Quinta 25 de Abril de 2024

Cultura

O segredo por trás da casca: a mordacidade contra a escravidão em Machado de Assis

24 Nov 2014   |   comentários

Acreditamos que a tese de um suposto Machado como “observador do sofrimento alheio”, contentando-se com críticas às injustiças aos negros dentro dos limites aceitáveis de uma sociedade da qual dependiam seus privilégios, não se sustenta sob nenhum ponto de vista.

Dizia um crítico literário que, se Machado de Assis fosse conhecido internacionalmente na época de suas obras, seria facilmente reconhecido como “o maior realista de todos os tempos”. Concordamos com esta afirmação. Dentre os gigantes literários da sociedade carioca no século XIX e sua passagem ao século XX (dentre os quais figura Lima Barreto, outro grande escritor negro), Machado é certamente dos que melhor concentra as contradições sociais investidas no centro político-econômico do país, num estágio de transição histórico em que as manifestações filosóficas mais avançadas do Velho Mundo – sacudidas até os alicerces pela Revolução Francesa e pela primavera dos povos de 1848 – serviam curiosamente à modernização de uma elite enraizada no escravismo colonial. As façanhas literárias de Machado de Assis, no âmbito da profundidade e do volume, são extraordinárias, e não entraremos neste mérito, já que o objetivo desta “folha avulsa” é deixar na mesa um contraponto a esta nota do meu amigo Pardal.

Mais importante que saber que o sofrimento alheio não dilacera pele própria, é entender que “Há pessoas que não sabem, ou não se lembram, de raspar a casca do riso para ver o que há dentro,” ou outras cascas mais irônicas e sarcásticas, por trás das quais se encontram (e não “se ocultam”) as condenações mais mordazes a uma sociedade cuja elite brandia as mais grandiloqüentes fórmulas iluministas, entre duas sopas servidas por escravas. Olhando atentamente os sinais literários de Machado e a exuberante roupagem de sua ironia, a temática do negro, para um autor que pagou os “pecados” impostos pelo racismo no país que se tornou o maior cativeiro de negros do mundo, sempre esteve presente em maior ou menor grau, junto à crítica mordaz da barbárie colonial.

Não acreditamos que nosso contraditor Fernando Pardal não saiba raspar as cascas necessárias. Entretanto, tanto maior a necessidade de limpar estes terrenos de análise e ver realmente qual a posição histórica de Machado de Assis frente à questão negra. Acreditamos que a tese de um suposto Machado como “observador do sofrimento alheio”, contentando-se com críticas às injustiças aos negros dentro dos limites aceitáveis de uma sociedade da qual dependiam seus privilégios, não se sustenta sob nenhum ponto de vista. As próprias passagens literárias escolhidas para sustentar este argumento, de nosso ponto de vista, contradizem-no completamente.

Machado de Assis como homem público

Se não era conveniente tocar num tema tão “delicado” quanto a escravidão e a identidade racial na sociedade carioca, sob risco do desencanto burguês, Machado deveria ter sido exonerado da Academia Brasileira de Letras. As crônicas da vida cotidiana no Correio Mercantil e no Jornal do Rio de Janeiro, em 1860-70, o “incriminam” já, com denúncias sutis às aberrações contra os negros (como as notas irônicas sobre o efeito da Lei de Terras, de 1850, que incentivava a emigração de europeus para ocupar o campo brasileiro, impossibilitando ex-escravos serem donos de terras), mas não só se trata da vida pública nos jornais.

No Ministério da Agricultura, e nas repartições públicas em que serviu como funcionário, Machado lidava com duas questões específicas: a política de terras e a escravidão, onde assumia posições, ainda que reformistas, que contradiziam a luta diária do establishment oligárquico de manter os privilégios coloniais intactos. No caso da escravidão, assumia o desafio de fazer cumprir a Lei do Ventre Livre, de 1871, que estipulava que os filhos nascidos de mães escravas, após a determinação da Lei, estariam alforriados. Além de estabelecer a liberdade dos filhos de escravos, a lei também determinava que, quando fizessem 8 anos, essas crianças deveriam ser entregues ao governo imperial. Os senhores podiam escolher entre receber uma indenização ou ficar com as crianças até elas completarem 21 anos. As instituições organizadas para ficar com os filhos dos escravos eram obrigadas a dar educação primária a elas. A seção de Machado encaminhou uma consulta para obrigar os senhores que decidissem pela posse da criança a dar-lhes instrução primária e educá-las.

