Quinta 18 de Abril de 2024

O Trotskismo

07 Sep 2005 | Aula proferida em 1946 no curso de "Doutrinas Políticas da Universidade Popular Presidente Roosevelt". Fonte: Retirado do livro "O Caldeirão das Bruxas e outros escritos políticos" Hermínio Sacchetta Pág. 83-103. Disponível em: Marxist Internet Archive.   |   comentários

Cidadãos, companheiros:

Cabe-me a honra de ocupar hoje a atenção deste auditório no Curso de Doutrinas Políticas organizado pelo incansável pugilo de moços que vêm, à frente da Universidade Popular Presidente Roosevelt, e dentro das possibilidades que a iniciativa particular permite, contribuindo para a elevação do nível de cultura de nosso povo.

O bem dizer não caberia à minha tendência ocupar a atenção dos presentes não fora de classificarmos sob a epígrafe de trotskismo o conjunto de idéias de Marx, Engels e Lênin defendidas sem quartel por Leon Trotsky.

Se, por vezes, ver-me-ei compelido a fazer referências a nomes da história de nossos dias, transcendendo, deste modo, a norma até aqui observada quase que sem discrepância, pelos nobres conferencistas que me precederam, tal fato deve ser atribuído mais à natureza da palestra que a qualquer intenção de fazer do tema motivos para obra de proselitismo político ou invectivas contra pessoas. Na verdade, em sua essência, tudo quando direi girará em torno de dois pólos: Trotsky e Stalin, ambos figuras agora incorporadas a história contemporânea. Não obstante, limitar-me-ei à exposição de idéias mais do que de fatos, seja pelo desejo de não acirrar paixões partidárias, seja, sobretudo, para me enquadrar no espírito deste Curso. Nem mesmo os fantasmagóricos processos de Moscou, cuja só lembrança serve de teste à capacidade de controle de nervos de um trotskista, serão submetidos a exame.

Quero, pois, de início, acentuar que o trotskismo não constitui uma doutrina política. Nem mesmo a teoria da Revolução Permanente, que ganhou seus contornos definitivos graças à enorme contribuição que lhe proporcionou o criador do Exercito Vermelho, pode lhe ser atribuída como uma concepção inteiramente original.

De fato, foi em torno dessa teoria que se travaram quase todos os choques ideológicos no plano do movimento comunista, sobretudo de 1923 a esta parte. Todavia, bem antes de Leon Trotsky apresentar suas idéias a respeito da revolução ininterrupta, os dois gigantescos fundadores do socialismo cientifico - Marx e Engels - já a haviam esboçado em livros e manifestos sobre as revoluções da primeira metade do século XIX.

1848 marca a linha divisória entre duas fases distintas do desenvolvimento do capitalismo. Antes desse tumultuoso ano as revoluções que se verificaram na Europa eram inteiramente burguesas. A revolução francesa de 48 trouxe, pela primeira vez, alguma coisa de absolutamente nova na historia: o aparecimento na sociedade do proletariado como força política independente. O Manifesto Comunista, documento básico da bibliografia marxista, surge, e não sem motivo, contemporaneamente a esses acontecimentos.

Com o objetivo de determinar não apenas as leis gerais da revolução, mas também o itinerário possível da revolução que se aproximava, Marx estudou apuradamente o ritmo da Revolução Francesa de 1789. Observou assim que na Grande Revolução a burguesia havia assumido a direção dos artesãos, dos comerciantes oprimidos e dos servos camponeses. Notou, contudo, o genial fundador do socialismo científico que, para que a revolução adquirisse impulso e para que os elementos pequeno-burgueses de esquerda - os jacobinos - dominassem e conduzissem os movimentos para frente, três anos tumultuosos haviam se tornado necessário. Após esses três anos uma seção dos jacobinos, os montanheses, a ala esquerda dos democratas, logrou a tomar a direção do sans-culotte semiproletários e levá-los à destruição do feudalismo. Estava, assim, franqueado o caminho para o capitalismo. Essas forças democráticas urbanas, que haviam ultrapassado as corporações, trazem em si o embrião das duas futuras classes: burguesia e o proletariado, ou melhor, capitalistas e proletários. Esta a razão porque coube à burguesia, que se apoiava no conjunto das forças nacionais, colocar-se à frente da nação unida. A tendência hebertista, que representava o extremismo daqueles tempos, não logrou êxito nos seus objetivos: as forças de produção sob as quais seus ideais comunistas podiam apoiar-se ainda estavam por desenvolver-se. A revolução francesa resultou, assim, na ditadura da burguesia apoiada pelos artesãos e camponeses.

Para Marx e Engels, a classe imediata a chegar ao poder deveria ser a pequena burguesia. Para atingirem esta conclusão, os dois fundadores do socialismo se baseavam no exame das forças sociais em ação na grande Revolução Francesa e, posteriormente, nos acontecimentos de 1848 em Paris.

Que posição deveria assumir o proletariado em relação a essa pequena burguesia que trazia a incumbência histórica de uma nova revolução? Marx dividiu a questão em três períodos: aquele em que as classes médias mais baixas ainda são postas de lado; a sua revolucionária pelo poder; o movimento em que assumem o poder. Como veremos, para Marx não havia dúvida que essa seria uma fase necessária na revolução.

Marx havia observado, do exame das revoluções anteriores, que estas pareciam elevar ao poder, cada um por sua vez, para então esgotá-lo, vários setores das classes oprimidas. Esta a razão que o levou a estudar a estrutura de classe da sociedade e a analisar o conteúdo político de cada classe em particular. Assim, notou Marx a diferença existente entre a França e a Alemanha. A revolução de 1830 corrigira a reação de 1815 na França; ainda uma vez a grande burguesia desalojara do poder a aristocracia fundiária. Na França, já agora a cena política era tomada pela pequena burguesia e pelo proletariado, pois este ultimo se tornara uma força real na sociedade, com o crescimento do capitalismo. Na Alemanha o desenvolvimento social e político da grande burguesia estavam muito atrás do grau alcançado tanto França como pela Inglaterra. Naquele país deveriam ser as camadas superiores da burguesia que chegariam ao poder em primeiro lugar. Contudo, quando esse setor de classe capitalista chegou ao poder, não póde sustentar as suas posições contra os elementos feudais vencidos, sem a ajuda dos partidos populares mais avançados. Mas a burguesia liberal temia igualmente o impulso revolucionário das camadas populares. Para limitar essa torrente ameaçadora a burguesia liberal só poderia contar com a nobreza feudal que ela mesma desejava pór abaixo. A esse respeito, escreve Engels:

O ministério da burguesia liberal só dispunha de uma paragem, de onde, segundo o rumo que as circunstâncias tomassem, o país se dirigiria ou para a etapa mais avançada do republicanismo unitário, ou para o velho regime burocrático e clérico-feudal.

