Terça 16 de Abril de 2024

Movimento Operário

MASSACRE CAPITALISTA EM BANGLADESH

O preço social da moda, do imperialismo e da revolta dos têxteis de Bangladesh

15 May 2013   |   comentários

A arquitetura carcerária das fábricas têxteis domina várias artérias de Dakha. O entramado de fábricas, oficinas em vielas estreitas, edifícios sobrepostos cujos andares, alicerçados em anêmicas vigas de cal e areia, são incapazes de sustentar a própria exploração para o qual se ergueram, conforma a caótica estrutura geográfica da ganância imperialista.

Sem lágrimas em teares que tremem tecemos e batemos os dentes. Alemanha, tecemos nesta ocasião aqui a tua mortalha e a tríplice maldição. Tecemos. Tecemos.

Maldição ao Deus falso, ao qual rezamos enquanto o frio e a fome agüentamos. Em vão confiamos e esperamos; tem fraudado, mentido e enganado. Tecemos. Tecemos.

Maldição ao rei o rei dos ricos, o monstro que traga os peixes pequenos; que nos oprime, explora e tonsura e, como aos cães, nos fuzila. Tecemos. Tecemos.

Maldição à Pátria falsa e funesta, que só à vergonha se presta, que a toda flor precocemente esmaga, e ao verme alimenta em podridão nefasta. Tecemos. Tecemos.

Voa a lançadeira e treme o tear. Tecemos com dedicação sem cessar. Alemanha de ontem, nesta ocasião, eis a tua mortalha e a tríplice maldição. Tecemos. Tecemos.

“Tecelões da Silésia”, de Heinrich Heine

As escavações na busca pelas centenas de corpos humanos soterrados sob os escombros e engolidos pelas mandíbulas impiedosas das oficinas têxteis de Primark, El Corte Inglés, Benetton, Mango, Zara, Tommy Hilfiger, num calor de 40 graus, não terminavam de encontrar a 610ª vítima mortal (das mais de 1130 agora) do colapso do edifício Rana Plaza – a maior tragédia operária num país em que o imperialismo mundial decidiu que a lei para os trabalhadores em seus locais de trabalho é “abandonai a esperança, vós que entrais” – quando a indústria têxtil obrigava os trabalhadores do setor a retomar o trabalho infernal nas oficinas situadas no centro de Dakha, capital de Bangladesh. “Queria dizer aos operários para manter a cabeça fria, manter as fábricas operando, senão perderão o seu trabalho”, anunciava a primeira ministra Sheikh Hasina. Mais de 1130 mortos. Fábricas sob o jugo de cujas presas milhões de seres humanos definham. A mesma voz de classe que ordenou a volta ao trabalho no dia anterior do massacre, grita “ordem!” e convida à sepultura com a chantagem do desemprego. As vozes, cuja voracidade acabava de consumir centenas de vidas operárias, que obrigavam os responsáveis pelo prédio a “amplificar as medidas de segurança que sempre foram exigidas pelas empresas para continuar a produção”, mostram um cinismo indignante e deixam-nos um inadulterado sentimento de ódio de classe.

A arquitetura carcerária das fábricas têxteis domina várias artérias de Dakha. O entramado de fábricas, oficinas em vielas estreitas, edifícios sobrepostos cujos andares, alicerçados em anêmicas vigas de cal e areia, são incapazes de sustentar a própria exploração para o qual se ergueram, conforma a caótica estrutura geográfica da ganância imperialista. Em várias conas do país há zonas especiais de processamento de exportações, com cinco anos de desoneração fiscal e repatriamento de lucros (somente 1,25% dos particulares e empresas pagam impostos). Ou seja, Bangladesh financia com o suor e o dinheiro público a moagem cotidiana de seres vivos. A maioria das firmas estrangeiras não monta fábrica própria, mas fazem pedidos a empresas locais para que ergam o negócio da patronal euro-americana. Através dessas empresas sonegadoras e clandestinas de particulares, que nenhuma multinacional da moda “sabia que atuava em seu nome”, é que uma camiseta custa 0,65 euros às companhias, com enormes lucros, que correram à Bangladesh quando os custos trabalhistas da China começaram a subir.

A maior tragédia da história do setor têxtil ocorrida em Bangladesh é apenas a maior gota – o acidente industrial mais grave desde o de Bophal em 1984 – num oceano de devastação criado pelas “democracias ocidentais” quando mobilizam a estrutura industrial da região asiática em favor de seus lucros astronômicos. Entre 2006 e 2012, o setor têxtil em Bangladesh ceifou, sozinho, quase 600.000 vidas operárias (como a queda do edifício da Spectrum, que produzia para Inditex, matando 64 operários, ou o incêndio na Tazreen Fashions, que em novembro de 2012 matou 112 operários têxteis). Essa hecatombe, permitida pela legislação “trabalhista” de um país cujo governo está umbilicalmente ligado às famílias e oligarquias têxteis, está inscrita na vida cotidiana da situação lamentável de milhões de pessoas: a indústria das roupas contribui com 80% de tudo que Bangladesh exporta – 20 bilhões de dólares – participando de 70% da produção nacional; emprega 4 milhões de trabalhadores em 4500 fábricas. Esses trabalhadores têxteis (dos quais 90% são mulheres, e como se pôde ver nas filmagens da retirada das vítimas depois do desastre, boa parte crianças com menos de 10 anos) estão entre os pior pagos no mundo, com 28 euros mensais, em jornadas estafantes de mais de 10 horas por dia, em complexos fabris inacabados que são verdadeiras armadilhas.