Segundo Sidney Chalhoub, a repartição em que Machado trabalhava recebia pedidos de concessão de terras e de reconhecimento de titularidades. Ainda que controlasse em alguma medida a expansão do latifúndio, também curava para que nenhum ex-escravo desobedecesse a Lei de Terras, para atulhar a cidade do Rio de Janeiro de mão de obra barata para as manufaturas incipientes. A batalha pela vigência da Lei de 1871 e inscrevia também nas intenções de obter reformas progressistas que tencionavam remover o negro da situação de miséria extrema pós-abolicionismo, contra-cara da barbárie capitalista que substituía o horror dos engenhos.

Contra o atraso senhorial, Machado encarava estas medidas de reforma como um caminho para a civilização moderna. Não cabe julgar estas ilusões machadianas mais de um século depois do que se provou ser o destino do negro na sociedade imperialista; e sim notar que seus trabalhos na esfera pública, depois do renome, não abandonaram a temática do negro.

Irônico nos limites do privilégio?

O “darwinismo social” do final do século XIX e no entrante do século XX, que apregoava a superioridade de certas sociedades humanas em relação a outras e seu direito ao domínio das populações “inferiores”, era o núcleo do cientificismo burguês, cuja sociedade, desgarrada por contradições econômicas cada vez maiores, precisava “reinaugurar” teoricamente as falácias que permitiram os discursos da colonização seiscentista, numa nova época. Machado não viveu integralmente esta nova época, que nós marxistas caracterizamos como imperialista. Mas isto não impediu que em seus romances, contos e toda a obra ficcional, combatesse sutilmente estas idéias (particularmente sobre a “superioridade racial”), utilizando um recurso “de maestro” machadiano: utilizar a voz do protagonista para enfatizar, ao edificar sua filosofia, o ridículo de sua própria ideologia.

Faz isso com Brás Cubas, em Memórias Póstumas de Brás Cubas (publicado em 1881). Brás, parte da poderosa classe senhorial carioca, é um atípico (“defunto autor”) senhor de escravos herdeiro de propriedade paterna, que teve o privilégio “de nunca ter ganhado o pão com o suor de seu rosto.” Mas ganhou com o suor de outrem, a partir do mecanismo social da servidão escrava, o que não deixava de ser incômodo à “elevada moral” da elite no período pré-abolicionista.

Seu interlocutor filosófico, Quincas Borba (retratado como um excêntrico por Machado) representa a ideologia cientificista da época que justifica a natureza desta divisão social, na moda nos anos 1880, a partir do Humanitas, o princípio de tudo, que “resume o universo, e o universo é o homem”. Segundo Borba, cada ser humano corresponde a uma parte de Humanitas, o que justifica a existência de seres mais fortes e mais fracos; uma vez que a destruição de uma porção destas partes não elimina o todo, a destruição não atinge o princípio universal; daí, não há morte, mas apenas supressão de uma força para a sobrevivência de outra (a tradução “social” da “lei da natureza”: o forte sobreviverá, o fraco deve sofrer, elemento basilar da filosofia colonialista).

Assim, em Quincas Borba, este personagem sintetiza a idéia a Rubião com a famosa metáfora da luta de duas tribos pelo campo de batatas, suficiente à sobrevivência de uma delas, caso outra fosse eliminada; ou que aniquilaria as duas tribos, se estas decidissem pela partilha da insuficiência: “ao perdedor, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.

Brás Cubas personifica a crítica radical de Machado contra este “cientificismo racial” que vinha substituir a política de domínio pela escravidão, que tratava de justificar não só a opressão colonial, mas a sustentação da base escravocrata no Brasil. Para dialogar com Fernando, no capítulo “O Vergalho”, Brás Cubas se regozija em ver sua violência passada praticada contra um escravo, nas mãos de um escravo alforriado. Machado, longe de “depor a crítica sobre o ex-escravo Prudêncio”, ressalta o cinismo com que a classe senhorial se eximia do papel de opressora, rindo de uma suposta equivalência humana retratada em um escravo transmitindo à geração futura a violência de que padeceu. A liberdade seria o “lobo do homem”: sua conquista necessariamente significava a sujeição de outro. Essa era a filosofia basilar da burguesia européia na virada do século XX, que Machado ironizava com maestria na boca dos “súditos de elite” cariocas.

Se a libertação dos escravos significa simplesmente que a opressão viria de novas mãos, por que não sacrificar a parte já acostumada com a servidão em benefício da sobrevivência da outra parte, acostumada ao império?

Neutralidade frente à “cena” da abolição da escravatura?

Em outro exemplo de Fernando, no conto “Pai contra Mãe”, a evidência deste combate ao horror da escravidão é ainda maior. Publicado em 1906, quase 20 anos depois da abolição, Machado descreve a mortificante história de um desempregado, com uma esposa grávida, que precisa arranjar dinheiro para não perder o filho a um orfanato, conseguindo um emprego como apresador de escravos fugidos (os senhores de terras tinham direito de perseguir seus escravos fugidos, colocando suas características físicas nos jornais, premiando quem conseguisse identificá-los). Persegue uma escrava negra grávida, que no momento da captura, sofre um aborto. Mesmo depois da abolição formal, a sociedade burguesa nascente se aferrava ao atraso bárbaro do apresamento de negros.