Estas as razões que levaram Marx e Engels à conclusão de que cabia agora à pequena burguesia ocupar o primeiro plano na História. Não obstante, todas as suas limitações, hesitações e covardia política eram previstas. Afirma Marx:

A pequena burguesia democrática, que está longe de querer revolucionar toda a sociedade para o proletariado, luta por uma mudança nas condições sociais mediante a qual a sociedade presente se torne tão suportável e confortável quanto possível para ela .

No primeiro Manifesto do Comitê Central da Liga Comunista, sob a direção de Marx e Engels, é denunciado o papel traidor da grande burguesia, mas igualmente se adverte que a pequena burguesia agirá da mesma maneira quando lograr atingir o poder. Para intimidar a grande burguesia e levá-la a fazer concessões o partido democrático pequeno-burguês se denominava "socialista" e "vermelho". Com isto a pequena burguesia procurava conquistar o apoio das massas trabalhadoras tentando subornar os operários com uma pequena melhora. Uma vez no poder, advertiam os fundadores do marxismo, a pequena burguesia repetiria o comportamento dos grandes capitalistas.

Compreende-se que, nos conflitos sangrentos que se aproximavam, como em todos os anteriores, serão principalmente os operários os fatores da vitória, pela sua coragem, decisão e auto-sacrificio... e assim que a vitória for decidida, eles (a pequena burguesia) procurarão fazê-la sua, procurarão apaziguar os trabalhadores intimando-os a voltar ao trabalho a fim de evitar pretensos excessos; e, então, farão por arrancar dos operários os frutos de seu triunfo. Não está nas possibilidades dos trabalhadores evitar este comportamento da pequena burguesia; mas podem dificultar, por todos os meios, que utilizem o seu poder contra o proletariado armado, ditando-lhe tais condições que o domínio dos democratas burgueses levará de antemão, dentro de si, os germens de sua própria destruição. Assim, mais tarde, a derrota destes por parte do proletariado, será consideravelmente mais fácil.

São estas ainda, palavras de Marx e Engels.

Que atitude política deveria assumir os operários sob o domínio das classes médias mais baixas? Ouçamos o que recomendava a Liga Comunista:

Embora a pequena burguesia democrática deseje liquidar a revolução tão depressa quanto possível... é do nosso interesse e é nossa tarefa tornar a revolução permanente até que as classes possuidoras estejam mais ou menos desposajadas, o poder governamental nas mãos do proletariado, e a associação dos operários realizada não apenas em um país, mas em todo os países do mundo... para nós, a questão não pode ser uma simples mudança de forma da propriedade privada, mas a sua destruição como instituição; não o apaziguamento do antagonismo de classe, mas a abolição de todas as classes, não o melhoramento da sociedade atual, mas a fundação de uma nova sociedade.

A fim de impelir para frente à revolução com esses objetivos, o proletariado deveria criar, no período imediato, a dualidade de poderes com o governo "legal".

Deve simultaneamente erigir o seu governo operário revolucionário, sólido em face do novo governo oficial se tiver à forma de comitês executivos, de conselhos de comunidade, de clubes operários ou comitês operários, de maneira tal que o poder democrático burguês não apenas perderá sua atuação direta sobre os trabalhadores, mas ainda se verá sob a fiscalização e sob a ameaça de uma autoridade que terás atrás de si as massas oprimidas. Numa palavra; desde o primeiro momento da vitória, a desconfiança dos operários já não deve ser dirigida contra o partido reacionário derrotado, mas contra os seus aliados recentes, os democratas pequeno-burgueses, que desejam explorar o triunfo comum apenas em seu beneficio.

Esse famoso manifesto aos operários acentua a natureza internacional da revolução:

Mesmo que os trabalhadores alemães não possam atingir o poder e consolidar os seus interesses de classe, terão a certeza, então, que o primeiro ato do drama revolucionário próximo ocorrera simultaneamente com a vitória direta de sua própria classe na França e deverão estar vigilantes para isso. Mas deverão realizar por si mesmos a maior parte de sua vitória final, através de esclarecimentos quanto aos seus próprios interesses, imprimindo impulso ao seu partido independente tão cedo quanto possível, e não permitindo que esta organização independente do proletariado vá ao arrastão das frases hipócritas lançadas pela pequena burguesia democrática. Seu grito de guerra deve invariavelmente ser A REVOLUÇÃO PERMANENTE.

Essa análise de Marx e Engels resultou perfeitamente justa de um modo geral, muito embora os dois fundadores do socialismo cientifico reconhece que tinha sido muito otimista quando aos acontecimentos de 1848. Ambos haviam admitido a ascensão ao poder das classes médias mais baixas apoiadas pelos camponeses oprimidos. A maioria desses camponeses constituía-se de pequenos proprietários, arrendatários e jornaleiros agrícolas. Embora vivessem muito isolados para desenvolver uma ação independente poderiam ser, contudo, o esteio da pequena burguesia urbana. Marx denominou o governo que daí resultasse a "ditadura democrática da pequena burguesia apoiada pelos camponeses". Os acontecimentos todavia não confirmaram, como já vimos, esses prognósticos. Encerrada a revolução, Marx se pós a reexaminar cuidadosamente sua análise, concluindo que a pequena burguesia não podia estabelecer um regime próprio. Uma vez no poder a burguesia, a revolução seguinte só poderia ser do proletariado. Mas o proletariado, a seu turno, só alcançaria êxito se arrastasse atrás de si as massas oprimidas de toda a nação, inclusive os camponeses. A este respeito, Marx escreveu a Engels em 1856:

Na Alemanha, a questão toda reside nas possibilidades de se apoiar à revolução proletária com uma espécie de segunda edição da guerra dos camponeses.

Esta segunda revolução deveria desembocar na ditadura democrática do proletariado apoiado pelos camponeses.

