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“O Som ao Redor”, uma estética para captar as contradições de classe no interior do lulismo

03 Feb 2013   |   comentários

Num mar de filmes e novelas de apologia desavergonhada ao lulismo, à ideia do “Brasil potência” e do “país da classe média”, O Som ao Redor parece ter dado mais ouvidos à poesia dos trabalhadores brasileiros do que ao canto de sereia da ideologia dominante no lulismo em nosso país.

Já é enorme o sucesso que o filme brasileiro O som ao redor vem alcançando (lançado em 2012, chegou aos cinemas em 2013): premiado em diversos eventos no Brasil, passando por 40 festivais internacionais e recebendo a indicação do New York Times como um dos dez melhores filmes do ano de 2012. O primeiro longa do pernambucano Kleber Mendonça parece ter encarnado com mais profundidade um movimento recente no cinema de Recife: dar primeiras expressões aos dilemas, particularidades e contradições entre as classes no interior da última etapa “lulista” do Brasil – um fenômeno também nacional, em que a classe começa a ser objeto da criação cinematográfica.

O recurso estético utilizado é audacioso: adentrar a dinâmica das classes a partir dos sons que elas produzem, enxergando no conflito incessante captado pelo ouvido humano uma expressão da dinâmica conflituosa colocada na realidade da luta de classes. Tal recurso conduz os telespectadores a uma multiplicidade de deslocamentos (cortes) das cenas no interior do filme, buscando captar essa dinâmica, envolvendo os telespectadores e os conduzindo ao conteúdo destes sons a partir da sutil mudança de cena e do cruzamento dos sons que permeiam o espaço filmado.

Entretanto, muito ao contrário de uma fragmentação desconexa, o desenvolvimento do filme vai reconduzindo cada uma das incessantes mudanças de cena a uma diversificada caracterização das classes, especialmente as particularidades das supostas “classes médias”: no caso dos trabalhadores, apresenta-se a combinação da exploração do trabalho (bastante explicitada nas empregadas domésticas no filme) com a enxurrada de crédito que setores da mesma classe receberam, o que dá a falsa ideia de duas classes, de “um país da classe média”, um crédito que na realidade arrasa os salários na usurpação capitalista financeira; no caso da pequena-burguesia, retrata-se a miséria ideológica de uma classe escondida atrás dos ‘cães de guarda e guarda-costas’. Para apresentar essa contradição no interior das classes, o filme carrega a sorte de excelente atuação destacada de Maeve Jinkings e Irandhir Santos (A Febre do Rato).

No roteiro, talvez o maior logro esteja na caracterização histórica que se consegue propor no interior da análise da classe dominante atual. A personagem “Senhor Franscisco” (W.J. Solha) encarna durante o filme a metáfora da transição das “elites” tendo por base a exploração escravagista nos engenhos, que se transfigurou no Recife contemporâneo nos especuladores imobiliários (e na espoliação rentista nas suas diversas formas no conjunto do Brasil). Seu filho, “João” (Gustavo Jahn), metaforiza, em sua vida de corretor de um conjunto de imóveis do bairro, a decadência da fraca classe dominante brasileira, expressa no conjunto de retrocessos em sua vida e, sobretudo, na sua falha e irônica “posição progressista” (que se dá, por exemplo, no caso da discussão sobre a demissão do porteiro do prédio no filme), na medida em que se demonstra que seu “progressismo” está montado no passado colonial das riquezas de seu avô e na atual especulação imobiliária (que já se anuncia como um dos grandes vilões dos trabalhadores e da população pobre no Brasil, faltando um ano para Copa do Mundo).

E como um desdobramento da mesma tese, o filme também faz uma incursão em torno da reflexão sobre a questão negra no Brasil, na medida em que em algumas cenas criteriosamente eleitas ao longo do filme, traça um paralelo entre a “velha exploração de engenho” e a nova faceta da exploração, que muitas vezes é permeada pela ideologia da “democracia racial”: tal ideologia se desfaz no íntimo das ações das personagens, como na relação de “João” (especulador imobiliário) com as empregadas negras; na cena dos escravos pulando os muros da casa, no sonho da filha de Bia; no jovem negro em uma árvore que é agredido para nunca mais voltar ao bairro pequeno-burguês, e, talvez de modo mais chocante, no banho de sangue que, ao lado do velho senhor de engenho, o novo representante da classe dominante recebe metaforicamente na cachoeira, na fazenda do engenho.

Num mar de filmes e novelas de apologia desavergonhada ao lulismo, à ideia do “Brasil potência” e do “país da classe média”, O Som ao Redor parece ter dado mais ouvidos à poesia dos trabalhadores brasileiros do que ao canto de sereia da ideologia dominante do lulismo em nosso país.

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