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Cultura

O som da militância: canção, marxismo e outras transas

15 Feb 2015   |   comentários

O marxismo não é uma camisa de força, mas uma concepção filosófica que permite a eles entender que a música não pode se salvar sozinha, isto é, fora de um projeto político revolucionário. A inalienável liberdade do músico que desconhece restrições de fronteira nacional existe dentro da luta de classes.

Uma amável senhora maluca disse-me certa vez que nos seus tempos de juventude, durante o final dos anos setenta, as correntes políticas de esquerda demarcavam o seu território com música: de um lado estava a rapaziada nacionalista, que trazia cavaquinhos nas mãos e pandeiros embaixo dos braços. Do outro lado (em direção à esquerda, para sermos mais exatos) estava uma turma que portava guitarras, ostentava cabelos compridos, desenhos psicodélicos nos rostos e diagnosticava que a luta operária é internacional. Eram os tempos em que “marxistas-leninistas” originários de organizações como o “Partidão”, degladiavam-se com militantes trotskistas agrupados em torno da LIBELU (Liberdade e Luta). Naquele contexto de um Brasil que ainda sofria com as brutalidades da ditadura militar (1964-1985), rock e samba eram gêneros musicais cujas vinculações ideológicas com posições políticas de esquerda, animavam o movimento estudantil. Se levarmos este debate musical/político para os dias atuais, então iremos nos deparar com alguns desdobramentos históricos, presentes diretamente e indiretamente nas vivências culturais da esquerda.

A nona edição da Bienal da UNE (União Nacional dos Estudantes) ocorrida na cidade do Rio de Janeiro e que teve seu encerramento no último dia 6, ainda exprime uma concepção enraizada na noção do “nacional- popular”; cuja origem reside na política cultural que a esquerda imersa nas alianças políticas com a burguesia sustenta há muitas décadas. O próprio tema “Vozes do Brasil” colocou em foco a questão da diversidade cultural espalhada pelo território do país. De fato, este é um tema importante e que pode ter uma abordagem revolucionária, pois é através das diferentes realidades regionais que observamos e aprendemos com práticas artísticas populares, inclusive musicais. Porém, a questão musical e mais amplamente estética não passa neste modelo de política cultural nacionalista, pela importância artística e pela origem de classe das manifestações: o que notamos é o aspecto ideológico forçado que abstratamente almeja representar “o povo brasileiro” através de artistas universitários afinados politicamente ao discurso da UNE. Embora nem tudo na música presente na Bienal da UNE ligue-se ao ufanismo, não se pode negar que é a velha ladainha nacionalista que dá o tom.

O que acaba por estar oculto nesta concepção “nacional- popular” de cultura, são os erros políticos de um modelo de esquerda que, além de ser conivente com o governo burguês do PT, não presta atenção nos novos componentes culturais e musicais que a juventude revolucionária apresenta. Jovens trabalhadores e militantes revolucionários em geral, não negam a riqueza popular contida no samba, no maracatu, no frevo e em outras expressões musicais. Mas, paralelamente, não deixam de criar e ouvir canções afinadas com os protestos de rua presentes no campo internacional: revisitações que vão da folk song e chegam ao punk rock, somam-se a uma série de outros elementos estéticos contestadores colocados em evidência desde as jornadas de junho de 2013: a subversão dos signos da cultura de massa numa perspectiva situacionista e Pop, a reinvenção do construtivismo russo na arte gráfica e nos vídeos de rua, além de experiências poéticas que guardam parentescos com o surrealismo e a Beat generation.

O problema político contido no discurso que prioriza uma música “nacional e popular” não está na apreciação/valorização da produção musical nascida no país. É antes um problema de fronteira amparado pelos delírios do colaboracionismo de classe, que além de realizarem a contenção das lutas sociais, acabam por frear a criatividade e limitar a identidade cultural da classe operária brasileira; justamente num momento em que a realidade tecnológica do mundo digital exige de nossa parte, mais do que antes, a contrapartida na construção planetária de uma identidade cultural revolucionária: esta é múltipla, propicia sínteses entre o regional e o internacional, e pode colocar em cheque a existência burguesa do Estado nação. É claro que o samba é um gênero musical que fala a língua do proletariado, mas é preciso denunciar sempre a apropriação ideológica realizada pela esquerda nacionalista: foi assim que o Partido Comunista Brasileiro fez do samba a partir do pós-guerra, “a verdadeira música do povo brasileiro”. Esta mentalidade ainda subsiste no momento em que a juventude brasileira (verdadeiramente) de esquerda não possui mais grilos com a guitarra elétrica.

A própria História encarregou-se de desmentir dentro da música a falsa polarização entre nacional (“revolucionário”) X internacional(“imperialista”): quando a temperatura política elevou-se no Brasil e no mundo em 1968, quem podia sustentar que o compositor revolucionário era apenas aquele que fazia sambinhas orientados pelo “Partidão”? Os Rolling Stones, antes da champagne falar mais alto que a rebeldia, demonstraram com a canção Street Fighting Man que em qualquer país a luta é travada entre revolucionários e o Estado capitalista (a capa do single da canção que o diga: a foto de um militante sendo reprimido pela polícia é uma imagem que possui um sentido internacional, seja em 1968 ou hoje em dia).

A música, enquanto ingrediente para a subversão política, encontra-se como a arte de um modo geral, ameaçada pela cooptação: a inquestionável habilidade do capitalismo em assimilar sua antítese, verifica-se, por exemplo, na existência de “músicos medalhões” que, portando cavaquinhos ou guitarras, tornaram-se patrimônios da cultura oficial: a rebelião musical de ontem foi assimilada pelo capital. Entretanto, a garotada esperta sempre arranja uma maneira de criar canções que desafiam o status quo. O importante é mostrar a estes garotos que o marxismo não é uma camisa de força, mas uma concepção filosófica que permite a eles entender que a música não pode se salvar sozinha, isto é, fora de um projeto político revolucionário. A inalienável liberdade do músico que desconhece restrições de fronteira nacional existe dentro da luta de classes.

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