A teoria da revolução permanente deriva, como vimos, da analise das revoluções de 1848 feita por Marx. O exame dos acontecimentos revolucionários de 1905 na Rússia fez com que Trotsky estudasse e aprofundasse os ensinamentos deixados por Marx e Engels sobre a Revolução Permanente que já havia esboçado antes da primeira Revolução Russa. A Alemanha apresentava certos pontos de semelhança e certas dessemelhanças importantes com o Império czarista. Marx fora, primitivamente, como vimos, de opinião que a pequena burguesia poderia criar um regime próprio antes da tomada do poder pelo proletariado. Na Rússia os camponeses tinham um partido que representava seus interesses: os socialistas revolucionários. Lenin estabelecera o fato de que o proletariado poderia conquistar logo o poder na Rússia. O problema, pois, seria de se saber quais as relações a serem estabelecidas entre a classe operaria e os camponeses. O chefe do partido bolchevique não excluía a possibilidade de ser o novo regime primeiro uma coligação dos dois partidos, o do proletariado e o dos camponeses. Esta convicção de Lenin repousava no fato de que o campesinato constituía a maioria absoluta da população russa. Daí a razão por que adotou a fórmula de Marx ditadura democrática do proletariado e dos camponeses. Trotsky, por sua vez, baseando-se nas apreciações dos fatos revolucionários de 48 feitas por Marx e Engels apresentava sua formula de ditadura do proletariado apoiada nos camponeses. A polemica que então se travou entre esses dois titãs do movimento operário girou toda ela sobre a possibilidade de independência e sobre o grau dessa independência do campesinato durante a revolução e em particular sobre a possibilidade de um partido camponês independente. A diferença entre o ponto de vista "permanente" de Trotsky e o de Lenin consistia na oposição entre a palavra de ordem da ditadura do proletariado apoiado pelos camponeses e ditadura democrática do proletariado e dos camponeses. Não discutiram os dois chefes principais da revolução de outubro, como se vem afirmando desde a morte de Lenin - sobre a possibilidade de saltar por cima da etapa democrático-burguesa, ou sobre a necessidade de união dos operários e dos camponeses"; a discussão girou em torno do mecanismo político da colaboração do proletariado e dos camponeses na revolução democrática da preparação em que as duas classes participam do governo Revolucionário, em torno do programa dessa colaboração, das formas dos partidos e seus métodos políticos. Na medida em que deixava suspensa a questão do mecanismo político da união dos operários e camponeses afirma Trotsky - a fórmula da ditadura democrática continuava a ser uma formula algébrica que permitia a previsão de futuras interpretações políticas muito diversas.

A pretensa oposição entre revolução permanente e a orientação leninista para a "união com o camponês", surgiu em 1923, isto é, após a morte de Lenin, ao iniciar-se a reação política e social dentro do partido comunista russo. Essa oposição patenteava a repulsa orgânica do funcionário e do proprietário pela revolução internacional, com as suas comoções permanentes, assim como o desejo de ordem e de tranqüilidade da burocracia estatal e dos remanescentes das forças capitalistas internas. A campanha contra a revolução permanente serviu, apenas, para abrir caminho à teoria do socialismo num só país, isto é, do socialismo nacional. Para que possamos melhor compreender os acontecimentos que sobreviverão não afastemos da mente o atraso sofrido pela revolução nos países da Europa ocidental, a grande retirada da NEP sobre os cujos perigos Lenin advertia o Partido, isto é, a adoção em 1921 de medidas económicas que permitiam certa coexistência entre os elementos capitalistas e elementos socialistas no plano da produção.

Ouçamos como Lenin se refere à teoria da revolução permanente de Trotsky:

Antes da revolução de 1905, Trotsky formulou uma teoria original e particularmente significativa hoje, a teoria da revolução permanente, segundo a qual a revolução burguesa de 1905 se transformaria diretamente numa revolução socialista que seria a primeira na série das revoluções nacionais. (Lenin, Obras Completas, vol.XIV).

Isto foi escrito por Lenin após fevereiro de 1917 quando a dinâmica da revolução já havia lançado ao campo da burguesia os mencheviques e os socialistas revolucionários que prestigiaram o governo provisório burguês que se recusa a atender às reivindicações dos camponeses. Lenin já então havia abandonado sua primitiva fórmula de ditadura democrática dos operários e camponeses para adotar a de ditadura do proletariado apoiada pelos camponeses, propostas por Trotsky após a revolução de 1905. Na sua capacidade genial de apreender o rumo dos acontecimentos, o líder bolchevique, em abril de 1917, julgou indispensável combater aqueles que ainda se aferravam a sua velha fórmula. Em suas famosas "teses" travando luta com a ala do partido bolchevique, na qual figuravam entre outros Stalin, Kamenev e Zinoviev, Lenin escreveu:

Todo aquele que atualmente fala de ditadura democrático-revolucionária do proletariado e do campesinato, está na rabeira do momento e, portanto, na prática, ao lado da pequena burguesia e contra a luta de classe do proletariado; um indivíduo assim pode ser colocado no arquivo dos "bolcheviques" (a que se deve dar o nome de arquivo dos "velhos bolcheviques").

Mais do que apenas significativa, a referência de Lenin à teoria da Revolução permanente do criador do Exercito Vermelho e à posição assumida pelo titânico chefe da revolução bolchevique após abril de 1917 bastaria para pulverizar todas as falsas acusações levantadas contra Trotsky sobre seu pretenso desprezo ao campesinato como força revolucionária. Permitam-me que eu cite uma passagem do livro 1905 de Leon Trotsky a respeito dessa segunda questão:

É mais do que evidente que o proletariado cumpre sua missão apoiando-se como o fez outrora a burguesia no campesinato e na pequena burguesia. O proletariado dirige o campo, incorporando-o ao movimento, interessado no movimento no êxito de seus planos, mas é sempre ele o chefe. Não é a ’ditadura do proletariado e dos camponeses’ é sim a ditadura do proletariado apoiada nos camponeses.

E noutra passagem - esta referente ao caráter da revolução russa que, segundo Stalin, Trotsky não compreendera:

Nossa revolução é burguesa quanto às tarefas imediatas que lhe deram origem, mas, em virtude da extrema diferenciação de classe da população industrial, não possuímos uma classe burguesa capaz de se por à frente das massas populares e unir a sua força social à sua energia revolucionária. As massas operárias e camponesas, oprimidas e abandonadas à sua própria sorte, são obrigadas a forjar os elementos preliminares, políticos e de organização necessários a sua vitória, na dura escola dos conflitos implacáveis e das derrotas cruéis. Não lhes resta outro caminho.

Para justificar a sua teoria do socialismo num só país, que começara a elaborar em 1924, sob a pressão das camadas pequeno-burguesas da cidade e do campo dos Kulak (camponeses ricos) e dos elementos conservadores da burocracia governamental que se reforçaram sensivelmente na base da NEP, Stalin acusava trotskismo de "desconfiança" nas forças internas da revolução, baseando-se na seguinte afirmação de Trotsky:

E se isso (a extensão da revolução a outros países) não se produzir, não haverá nenhuma esperança (como o provam a experiência da historia e as condições teóricas) de que uma Rússia revolucionária possa resistir a uma Europa conservadora ou de que uma Alemanha socialista possa substituir isolada no mundo capitalista. (Trotsky, 1917)

Stalin declarava que afirmativas dessa ordem feitas por Trotsky "nada tinham de comum com o leninismo". Ouçamos, pois, o próprio Lenin.

