Terça 23 de Abril de 2024

Cultura

O grito sufocado de Sylvia Plath

04 Dec 2014   |   comentários

Em 1963 a escritora americana Sylvia Plath lançava seu primeiro e único romance, "A redoma de vidro", no qual, por meio de seu alter ego Esther Greenwood, conta sobre o doloroso processo de uma profunda depressão.

Uma redoma de vidro entre o sujeito e a vida. Que abafa, prende, sufoca, distorce, impede de tocar o mundo, o outro, a nós mesmos. Essa é a metáfora que Sylvia Plath (1932-1963), brilhante escritora estadunidense, elegeu para falar de sua angustiante experiência com a depressão.

Em seu único romance, A redoma de vidro (The Bell Jar, também encontrado em sua tradução portuguesa como A campânula de vidro), Plath mostra em angustiantes detalhes o sofrimento pelo qual passou ao se deparar com o súbito acometimento de uma profunda depressão, que a atinge de forma fulminante aos dezenove anos, após ter sido premiada com um promissor estágio em Nova Iorque em uma importante revista.

Cerca de dez anos após o episódio que a levou a uma internação em uma clínica psiquiátrica, Plath decide colocar sua história nas páginas d’A redoma de vidro. Alterando os nomes das personagens e publicando o livro sob o pseudônimo de Victoria Lucas, Sylvia disse em uma carta para sua mãe a respeito da obra: “O que fiz foi juntar eventos de minha própria vida, ficcionalizando para acrescentar cor – é um livro medíocre, na verdade, mas eu acredito que irá mostrar quão isolada se sente uma pessoa quando está sofrendo um colapso... eu tentei descrever meu mundo e as pessoas nele tal como vistas através da distorção das paredes de uma redoma de vidro”. E também descreveu a obra como “um trabalho autobiográfico de aprendiz que tive que escrever para poder me libertar do passado”. Dizer que seu romance é “medíocre” é uma distorção, provavelmente causada pela redoma que novamente caiu sobre Sylvia Plath, um fantasma cuja sombra persegue indefinidamente os que já viram o mundo lá de dentro. O livro é brilhante.

Além do sofrimento da redoma, ele mostra como uma jovem cheia de possibilidades amadurece diante de um mundo castrador, claustrofóbico. Passada no limiar da revolução sexual impulsionada pela segunda onda feminista dos anos 1960, a juventude de Sylvia (e seu alter ego Esther) foi comprimida entre a escolha da mulher independente e bem sucedida, com sua suposta promessa emcancipadora, e da dedicada esposa e mãe de família – uma verdadeira escolha entre a cruz e a espada. A questão da emancipação sexual e da relação com os homens é um ponto que cruza a narrativa do início ao fim, mostrando como o simples fato de ser mulher em tal sociedade pesa como um fardo sobre a cabeça da jovem Esther. Entre um promissor imbecil a quem chama de namorado, e episódios que vão de idealizações amorosas com semi-desconhecidos a uma tentativa de estupro, a vida amorosa de Esther é uma dolorosa ferida que pulsa, lembrando quão restritas ou infelizes podem ser suas opções, a despeito de sua inteligência e talento. Não à toa, a busca por se libertar da redoma que a sufoca anda passo a passo colada à busca pela emancipação de seu corpo, de sua sexualidade, da assombração da obrigação imposta para ser mãe, casar, ser uma “mulher respeitável” e ter uma vida sexual recatada. A perda da virgindade, a adesão aos métodos anticoncepcionais recém-descobertos são passos que, no relato de Esther, transcendem meras escolhas sexuais e se imiscuem com o renascimento de um sujeito capaz de decidir os rumos de sua vida.

O mesmo podemos dizer a respeito das escolhas profissionais que se desenham adiante, das amizades, das relações familiares. O tédio, a apatia que se abatem sobre Esther como uma novidade inesperada, na verdade trazem de forma latente, pronta a ser descamada pelo leitor atento, os conflitos de uma sociedade de aparências e mediocridades. Jantares elegantes, drinques, banquetes e fotografias em revistas desfilam pelas páginas lado a lado com o recrudescimento crescente do espírito de Esther, que se vê cada vez mais à parte de todo o entusiasmo que esperava encontrar em suas descobertas juvenis, em sua passagem para uma vida adulta. Quem sabe até que ponto a vida adulta que Esther sonhava não era uma fantasia dourada que se traduziu, no frigir dos ovos, na mediocridade de um mundo onde tudo é mercadoria?

O que há de mais espetacular em A redoma de vidro é sua forma de apresentar essa dor verdadeiramente indescritível que assola Esther, e que, no fim, acabou levando de nós Sylvia Plath, que concretizou finalmente seu suicídio poucas semanas após o lançamento do livro. Meio século após sua escrita, vivemos em um mundo tão diferente e tão parecido com o de Esther e Sylvia: a depressão é uma palavra que se usa a todo momento e de forma tão vulgar, quase como uma “explicação mágica” para as dores da vida, mas que parece tão pouco ou ainda menos compreendida do que na época de Plath. Vivemos hoje em um mundo que pretende curar todos sofrimentos com remédios supostamente milagrosos, cuja “magia” nos foi vendida através das caras propagandas financiadas pelas centenas de bilhões de dólares que movimenta a indústria farmacêutica todos os anos. No entanto, longe de serem vistos como “normais”, o sofrimento psíquico e suas patologias seguem sendo, paradoxalmente, tabus e estigmas. A dor é classificada como “frescura”, “falta do que fazer”, “coisa de rico”, entre mil explicações que nada explicam, mas que ajudam a matar um pouco a cada dia quem carrega essa ferida. Assim foi com Esther e sua mãe, que demonstra por tantas vezes a vergonha e o constrangimento de ter uma filha “louca”, e que no caso da mãe de carne e osso de Sylvia comprova o comportamento da personagem como factual ao ter tentado impedir a publicação de A redoma de vidro. É assustadoramente atual a advertência que faz a médica de Esther, a Dra. Nolan, acerca de como essa seria “recebida” no mundo devido ao seu sofrimento: “A Dra. Nolan havia me alertado, de maneira bem direta, que muitas pessoas me tratariam com certa distância ou me evitariam, como se eu fosse uma leprosa. O rosto de minha mãe voltou à minha mente, como uma lua pálida e recriminadora, em sua última visita à clínica, a primeira desde o meu aniversário de vinte anos. Uma filha no manicômio! Eu tinha sido capaz de fazer aquilo com ela.”

Assim, como se já não bastasse essa redoma que traz o peso de um universo estático, abafado, mudo, aos que carregam essa dor tão profunda quanto misteriosa, ainda se soma a isso o estigma da loucura. Mesmo entre aqueles que hoje lutam para mudar esse mundo, muitas vezes notamos a amarga marca do preconceito com aqueles que precisam, de fato, de apoio para enfrentar uma vida que já é tão dura – para os explorados do mundo – quando estamos bem psiquicamente. O suicídio de Sylvia Plath, quando a autora contava apenas trinta anos de vida, levou uma das grandes escritoras de nosso tempo. A obra que ela deixou em sua curta vida, no entanto, é uma herança que devemos resgatar. Uma voz que nos disse, com precisão e rara beleza, como é viver dentro da redoma. Que o mundo aprenda algo disso.

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