O cinismo generalizado dos estados europeus – aparatos políticos dos trusts internacionais da moda – ameaçando a condenação e sanção de multas a Bangladesh caso sua estrutura produtiva não se adeqüe “a melhores condições para os trabalhadores”, sinaliza um aspecto vital da época imperialista. O capitalismo espanhol, assim como o capitalismo britânico, sua indústria e a posição que ocupam, dependem totalmente de suas colônias (que não existem apenas no sentido político-histórico, mas também no sentido da sujeição à exportação de capitais). Bangladesh é uma colônia precisamente no sentido da subordinação de sua estrutura produtiva (e de sua classe burguesa) à valorização do capital estrangeiro: as maiores fábricas de Dakha foram obtidas prontas e feitas sob medida pelo capital financeiro euro-americano, que lhes extrai todos os lucros possíveis. Esses laços mundiais entre o imperialismo mundial e o proletariado mundial – a metrópole e suas colônias – e o fato de que um industrial de Bangladesh seja meramente um agente de terceiro escalão do capital financeiro mundial investem imediatamente esta luta operária de um caráter internacional.

Outro aspecto é o da extensão das democracias durante os últimos trinta anos à maioria dos Estados do mundo, que veio lado a lado a um salto em sua degradação geral. Como forma alternativa de dominação da burguesia mundial nas colônias e semi-colônias as atuais democracias degradadas são filhas da ofensiva neoliberal, das derrotas e da fragmentação da classe operária, foram uma cobertura para um ataque em regra aos direitos dos trabalhadores e suas condições de vida. O caráter decadente das “democracias” ocidentais está estampado nas figuras emaranhadas nos escombros e perfuradas pelas ferragens do Rana Plaza: este regime “democrático” de Bangladesh é expressão da solene legalização de todos os crimes imperialistas representados por Hollande, Cameron e Rajoy.

Um dos atributos do imperialismo consiste na superação das fronteiras nacionais; este é também um dos atributos de seu cinismo: as empresas H&M e Inditex (empresa do terceiro homem mais rico do mundo e que se utiliza de trabalho escravo) anunciaram compromisso de custear “melhores condições de trabalho” para o setor da roupa, para que os trabalhadores continuem deixando a vida nas fábricas – literalmente – por escabrosos 29 euros por mês, condição inamovível para a patronal.

As marcas licenciadas para matar e a fúria operária

As empresas têxteis são um dos setores que mais empregam mão de obra do mundo, e dos que mais lucra [1]. Zara, LVMH, L’Oreal e H&M estão entre as 12 maiores fortunas do mundo. A maioria conta com históricos de trabalho escravo. Todas as empresas da moda e de revenda de artigos têxteis de luxo na Europa e nos Estados Unidos asseguram uma situação tal para os trabalhadores que os expõem a uma morte prematura e certa, e mesmo sabendo que os trabalhadores serão vítimas dessas condições de existência, permitem que elas subsistam. E têm os mecanismos para não se responsabilizar por estes crimes sociais em Bangladesh e outros países da Ásia: seus representantes locais e empresários nacionais ganham “direitos de produção” das grandes marcas para encontrar força de trabalho e meios de produção adequados para atender à demanda e prazos de entrega dos artigos-base (indumentária e vestuário como camisas, etc.), administrando suas próprias condições de trabalho (subcontratações das subcontratações, quarteirização, trabalho escravo, etc.). As grandes grifes se desligam das responsabilidades do processo de produção, e da vida e morte dos operários. Nenhuma porção do genocídio de meio milhão de mulheres e crianças “foi feito com a autorização e sob consentimento” da “Marca Espanha” (Zara, Bershka, Pull & Bear, Stradivarius), que “desconheciam” o funcionamento das oficinas que fabricavam blusas ou camisetas em seu nome. Os chefes de inspeção que revistaram as condições do edifício Rana Plaza, e se depararam com a evidente impossibilidade de continuação do trabalho, por rachaduras imensas numa estrutura construída para abrigar escritórios e não nove andares preenchidos de teares e máquinas, e os donos das oficinas, obrigaram os 3000 operários soterrados em Dakha a voltar ao trabalho. Os donos de fábrica estavam com pressa para cumprir os prazos finais, já que a não entrega dos pedidos a tempo é retribuída com penalidades financeiras pelas grandes marcas “que desconhecem” o paradeiro dos produtores. Um festim sangrento, servido com corpos desfigurados que são enterrados antes de serem reconhecidos por familiares, foi preparado pela “ignorância patronal”.