Em 7 de março de 1918, afirmava o grande continuador de Marx, a propósito da paz de Brest-Litovsk:

É uma lição, pois não cabe nenhuma dúvida de que sem a revolução alemã perecemos. (Lenin, Obras Completas, vol. XV).

E dias depois:

O imperialismo universal e a marcha triunfal da revolução social não podem coexistir. (Lenin, Obras Completas, vol. XV)

Algumas semanas mais tarde:

O fato de sermos retardardatários nos impeliu para a frente mas perecemos se não soubéssemos resistir até ao momento em que encontrarmos o apoio dos operários insurretos dos outros países. (Lenin, Idem).

Um ano após ainda insiste, depois de passada a crise de Brest-Litovsk:

Vivemos não em um Estado, mas num sistema de Estados. Não se pode conceber que uma república soviética exista durante largo período de tempo ao lado de Estados imperialistas. No final das contas, aquele ou estes vencerá. (Lenin, Obras Completas, vol. XVI).

Em abril de 1920 mais de uma vez adverte:

O capitalismo considerado em seu conjunto mundial, continua sendo mais forte que o poder dos soviets, não apenas militarmente mas também no plano económico. É preciso partir desta consideração fundamental e não esquecê-la jamais. (Lenin, Obras Completas, vol. XVII).

Permita-me a assistência que eu recorra ainda a mais algumas citações do fundador do primeiro estado soviético, pois delas ressaltará com toda evidencia o sentido internacionalista que Lenin dava à revolução russa em contraposição as concepções de socialismo nacional que lhe foi imprimida por aqueles que assumiram o poder após a morte do primeiro presidente do Conselho dos Comissários do Povo.

Em 27 de novembro de 1920, afirmava Lenin a propósito do problema das concessões:

Passamos agora da guerra à paz, porém não nos esqueçamos de que a guerra voltará novamente. Enquanto subsistirem o capitalismo e o socialismo, não poderemos viver tranqüilamente; no final das contas, um ou outro vencerá. Cantar-se-á o réquiem, seja da república dos soviets, seja do capitalismo mundial. A situação presente é apenas de adiamento de guerra. (Lenin, Obras Completas, vol. XVII).

O sentido dessas palavras, tanto quanto naquele tempo, se ajusta as condições do presente. Mas prossigamos em nossas citações. No III Congresso da extinta Internacional Comunista, já em julho de 21, insistia ainda o chefe da revolução de outubro:

Foi criado um equilíbrio sumamente frágil, sumamente instável; um equilíbrio tal que a república socialista pode existir posto que não por muito tempo certamente, rodeada de países capitalistas. ("Teses sobre a tática do Partido Comunista Russo").

Nesse mesmo congresso, Lenin afirmava também:

Tornava-se evidente para nós que sem o auxilio da revolução mundial era impossível o triunfo de nossa revolução proletária. Tanto antes como depois da revolução, pensávamos: imediatamente, ou, pelo menos, em muito pouco tempo, produzir-se-á uma revolução nos paises retardatários ou nos que estão mais desenvolvidos do ponto de vista capitalista; em caso contrário, teremos que perecer. Embora tivéssemos consciência disso, fizemos sempre o possível para conservar a todo custo o sistema soviético, pois sabemos que trabalhamos não unicamente para nós mesmos, para a revolução internacional. (Obras Completas, vol.XVIII).

Perguntamos nós agora: onde há diferença de conteúdo entre essas afirmativas de Lênin e as feitas por Trotsky em 1915, de que a Rússia revolucionária ou a Alemanha socialista não poderia substituir isolada no mundo capitalista?

É que para ambos esses chefes imortais do proletariado o marxismo procedia de economia mundial, considerada não como simples adição de suas unidades nacionais, mas uma poderosa realidade independente, criada pela divisão internacional do trabalho e pelo mercado mundial que, em nossa época, domina do alto os mercados nacionais. Para todo marxista é questão pacífica o fato de que as forças produtivas da sociedade capitalista já ultrapassaram, há muito tempo, as fronteiras nacionais. As duas guerras imperialistas sofridas por nossa geração não foram senão eloqüentes manifestações desse fato. A sociedade socialista deve representar, do ponto de vista da produção e da técnica, um estágio mais elevado que o capitalismo: pretender construir a sociedade socialista num só país significa que, a despeito de triunfos, fazemos as forças produtivas recuarem em relação ao capitalismo. É uma utopia reacionária - afirma Trotsky - querer criar um quadro nacional um sistema harmonioso e suficiente, composto de todos os ramos económicos, sem ter em conta as condições geográficas, históricas e culturais do país que faz parte da unidade mundial. Os traços específicos da economia nacional por mais importantes que sejam, constituem, em escala crescente, os elementos de uma unidade mais alta que se chama a economia mundial e que serve afinal de contas de base ao internacionalismo dos partidos comunistas revolucionários.

Em nossa época, que é a do imperialismo, isto é, da economia e da política mundiais dirigidas pelo capital financeiro, não há um só partido marxista que possa estabelecer seu programa tomado só ou principalmente como ponto de partida as condições ou tendências da evolução de determinado país.

No dia 4 de agosto de 1914, os sinos dobraram a finados pelos programas nacionais. Na época atual só se deve e se pode deduzir o sentido em que se dirige o proletariado do ponto de vista nacional, da direção seguida no domínio internacional e não o contrário. Aqui reside a diferença fundamental que separa no ponto de partida, o internacionalismo comunista das diversas variedades do socialismo nacional.

Stalin declarou na VII Reunião Plenária, do Executivo da extinta Internacional Comunista:"A questão da organização da economia socialista em um só país já foi colocada no Partido, pela primeira vez, por Lênin, em 1915". Dessa forma admite que a questão do socialismo num só país não havia sido formulada antes de 1915. o que declarou porém Lênin "pela primeira vez" em 1915, contradizendo o que Marx e Engels haviam dito e o que ele mesmo vinha afirmando até esse ano? Em 15, Lênin escreveu:

A desigualdade da evolução económico-politica é uma lei absoluta do capitalismo. Disso resulta que o triunfo do socialismo é possível primeiro em alguns países pouco numerosos, e inclusive num só país considerado isoladamente. O proletariado triunfante em um país, depois de haver expropriado os capitalistas e, organizado a produção socialista, se levantará contra o resto do mundo burguês, atrairá a si as classes oprimidas dos outros países, sublevando-as contra os opressores e mesmo intervindo, em caso de necessidade, pela força militar contra as classes exploradoras e seus estados. (Lênin, Obras Completas, vol. XIII, artigo "Social-democrata", 23 de agosto de 1915).

