciliadores” com a burguesia. No entanto, isso não significava que as forças sociais postas de pé com a revolução tivessem desaparecido, pelo contrário, estas estavam presentes em cada aspecto da situação. No decorrer do combate nas ruas, os operários haviam conquistado os soldados, que reconheceram no Soviet a autoridade legítima da revolução.

Para o marxismo, a característica fundamental do Estado é o “monopólio da violência” dentro de um territorio dado. Precisamente isto é o que se punha em questão depois da “revolução de fevereiro” . A passagem das guarnições do Exército para o lado da revolução e a ruptura da cadeia de obediência dentro do Exército tinham tornado possível uma poderosa aliança social dirigida pelos Soviets integrados pelos operários e soldados insurgidos e, sobretudo, armados. O poder não pertencia aos representantes das classes proprietárias, que por sua vez tentariam agora retomá-lo através do fortalecimento do governo e do Estado.

Assim, a “Revolução de Fevereiro” deixou colocado um profundo problema em torno a quem pertencia o poder, porém não o resolveu, dando origem a uma situação de “duplo poder” . Esta será a fonte da instabilidade permanente do regime até a revolução de Outubro. Os soviets armados eram irreconciliáveis com o poder estatal. Os dois poderes rivalizavam inevitavelmente e se preparavam para o futuro enfrentamento.

Podemos dizer então que o duplo poder aparece quando as lutas revolucionárias geram fissuras nas forças do regime e do Estado, porém ainda sem conformar outro poder alternativo. Nesta situação transitória, na qual a soberania política está em disputa, dois poderes rivalizam, medem suas forças, chegam a acordos provisórios, para logo retomar o caminho da confrontação e da instabilidade e, aumentando assim, ainda mais o abismo entre os dois. Esse abismo depende em última instância de que a base social de ambos poderes seja irreconciliável.

Soviets conciliadores ou embriões de um novo poder?

O poder da burguesia, organizado através do Estado, buscava conter a ação das massas, ao mesmo tempo que mantinha a disciplina no Exército para continuar na guerra colaborando com os imperialistas.

O Soviet, pelo contrário, era a instituição do proletariado e das demais classes oprimidas, no qual, no entanto, ainda primava uma política conciliadora.

Os social-revolucionários baseavam sua dominação política na enorme representação da pequena-burguesia do campo. Na plenária do Soviet as proporções favoreciam os soldados de tal maneira, que para cada 5 delegados dos soldados havia 2 delegados dos operários. Isto fortalecia a aliança de classes recém-constituída, porém dava um peso preponderante à pequena-burguesia camponesa. Assim fortalecidos, os social-revolucionários podiam levar adiante suas políticas conciliadoras com os representantes burgueses baseados na ilusão de que era possivel constituir uma frente de “todo o povo” que postergasse os enfrentamentos das classes antagónicas.

Esta enorme “maré pequeno-burguesa” (Lênin) incidia também sobre a classe operária, dando aos mencheviques o papel principal. Estes sustentavam o Governo Provisório baseados na ilusão de criar uma “democracia pura” e estavel onde as classes pudessem dirimir seus conflitos. Um regime onde pudessem se desenvolver tanto o republicanismo burguês e o sistema democrático, como as liberdades e condições necessárias para que o proletariado começasse a luta pelo socialismo. Com estas políticas, social-revolucionários e mencheviques buscavam atenuar ao máximo o caráter revolucionário dos soviets, descartando completamente a possibilidade de avançar até a confrontação com o Estado central e lutar pelo poder.

Duas saídas em disputa

No antagonismo entre o Soviet, como o embrião de um novo tipo de sociedade baseada na democracia dos trabalhadores e das classes oprimidas, e o Governo Provisório, que era o sustentáculo da sociedade de classes, dois poderes se enfrentavam para impor uma saída à situação instável do duplo poder. As classes dominantes deviam desarmar o Soviet e impor a autoridade do Estado. Para isso recorrerão, por um lado, às manobras das coalizões com os socialistas moderados que se apresentavam frente às massas como “seu” governo (Kerensky era ao mesmo tempo integrante do Comitê Executivo do Soviet e Ministro do primeiro Governo Provisório). Porém, ao mesmo tempo, preparavam as tentativas de se impor pela força através de golpes reacionários.