Como culminação do cretinismo cínico dos que não dão nada pela vida dos trabalhadores está o empresário catalão David Mayor, diretor geral e coprorietário de Phantom-Tac – empresa conjunta de Phantom Apparels de Bangladesh e Textile Audit Company do Estado Espanhol, que ocupava 2000 m2 do edifício derrubado. Dizia há alguns anos que “Somos uma fábrica, cada centavo conta. Não somos uma ONG, mas também temos uma preocupação social”. Hoje, foragido depois de outros quatro donos de oficina terem sido presos, disse à Al Jazeera que “o que aconteceu em Bangladesh é problema deles”.

Mas nestes ateliês de definhamento e morte, (Engels encontrava nas maquiladoras têxteis da Inglaterra em 1845 uma situação semelhante, “tal que os trabalhadores não podem conservar nem a saúde nem viver por muito tempo; mina pouco a pouco a existência operária, e os conduz à tumba antes do tempo...”), em que o repulsivo odor das grandes grifes imperialistas sobrevoa os detritos das memórias de trabalhadores invisíveis, houve também o que mais nos entusiasma: a ira dos trabalhadores têxteis de Bangladesh saiu às ruas. Os trabalhadores das zonas industriais paralisaram a produção e saíram às ruas em Dakha e outras cidades. Os empresários em muitas fábricas fecharam suas portas, e os que não o fizeram receberam ataques com pedras e fogo em suas instalações. Milhares de trabalhadores, com profundo ódio, percorreram as ruas com paus e pedras, enfrentando a polícia e a crescente militarização dos complexos industriais. No 1º de maio, estenderam-se paralisações, piquetes e inclusive bloqueio de acessos aos portos e aeroportos, por onde saem as exportações da indústria têxtil, como índice da fúria dos trabalhadores condenados diariamente por suas condições de trabalho.

A selvageria capitalista continua a se degenerar no decorrer da crise econômica mundial. As experiências do último período devem auxiliar os trabalhadores, também de toda a Ásia, a elevar o questionamento dos aspectos mais repulsivos do regime democrático-burguês ao questionamento de toda a rede de relações de exploração que compõe o seu sistema. Há que incrementar até o mais alto grau o ódio que desperta nas massas o capitalismo, contra os capitalistas, contra o estado capitalista e seus órgãos. Há que ajudar a tornar odioso aos olhos dos trabalhadores não apenas os capitalistas, mas todos aqueles que defendem o capitalismo, que tentam camuflar sua podridão pestilencial, ou que tentam mitigar seus crimes (a ONG “Rede Roupa Limpa” se pronuncia para nos ilustrar da seguinte forma: “As empresas devem abordar a conflitiva lógica de buscar preços mais baratos e ao mesmo tempo pretender o cumprimento de mínimas condições trabalhistas”, defendendo as posições das multinacionais que pagam os menores salários do mundo; o Papa Bergoglio, por sua vez, não se refaz do “espanto” de encontrar pessoas que vivem com 38 euros ao mês, o mesmo homem que colaborou com a Ford, Arcor, Techint e outras empresas como cúmplice da ditadura militar argentina).

Este crime social, preparado pelas patronais do setor têxtil, constitui todo uma rede de relações que compõem o sistema produtivo capitalista, que tem como mote “operários morreram; os que ficam, voltem ao trabalho!”. Dos subterrâneos da classe trabalhadora, nos setores que o imperialismo trata de reduzir à mais infame escravidão, é que surgem, entretanto, novas energias de rebelião. As recorrentes mobilizações de massas contra a violência à mulher na Índia (com greves gerais de 100 milhões de trabalhadores contra a super-exploração, também das maquiladoras que como em Bangladesh empregam majoritariamente mulheres e crianças), as mobilizações operárias na Indonésia, os enfrentamentos de trabalhadores e camponeses chineses contra a burocracia do PCCh (que disputa com países como o México o investimento estrangeiro à procura da mão de obra mais barata), os ultra-precarizados trabalhadores da Coréia do Norte, submetidos à opressão do estado burocratizado e das multinacionais sul-coreanas; todo o conjunto dessas mobilizações que colocam à frente a radicalização dos setores mais selvagens de trabalhadores compõe a geopolítica de uma região que pode se transformar não só no ponto de convergência da relocalização estratégica dos Estados Unidos, mas também numa das principais regiões do protagonismo operário nas lutas que estouram no sexto ano da crise capitalista.

[1Amancio Ortega, dono da Zara e fundador da Inditex, é o homem mais rico do Estado Espanhol, tem a terceira maior riqueza do mundo, e expandiu sua fortuna em 22,2 bilhões de dólares em 2012

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