Ressaltada em toda a sua limpidez a significação dessas palavras de Lênin: o triunfo do socialismo, no sentido do estabelecimento da ditadura do proletariado, é possível em primeiro lugar em um só país, que se encontrará assim em oposição ao mundo capitalista. O Estado proletário - para repelir os assaltos do inimigo e passar à ofensiva revolucionária, deverá previamente organizar a produção socialista, isto é, dirigir ele mesmo o trabalho nas fábricas arrebatadas aos exploradores. Lênin entendia, pois, por triunfo do socialismo num só país, não, como o fazem hoje os discípulos de Stalin, uma sociedade socialista que tivesse por finalidade sua própria existência, - sobretudo em um país atrasado - mas algo muito mais dinâmico, algo de muito maior amplitude, isto é, um Estado em mãos do proletariado para servir de alvião na obra de derrocamento do mundo capitalista.

Lênin não fez mais do que ampliar e concretizar a maneira como Marx colocou a questão e a solução que lhe deu. Já em passagem anterior vimos como fundador do socialismo cientifico denunciava o caráter internacionalista da revolução alemã de 48. Permitimo-nos ainda citação de Karl Marx, desta vez sobre a revolução de julho na França em 1848:

Da mesma forma como acreditavam poder emancipar-se ao lado da burguesia, os trabalhadores acreditavam, igualmente, que lhes seria possível levar a cabo uma revolução proletária dentro das fronteiras nacionais da França, continuando as demais nações sob regime burguês. Porém as relações francesas de produção, estão condicionadas pelo comercio exterior da França, por sua posição no mercado mundial e pelas leis que regem esse mercado; como a França romper essas leis sem uma guerra revolucionaria européia, que repercutisse sobre o tirano do mercado mundial, sobre a Inglaterra? (K. Marx, As lutas de classes na França.)

Observaremos preliminarmente que Marx submetia a exame acontecimentos revolucionários da primeira metade do século XIX. Não está claro, entretanto, que o criador do socialismo cientifico, bem antes da época do capital financeiro, ou melhor, de uma unidade mais orgânica das relações de produção mundial, via já com pleno sentido internacionalista a natureza de qualquer revolução nacional daquele século?

Mais ainda do que nos tempos pré-imperialistas de Marx, nos tempos presentes "do imperialismo, este une com muito mais rapidez e profundidade em um só, os diversos grupos nacionais e continentais; cria entre eles uma dependência vital das mais íntimas, aproxima seus métodos económicos, suas formas sociais e seus níveis de evolução. Ao mesmo tempo persegue esse fim que é seu, por processos tão antagónicos, dando tais saltos, as efetuando tais razzias nos países e regiões atrasados que ele mesmo perturba a unificação e a economia mundial com violências e convulsões que as épocas precedentes não conheceram. Só esta concepção dialética e não abstrata e mecânica da lei da evolução desigual, permite evitar erro. Já durante a época pré-imperialista, Marx e Engels haviam chegado à conclusão de que, de uma parte, a irregularidade, isto é, os abalos da evolução histórica estenderão a revolução proletária a toda uma época, durante a qual as nações entrarão umas após outras na torrente" revolucionária; porém, de outra parte, a interdependência orgânica dos diversos países, que se desenvolveu até o ponto de converter-se em divisão internacional do trabalho, exclui a possibilidade de estabelecer-se o regime socialista em um só país; por seguinte, com mais razão agora, no curso da nova época, quando o imperialismo estendeu e aprofundou essas duas tendências antagónicas, a doutrina de Marx, que ensina que só se pode começar, mas em caso algum acabar a revolução socialista nos limites de uma nação, é duas e três vezes mais verdadeira ainda". É assim como Trotsky, tanto quanto Lenin, estendia o caráter das revoluções em nossos tempos.

Já vimos quais os fatores que engendraram, ou melhor, que deram configuração completa à teoria do socialismo num só país, de Stalin, a qual contrariamente a da revolução permanente que procede de Marx, encontra seu precursor em George Vollmar, socialista reformista alemão dos fins do século XIX. Plasmada entre 1924 e 1927, a teoria do socialismo num só país profanava em primeiro lugar do retardamento da revolução mundial, em conseqüência de uma serie de derrotas sofridas pelo proletariado, seja pela inexistência de partidos comunistas, seja pela imaturidade dos que surgiram, seja pelos primeiros graves erros da direção staliniana da Internacional Comunista. O esmagamento da insurreição búlgara de 23, a derrota de proletariado alemão no mesmo ano, esta decorrente de desvios oportunistas de direita, o esmagamento da insurreição estoniana de 24, a liquidação vergonhosa da greve geral inglesa em 26, o monstruoso desastre da revolução chinesa em 27, todas essas catástrofes ligadas à estabilização do capitalismo neste período proporcionaram certa base aos que dirigem a Rússia para apresentarem sua teoria do socialismo num só país. A todos esses fatores indicados deve-se acrescentar mais um e não de menor importância: a fadiga do heróico proletariado soviético após tantos anos de esforço e de guerra civil.

Não é permitido reduzir a uma simples querela entre dois indivíduos a questão da revolução permanente ou do socialismo num só país. É um problema que transcende os homens para encontrar suas origens nas forças vivas da dialética da luta de classes. Nem se deve reduzir a um caso de derrota pessoal - como fazem certos pequeno-burgueses - o fato de Leon Trotsky e a então Oposição de Esquerda ter sido banida do cenário político soviético e mais tarde quase toda ela aniquilada fisicamente.

O achincalhe da revolução permanente, isto é, da revolução mundial, o abandono de uma política corajosa de coletivização e industrialização, o apoio sobre o kulak (camponês rico), a união com a burguesia nacionalista nas colónias e com os sociais-imperialistas nas metrópoles, tal é, afirma Leon Trotsky, o sentido político do bloco centrista da burocracia com as forças de Termidor. Apoiando-se na pequena burguesia insolente e fortificamente e na burocracia burguesia, explorando a passividade do proletariado desorientado, fatigado, e a derrota da revolução no mundo inteiro, o aparelho centrista, em poucos anos, destruiu a ala esquerda revolucionária do partido bolchevique.

Não posso fugir ao dever imperioso de citar mais uma vez Lenin. Numa antevisão genial do que poderia ocorrer em caso de limitação da revolução russa às fronteiras nacionais, em carta dirigida aos operários suíços escreve:

A Rússia é um país camponês, um dos países mais atrasados da Europa. O socialismo não pode triunfar nela diretamente, prontamente. Porém, o caráter camponês do país, dado as imensas propriedades agrárias dos latifundiários da nobreza, pode, como o prova a experiência de 1905, dar a revolução burguesa e democracia uma extensão imensa; pode fazer da nossa o prólogo da revolução socialista mundial, uma etapa no seu caminho... O proletariado russo não pode, por suas próprias forças, acabar vitoriosamente a revolução socialista. Porém pode dar a sua revolução tal extensão, que criará as melhores condições para revolução socialista, e a iniciará, de certo modo. Pode tornar a situação mais favorável, para que entre nas batalhas decisivas seu colaborador principal e mais seguro, o proletariado socialista europeu e americano. (Obras Completas, vol. XIV).

