Quinta 18 de Abril de 2024

Cultura

RESENHA CRÍTICA

O capitalismo e suas grades

17 Oct 2014   |   comentários

Todo preso é um preso político. Essa ideia, que pode parecer estranha a princípio, é demonstrada de formas diferentes por dois ótimos filmes que estão em cartaz em pouquíssimas (não à toa) salas de cinema no país.

Todo preso é um preso político. Essa ideia, que pode parecer estranha a princípio, é demonstrada de formas diferentes por dois ótimos filmes que estão em cartaz em pouquíssimas (não à toa) salas de cinema no país.

Um deles é o documentário nacional “Sem Pena”, de Eugenio Puppo. Sob a forma de um mosaico, no qual cenas são apresentadas ao espectador com vozes sobrepostas que apenas ao final saberemos a quem pertencem, o filme conta um pouco como funciona o sistema penitenciário brasileiro, desde o judiciário até as cadeias e o pós-prisão.

Em um dos depoimentos, alguém diz que nas sociedades ditas “primitivas” não há cadeia ou detenções, e que os crimes são resolvidos coletivamente, pois se considera que “não há crimes individuais, apenas crimes sociais.” Os melhores depoimentos do filme desenvolvem justamente essa ideia. Um relato de uma conversa entre um presidiário e estudantes de uma faculdade toca nessa ferida, de que os crimes são criados pela desigualdade, quando o preso afirma que roubaria o carro da menina porque ela tem e ele não, e que se ele roubar ela ganhará outro do pai. Conforme esse diálogo é relatado pelo depoimento que ouvimos, as cenas mostram como o próprio sistema judiciário reproduz essa lógica: os cenários das cadeias, caindo aos pedaços, superlotadas, com centenas de presidiários em condições sub-humanas, são contrastadas com tomadas em que se mostram suntuosos tribunais, luxuosos edifícios como o da Faculdade de Direito da USP, com uma Ferrari partindo de sua frente enquanto moradores de rua fazem comentários. São os dois lados do sistema judicial.

É nesses momentos que “Sem Pena” foca o centro da questão, o elemento que faz com que toda prisão seja efetivamente uma prisão política: em uma sociedade fundada na desigualdade, onde alguns possuem muito, e muitos não possuem nada, frequentemente o roubo chega a ser uma necessidade. A manutenção de um sistema carcerário repressivo e injusto é um pilar de sustentação desse estado de coisas. E o filme demonstra como são justamente os que roubam por necessidade os que amargam longos anos nas cadeias, quase sempre sem sequer um julgamento – que dirá um julgamento justo.

Nas falas de um juiz e de uma desembargadora aparece o caráter de classe dessa justiça feita pelos ricos e para os ricos: uma senhora negra, idosa, catadora de materiais recicláveis é acusada de tráfico. O juiz, ainda que a absolva, defende não apenas sua detenção arbitrária como justa, mas também faz diversas insinuações sobre como pessoas “desse tipo” são usadas pelo tráfico. Ainda pior são os comentários da desembargadora, que retrata o discurso “linha dura” de que as penas no Brasil são muito brandas, quando temos a terceira maior população carcerária do mundo e a que cresce em maior velocidade.

O filme demonstra como o encarceramento é bastante caro ao Estado e de forma alguma serve para ajudar os presos a se reinserir profissionalmente. Contudo, fica no ar a pergunta: se é tão ineficaz, porque persiste? Talvez a principal lacuna de “Sem Pena” seja que, apresentando diferentes pontos de vista sobre o problema, ele se abstém de tentar apontar diagnósticos mais profundos. Algumas falas apontam o problema de forma equivocada, levando a supor soluções utópicas: esse é o caso quando, no início do filme, se fala sobre a falta de uma polícia preventiva no Brasil, afirmando que não se pode encarar a polícia meramente como “o braço armado do Estado com a função de reprimir”. Mas ao analisarmos o papel de um Estado em uma sociedade dividida em classes, constataremos que a instituição policial surge exatamente com o papel de manter a desigualdade e a exploração.

Esse ponto é pouco desenvolvido no filme, que mostra de forma dolorosa o problema e seus sintomas, mas que deixa ao espectador a tarefa de procurar suas causas. Em alguns momentos, passa a impressão de que seria uma questão de um sistema ineficaz e burocrático; mas, em seus pontos altos, o filme transparece uma mensagem clara: a existência de multidões encarceradas no Brasil tem sua raiz em uma sociedade fundada na desigualdade.

Provavelmente a maior ausência do filme – o apontamento de quão racista é o sistema penitenciário – aparece no centro do segundo filme, o documentário “Libertem Angela Davis”, de Shola Lynch. Retratando o ativismo político de Angela Davis no movimento negro e no Partido Comunista dos EUA na década de 1970, o filme fala sobre a detenção e o julgamento dessa militante que gerou um amplo movimento de solidariedade internacional no mundo inteiro. A prisão de Davis era um ataque direcionado pelo Estado americano contra uma mulher que simbolizava naquele momento a resistência do povo negro contra uma sociedade racista, em um momento em que se levantavam com força os Panteras Negras, organização que reuniu dezenas de milhares de negros no país com uma perspectiva revolucionária de luta contra a segregação social que ainda hoje persiste tanto nos EUA como no Brasil.

Não poderíamos dizer que é uma coincidência o fato de que Angela Davis ganhou grande notoriedade ao defender três jovens negros encarcerados, no caso que ficou conhecido como “os irmãos Soledad”, em que se armou uma farsa judicial para incriminar estes detentos pela morte de um guarda penitenciário. Seus crimes, como os de dezenas de milhares de encarcerados pelo sistema penitenciário brasileiro, eram pequenos delitos contra a propriedade privada: o roubo de uma televisão, de setenta dólares; enfim, delitos aos quais foram levados por uma sociedade que reservou aos negros a maior fatia de miséria e exploração.

Por ter se tornado um símbolo da resistência negra, uma nova farsa jurídica foi montada contra Angela Davis, em que um atentado contra um juiz que termina em um tiroteio e mortes (um ato que seria em defesa dos “irmãos Soledad”) leva à acusação de que seria um plano armado por Davis. Aqui no Brasil vemos hoje exemplos desse tipo, como o caso de Rafael Braga, que, por ser pobre e negro, é até hoje mantido encarcerado no Rio de Janeiro pelo crime de participar de manifestações de rua portanto um frasco de Pinho Sol.

A demonstração em “Libertem Angela Davis” do uso político explícito do sistema carcerário contra a organização política de um setor explorado e oprimido no capitalismo é complementar ao massivo encarceramento da pobreza denunciado em “Sem Pena”. São dois filmes que ensinam muito sobre o capitalismo e suas grades.

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