Na mesma sintonia com diversas crônicas pós-abolição (como Abolição e Liberdade, citada por Fernando), a chave do argumento é desmascarar a farsa da alforria, que deixam a escravidão no engenho para permanecer na miséria assalariada do trabalho manufatureiro, ou da mendicância (“alforriá-lo era nada”, não conseguiria a liberdade). Assim como durante os séculos de submissão do negro, no momento da alforria, a glória é do senhor de engenho. Esta sátira do auto-retrato que se fazia a classe senhorial, de “libertadora”, contrasta sarcasticamente com o nome do escravo, Pancrácio – nome de uma arte marcial grega que combinava boxe e luta olímpica, com socos, chutes, joelhadas, cabeçadas, estrangulamentos, agarramentos, arremessos, imobilizações, torções, chaves e travamento das articulações – pois depõe no nome do escravo uma homenagem de Machado à resistência negra. Mais uma vez, faz pagar satiramente a elite, que saúda o opressor e não o oprimido liberto, mais rápida “que os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu.”

Poderíamos continuar com exemplos incessantes; mas o próprio Fernando trata de mostrar, contra sua intenção, como Machado expressa brilhantemente o “jogo de cena” da abolição da escravatura.

O motivo real do medo da abolição: “O Espelho”

É o que se pode ver, bem elaborado, no conto O Espelho: esboço de uma teoria da alma humana, publicado em Papéis Avulsos, em 1882. Nele, o alferes da Guarda Nacional Jacobino, chegando na fazenda de sua tia, fazendeira escravista, obriga orgulhosamente todos os seus escravos a tratá-lo como “senhor alferes”. Ausente, um dia, sua tia da fazenda, os escravos fogem, abandonando o alferes, privando-o da admiração exigida.

“Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes (...) Nenhum fôlego humano.(...) ninguém, um molequinho que fosse. Gatos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois... nenhum ente humano. Pareceu-lhes que isto era melhor do que ter morrido? Era pior”.

Estava quebrada a nobre imagem do senhor alferes. E de qualquer senhoria! É o diabo, um senhor sem escravos deixa de ser um senhor! Jacobino perde sua identidade (que Machado expressa na perda de sua imagem reflexa no espelho). No conto, não se fala uma palavra sobre “ordem escravocrata caindo por terra”, mas subentende-se tudo. Na ausência do escravo, como diria Hegel, o senhor “perde seu outro” e a essência que o compõe, com isso, perde também sua superioridade, esvanecida numa fazenda vazia, cinzenta, decrépita, sem glória, louvor, nem nada.

Seria este retrato sombrio com que ameaça a classe dominante, uma forma de Machado “ignorar o tema do negro” em benefício de sua ascensão social?

Cúmplice do estado de coisas? “Vejam as sutilezas do maroto”!

Inúmeras poderiam ser as abordagens do tema que, “metendo mais dentro a faca do raciocínio”, colocam Machado de Assis entre os maiores críticos dos privilégios senhoriais de uma burguesia da qual, independente do renome, nunca fez parte (a operação de enbranquecimento do Brasil por parte da burguesia brasileira era a única maneira de aceitar um “herói literário” como Machado). As sutilezas do combate à escravidão (e suas crônicas abruptamente claras anti-escravismo) se inscrevem, desde nosso ponto de vista, como um libelo monumental à tradição do combate dos negros contra a opressão.

Nada que ver com um receio “de por a perder seus privilégios” falando abertamente sobre a escravidão. Machado não era um militante, muito menos marxista. Não poderia utilizar suas obra ficcional como Lênin utilizava suas circulares públicas contra a opressão camponesa. Isso não diminui, mas enriquece absolutamente a literatura brasileira, tendo um gênio capaz de formular combates ácidos com a finura estilística inigualável do “Bruxo do Cosme Velho”.

Como expõe Roberto Schwarz, Machado não transforma o negro em herói ou ser extraordinário, nem o pinta com as cores miseráveis da ideologia dominadora. Ele o apresenta como ser humano que é, sujeito em sua condição de oprimido. Sem fazer apologia, mas de forma sutil, o autor, a seu modo, desnuda a realidade senhorial e revela uma sociedade em que a condição econômica define o indivíduo, determina sua exclusão ou aceitação. Uma sociedade que, sob uma fachada moderna e liberal, oculta as bases do sistema colonial, o escravismo e o clientelismo.

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