Essas palavras foram escritas por Lenin depois da revolução de fevereiro e conseqüentemente antes, imediatamente antes de seu embarque para a Rússia e da tomada do poder pelos bolcheviques. Decorreram, desde aí, quase 30 anos. Em nem um só único país do mundo o proletariado conseguiu instaurar seu poder de classe. Torna-se evidente que devem ser procuradas as causas desse terrível colapso da revolução internacional iniciada em 17 no País dos Soviets.

A partir de 23, quando já em seu leito de morte jazia a genial estratégia proletetário que se chamou Wladimir Ilitch Ulianov, conhecido no mundo todo pelo pseudónimo de Lenin, ate sua dissolução formal em 1943, a Internacional Comunista não registrou senão derrotas: na Alemanha, na Bulgária e na Estónia, na Inglaterra e na china, na França e na Espanha. Em outros países, sem terem sido tão trágicos, os fracassos não foram menos dolorosos. Segundo o trotskismo as causas de todos esses espantosos desastres devem ser procuradas na teoria do socialismo num só país, que se tornou um manancial de nefastos erros social-patriotas inevitáveis. Deles cumpre ressaltar a hecatombe da Revolução Chinesa de 25 a 27, e, sobretudo, a espantosa capitulação do Partido Comunista da Alemanha que entrega sem resistência suas posições as hordas sanguinárias de camisas-pardas encabeçadas por Hitler.

Nenhum instrumento mais poderoso para análise dos fatos sociais que o materialismo histórico, sociologia da revolução. A explicação dos acontecimentos referidos só pode ser encontrada com o recurso desse método.

Conquanto tenha partido de outras bases e de outras tradições históricas, a política dos que sucedem a Lenin, e sobretudo de Stalin, constitui uma variedade do centrismo. Como este, que pelas suas expressões mais características, tentou traçar uma diagonal entre o bolchevismo e a social-democracia, a política da extinta Internacional Comunista formou até 1943, uma linha de zig-zags empíricos entre Marx e Vollmar, entre Lenin e Chang-Kai-Chek, entre o bolchevismo e o socialismo nacional. Esse centrismo teria sido liquidado politicamente muito antes da monstruosa capitulação perante Hitler se não se apoiasse nos recursos materiais e nas tradições ideológicas de um Estado saído da Revolução de Outubro.

Da série de erros há poucos referidos, todos emanados da teoria do socialismo num só país com suas decorrências de colaboração com a burguesia, cabe destacar um dos mais honestos: a linha tático-estrategica adotada na revolução chinesa de 25-27. É particularmente em torno da falsa linha política posta em pratica nos acontecimentos chineses que Trotsky recoloca os problemas essenciais da revolução permanente.

A maioria dos militantes proletários dos dias de hoje e - porque não dizer - grande parte dos intelectuais voltados para o estudo do marxismo, da teoria da revolução permanente não conhecem mais do que a deformação caricatural que dela fazem os seguidores de Stalin. Permita-me, pois, que eu assinale dois traços essenciais da crítica stalinista a essa teoria: segundo essa critica, Trotsky subestimou o papel do campesinato nas revoluções democrático-burguesas e, em segundo lugar, ao criador do Exercito Vermelho se atribuía absoluta incompreensão da necessidade das etapas nas revoluções dos países atrasados, isto é, países coloniais, e semicoloniais.

Todo o pensamento escrito deixado por Trotsky sobre a revolução permanente apresenta esta como uma revolução que reúne as massas oprimidas da cidade e dos campos em torno do proletariado organizado em soviets, como uma revolução nacional que faz o proletariado subir ao poder e por isso mesmo abre a possibilidade de um transcrescimento da revolução, da revolução democrática em revolução socialista. A revolução permanente não é um salto do proletariado isolado mas a transformação de toda a nação sob a direção do proletariado. Dessa maneira é que, desde 1905, concebia e interpretava Trotsky as perspectivas da revolução permanente. Escreve Trotsky:

Para os países de desenvolvimento burguês retardatário e, em particular para os países coloniais e semicoloniais a teoria da revolução permanente significa que a solução verdadeira e completa de suas tarefas democráticas e nacional-libertadoras só é concebível por meio da ditadura do proletariado que assume a direção da nação oprimida e antes de tudo de suas massas camponesas.

Tanto a questão agrária como a questão nacional confere ao campesinato, como enorme maioria da população dos paises atrasados, um papel primordial na revolução democrática. Sem a aliança entre o proletariado e o campesinato, as tarefas da revolução democrática não podem ser resolvidas, nem mesmo ser colocadas a sério. Essa aliança das duas classes, porém, só se realizará numa luta implacável contra a influência da burguesia nacional-liberal.

Quaisquer que sejam as primeiras etapas episódicas da revolução nos diferentes países, a aliança revolucionária do proletariado com os camponeses só é concebível sob a direção política da vanguarda proletária organizada como partido comunista, apoiado em sua aliança com os camponeses e destinada, em primeiro lugar, a resolver as tarefas da revolução democrática. (Trotsky, "Teses sobre a revolução permanente").

Onde esta pois, em Trotsky, a subestimação do papel do campesinato?

A essência da questão da revolução permanente consiste em que o programa agrário, que constitui a base da revolução burguesa, não pode ser resolvido sob a dominação da burguesia. A ditadura do proletariado aparece como condição preliminar na revolução agrária e democrática e não depois dessa revolução. Tanto a questão agrária como os demais problemas pendentes de que a burguesia deu testemunho histórico de sua incapacidade para resolvê-los, serão levados a cabo pelo proletariado através de sua ditadura de classe apoiada nas amplas massas camponesas. Esta, até aqui, não tem feito senão seguir ora o burguês, ora o proletariado. Sua incapacidade manifesta de assumir um papel independente foi comprovada através da experiência fecundíssima das revoluções do século XIX, e através da revolução russa, padrão do tipo de revoluções do mundo capitalista em sua fase de imperialismo. Na revolução russa, os socialistas revolucionários que se haviam tornado maioria esmagadora do campesinato, se uniram aos imperialistas da Entente e tomaram parte na luta armada contra o proletariado.