Também as massas oprimidas atuarão para resolver a “instabilidade do duplo poder” a seu favor protagonizando “jornadas revolucionarias” “semi-espontâneas” , ou insuficientemente preparadas, que têm como objetivo derrubar o governo provisório.

Os Soviets e o partido revolucionario

O fermento necessário para desenvolver a revolução até conquistar as demandas fundamentais com as quais ela havia nascido estava ali: eram os soviets armados, o desenvolvimento das lutas operárias e das ações independentes das massas. Porém para triunfar foi necessario que o Soviet fosse amadurecendo como organização de poder ao longo de uma série de giros e mudanças bruscas, avanços e retrocessos, que foram possíveis porque sua organização se ajustava constantemente à iniciativa da classe operária e dos setores oprimidos, mediante a revogabilidade dos delegados e pela rotação constante, ajustando as propoções de representação das distintas frações de classes mediante a experiência de um combate de meses.

Para poder triunfar, o Soviet devia expressar a luta da classe operária para conquistar a hegemonia sobre as demáis classes oprimidas, porém a existência de partidos conciliadores era o principal impedimento para isso. O Soviet por sua própria existência não era garantia de que a classe operária atuasse como classe dirigente, pois a política conciliadora podia evitá-lo. Lutando contra isso, Trotsky defendia nesses dias: “o correto é que o proletariado revolucionário crie seus propios órgãos, os Soviets (”¦) contra os órgãos executivos do governo provisório. Nesta luta, o proletariado deveria unir-se com as massas da população, com o objetivo de tomar o poder governamental. Somente um governo operário revolucionario terá o desejo e a capacidade de introduzir no país a limpeza democrática que se necessita (”¦e) demonstrar aos camponeses mais pobres, na prática, que sua única salvação é apoiar um régime operário revolucionário” . O proletariado podia, através do Soviet, tomar as demandas das demais classes oprimidas, conquistando a hegemonia na revolução. Porém, para isso tinha que evitar que a direção conciliadora se impusesse no soviet. Isso requeria a ação de um partido revolucionário e este foi o papel insubstituível do Partido Bolchevique.

Os bolcheviques, no enfrentamento com os partidos conciliadores deviam confluir com a vanguarda operária e ganhar a direção dos Soviets. Para isso o partido devia atuar como um estrategista de todo o processo revolucionário, distinguindo os tempos e marcando o passo das lutas. Quando atacar, quando retroceder, quando preparar-se, quando assaltar o poder. Só uma direção revolucionária pode cumprir esse papel.

Durante o primeiro mês e meio da revolução, primava o desconcerto e a confusão no bolchevismo. Durante março, no partido recém-saido da clandestinidade, e com seus dirigentes mais experimentados ainda no exilio, se impós uma linha de apoio crítico ao Governo Provisório. Os bolcheviques de base já defendiam que o poder soviético devia desvencilhar-se do peso do Governo com a burguesia. Porém, os principais dirigentes, Stalin e Kamenev, reorientaram a política decididamente em direção ao apoio “crítico” ao governo e à conciliação com os mencheviques. Em suas Cartas de Longe, Lênin combateu desde o exilio a política desses dirigentes bolcheviques e, opondo-se resolutamente aos partidos mencheviques e social-revolucionários declarava a “independência total do bolchevismo com relação ao resto dos partidos” .

Contrariamente aos que acreditavam que era a burguesia a encarregada de dirigir a sociedade, (e por isso relegavam a função do Soviet a vigiar o governo burguês), Lênin defende resolutamente a consigna de: “todo o poder aos soviets” , afirmando além disso que a luta pelas reformas democráticas ainda pendentes só se conseguiria com a expropriação dos capitalistas e latifundiários em uma revolução socialista. O objetivo estratégico era substituir definitivamente o Estado das classes dominantes por um Estado de novo tipo, a ditadura do proletariado, baseada nos soviets.

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