Ouçamos ainda uma vez Lenin:

Toda a economia política, toda a história da revolução, toda a história do desenvolvimento político do século XIX nos ensinam que o camponês só tem feito seguir o burguês ou o operário. Se ignorais a razão desse fato - é um conselho que dou aos que não o compreendem, - examinai o desenvolvimento de uma das grandes revoluções do século XVIII ou do século XIX, ou a história política de alguns países do século XIX e tereis a resposta. A economia da sociedade capitalista é tal que pode ser força dominante ou o capital, ou o proletariado que o derroca. Não há outras forças na economia dessa sociedade. (Obras Completas, vol. XVI).

Nessas afirmativas de Lenin não estão em causa a Inglaterra ou a Alemanha contemporâneas. O fundador do Estado soviético, baseando-se nas lições de qualquer das revoluções do século XVIII ou XIX, isto é, das revoluções burguesas dos países atrasados, chega à conclusão de que só é possível ou a ditadura do proletariado. Nenhuma ditadura intermediária ou "democrática" seria viável.

A respeito relembremos o que nos ensina Engels:

O que é evidente e se deduz igualmente da história de todos os países modernos é que a população agrícola, devido à sua disseminação em uma grande extensão territorial e à dificuldade de se estabelecer um acordo entre uma grande parte dela, jamais pode tentar um movimento independente vitorioso. Necessita de um impulso inicial dos habitantes das cidades mais concentradas, mais cultas, mais fáceis de mobilizar. (Revolução e Contra Revolução na Alemanha, 1851).

Os ensinamentos vivos das lutas sociais mostram que os partidos pequeno-burgueses de base camponesa podem ter uma aparência de política independente num período de calmaria histórica, quando só se inscrevem na ordem do dia questão secundárias. Mas logo que a crise revolucionária da sociedade põe em primeiro plano os problemas fundamentais da propriedade, o partido "camponês" pequeno-burguês se converte automaticamente numa arma da burguesia contra o proletariado.

Os teóricos da Internacional Comunista depois de Lenin, antes de entrarem na nova fase da frente popular e união nacional, continuavam a opor a "ditadura democrática" tanto à ditadura da burguesia como à do proletariado. Isso, porém, significa que a ditadura democrática deveria ter um conteúdo intermediário, isto é, pequeno-burguês, ou melhor, que à pequena burguesia cabia desempenhar o papel determinante e decisivo. Três revoluções russas, duas revoluções chinesas já responderam a essa questão: hoje, nas condições de dominação mundial do imperialismo, a pequena burguesia seja urbana ou rural é incapaz de desempenhar um papel revolucionário dirigente nos países capitalistas, mesmo quando esses países sejam atrasados e não tenham resolvido ainda suas tarefas democráticas. Isto porque o proletariado, já estando separado da pequena burguesia, se insurge contra a grande. Por seu turno, nos quadros do desenvolvimento capitalista, reduz a pequena burguesia à impotência e coloca o campesinato diante da necessidade de escolher entre a pequena burguesia e o proletariado.

Passemos agora a outra das criticas feitas à teoria da revolução permanente, isto é, que o seu formulador preconizava o "salto" por cima da etapa democrática da revolução.

A teoria da revolução permanente nunca significou para Trotsky a vontade de saltar por cima da etapa democrática da revolução ou de qualquer de suas fases particulares. O criador do Exercito Vermelho apresentou os objetivos das etapas da revolução em 1905 de modo inteiramente idêntico ao de Lenin, por varias vezes, fez a defesa enérgica das teses de Trotsky sobre a revolução permanente escritas em 1905 e defendeu sempre as resoluções do soviets de deputados operários presididos pelo então jovem Trotsky e das quais em nove casos sobre dez era ainda ele seu autor.

Leiamos uma passagem da famosa carta deixada a Trotsky por Adolfo Joffé, membro do comitê militar revolucionário da insurreição de outubro e da delegação soviética de paz em Brest-Litovsk. Nas vésperas de suicidar-se, compelido pela nova direção do Estado russo, escreveu esse antigo militante do partido bolchevique:

Você sempre teve razão politicamente, a partir de 1905. Varias vezes já lhe disse que Lenin me afirmara que em 1905 não era ele quem estava certo, mas você. Não se mente na presença da morte. Por isso quero reafirmar tal coisa agora.

Se a teoria da revolução permanente nunca significou para Trotsky o salto por cima das etapas, isso não quer dizer, todavia, que não se podem saltar as etapas. A historia contemporânea nos mostra com dois eloqüentes exemplos - a insurreição de outubro e a insurreição de Cantão - que o curso vivo dos acontecimentos históricos salta sempre por cima das etapas, que são o resultado de uma análise teórica da revolução considerada em seu conjunto, isto é, em sua amplitude máxima; e nos momentos críticos, exige esse curso o mesmo salto da política revolucionária. Poder-se-ia dizer, segundo afirma Trotsky, que a capacidade de reconhecer e utilizar esses momentos distingue, antes de tudo, o revolucionário do evolucionista vulgar. Há etapas do desenvolvimento histórico que podem tornar-se inevitáveis em certas condições, sem que o sejam do ponto de vista teórico. Por outro lado, a dinâmica da evolução pode reduzir a zero etapas teoricamente "inevitáveis", sobretudo durante as revoluções. Em abril de 1919, em seu artigo-programa intitulado "A III Internacional e seu Lugar na Historia", escreveu Lenin:

É provável que não nos enganemos se dissermos que foi justamente... a contradição existente entre o Estado atrasado da Rússia e o seu "salto"por cima da democracia burguesa, para a mais alta forma de democracia, a soviética ou proletária, uma das causas que dificultaram ou retardaram a compreensão do papel dos soviets no Ocidente. (Obras Completas, vol. XVI).

Já em polemica com Kautsky, o mesmo pensamento é expresso por outras palavras:

Tentar levantar artificialmente uma muralha chinesa entre as duas revoluções, separa-las de outra forma que não seja pelo grau de preparação do proletariado e o grau de sua união com a classe pobre das aldeias, é desnaturar o marxismo, aviltá-lo e substituí-lo pelo liberalismo. É querer, reportando-se ao progresso que representa o regime burguês em relação ao feudalismo, fazer obra de reação defendendo esse regime contra o socialismo. (A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky, p. 162).

A exemplo da revolução de outubro, igualmente a insurreição de Cantão, malgrado abortícia por ter sido desencadeada na fase de declínio da vaga revolucionária, elevou ao poder os operários chineses. De fato, o poder pertencia ao partido comunista. O programa do novo poder não compreendia somente o confisco das terras dos grandes proprietários e o controle operário da produção, mas também a nacionalização da grande indústria, dos bancos, dos transportes e ainda, a confiscação das residências da burguesia e de todos os bens dela em proveito dos trabalhadores. O golpe de estado revolucionário contra o Kuomintang levou automaticamente à ditadura do proletariado que, desde os seus primeiros passos, viu-se obrigado a aplicar, em virtude da situação em conjunto, medidas mais radicais que as adotadas pelo proletariado russo no inicio da revolução de outubro.

Na revolução atual o proletariado industrial ocupa o mesmo posto que ocupava no fim do século XIX a democracia semiproletária dos artesãos e dos sans-culottes vindos das corporações de ofício. A política de adaptação à burguesia colonial, à democracia pequeno-burguesa, levou ao fracasso a revolução chinesa. O golpe de Estado de Cantão, que comprova as teses da revolução permanente, foi por sua vez um ato de desespero do centrismo da Internacional.

Das lições de Outubro e da insurreição de Cantão, decorre a confirmação de que a única força que desempenha realmente um papel revolucionário na sociedade contemporânea é o proletariado, quer se trate de operários de país "avançado" quer se trate de operários de país "atrasado". Na sociedade capitalista toda verdadeira revolução - especialmente se ocorre num grande país - tende a transformar-se em revolução permanente ou, dito de outra maneira, a não se deter nas etapas conquistadas nem a reduzir-se aos limites nacionais; tende a estender-se e aprofundar-se até a transformação completa da sociedade, à abolição definitiva das instituição de classes e, por conseguinte, a supressão completa e final da própria possibilidade de novas revoluções. Nisso precisamente consiste a concepção marxista da revolução proletária, que se distingue da revolução burguesa que é limitada tanto por sua envergadura nacional como por seus objetivos específicos.

Escreve Trotsky:

Indiscutivelmente a economia mundial em seu conjunto está madura para o socialismo. Isso porém não significa de modo algum que todo país considerado isoladamente esteja na mesma situação. Como instituir, então, a ditadura do proletariado em vários países atrasados, como a China, a à ndia etc.? Respondemos: a História não se faz por encomenda. Um país pode estar "maduro" para a ditadura do proletariado e contudo, não o estar ainda para a construção independente do socialismo ou mesmo para grandes medidas de socialização ... nenhum país do mundo poderá construir o socialismo dentro dos seus quadros nacionais; a isso se opõem não só as forças produtivas que, altamente desenvolvidas, ultrapassam os limites nacionais, como também as forças produtivas que, insuficientemente desenvolvidas, impedem a nacionalização.

Os teóricos do socialismo num só país, para justificar essa concepção aplicada à Rússia, viram-se forçados a estender a todo mundo uma política de colaboracionismo que, levada a conseqüências extremas, passou efetivamente a negar o papel revolucionário do proletariado nos países atrasados, transferindo à burguesia nacional a missão de libertar toda a sociedade da servidão feudal e imperialista. O envoltório "teórico" dessa doutrina é a alegada debilidade industrial desses paises é, conseqüentemente, a fraqueza numérica do proletariado. Ouçamos a lição de Lenin a propósito do proletariado:

A força do proletariado é relativa e infinitamente maior que a proporção do proletariado na população total. Por isso, o proletariado é o centro e o nervo do sistema da economia capitalista e, é por isso também que, no campo económico e político, o proletariado representa, sob o domínio capitalista, os interesses reais da enorme maioria dos trabalhadores.

Igualmente o proletariado, mesmo constituindo uma minoria da população, (ou quando é a vanguarda do proletariado consciente e verdadeiramente revolucionário a que constitui essa minoria), é capaz de derrubar a burguesia e de atrair imediatamente para o seu lado numeroso aliados da massa semiproletários e pequeno-burgueses que nunca se pronunciarão a princípio pela dominação do proletariado nem compreenderão as condições e as tarefas dessa dominação; porém, se convencerão somente por sua experiência ulterior da inevitabilidade, justiça e legitimidade da ditadura proletária. (Obra Completas, vol. XVI)

O proletariado cresce e se fortifica à medida que se desenvolve o capitalismo. Considerado nesse sentido, o desenvolvimento do capitalismo é, ao mesmo tempo, a evolução do proletariado para a ditadura. O dia e a hora, porém, em que o poder deve passar para as mãos da classe operária não dependem diretamente do nível das forças produtivas, e sim da relação da luta de classes, da situação internacional e finalmente, de uma serie de elementos subjetivos, sobretudo a tradição revolucionária, a iniciativa, a preparação da batalha.

A história recente provou que a burguesia nacional e "progressista", como está em moda dizer-se hoje, é incapaz de encabeçar toda a nação na luta contra o domínio imperialista; de um lado porque a unidade orgânica da economia mundial faz dessa burguesia um parente pobre do capital financeiro e, de outro lado, porque muito mais que ao imperialismo a que, em parte, está submetida, a burguesia teme seu próprio proletariado. No problema da terra igualmente não ousa tocar, porque não ignora que a violência do sacrossanto direto de propriedade se pratica por ela, poderia colaborar no desencadeamento da torrente proletária que ela sabe como se inicia mas não em que marco se deterá. Os teóricos do Socialismo num só país apresentam as coisas se do jugo colonial decorresse de modo absoluto o caráter revolucionário da burguesia nacional, e se põem, então, à procura de forças democrático-burguesas para coloca-las à frente da revolução. A realidade é mais tenaz que todas as elucubrações dos cérebros oportunistas. As lições dos movimentos revolucionários de nosso século, particularmente no Oriente, estão a provar que a burguesia "progressista" é um mito nefasto que vem entorpecendo de modo trágico a ação independente de classe do proletariado.

Quero encerrar fazendo uma síntese do que seja a revolução permanente: supressão do absolutismo e da servidão quando os haja, solução dos problemas democráticos pendentes, tudo isso entrelaçado à revolução socialista, por meio de uma série de conflitos sociais crescentes, da insurreição de novas camadas populares, de ataques incessantes do proletariado aos privilégios políticos e económicos das classes dominantes. A vitória completa da evolução significa a vitória do proletariado. E esta por sua vez significa a continuidade ininterrupta da revolução. O proletariado, apoiado pelo semiproletariado rural e pelo camponês pobre, realiza as tarefas fundamentais da democracia e a lógica de sua luta direta pela consolidação de sua dominação política, faz surgir diante dele, a um dado momento, problemas puramente socialistas. "Entre o programa mínimo e o programa máximo, - afirma Trotsky - estabelece-se, assim, uma continuidade revolucionária. Não se trata de um só golpe, nem de um dia ou um mês, mas de toda uma época histórica, cuja duração seria absurdo definir de antemão".

É ao proletariado, única força autenticamente revolucionária dos dias presentes, que compete, apoiado pelo campesinato, sobretudo pelos trabalhadores rurais, colocar-se à testa de todas as camadas populares para o derrocamento do sistema capitalista.

Herminio Sachetta, 1946









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