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Cultura

O “México Insurgente” de John Reed cem anos depois

02 Dec 2014   |   comentários

Há cem anos o jovem jornalista americano John Reed lançava seu primeiro livro, "México Insurgente", sobre a revolução camponesa no México. Sua obra segue sendo um dos mais importantes relatos dessa importante luta.

Não há um peão entre vinte que não possa lhe dizer exatamente pelo que estão lutando: terra.

 John Reed, “What about Mexico”.

Estoura a revolução camponesa

Entre os anos de 1910 e 1917 o México atravessou um dos mais importantes processos revolucionários que a América Latina já viu. Em um país semicolonial esmagado por todo o peso de sua localização como o “pátio traseiro” do cada vez mais importante imperialismo dos EUA, e ainda explorado pelo ainda predominante imperialismo britânico, o México se desenvolvia naquele momento sob o domínio da sanguinária ditadura de Porfírio Diaz desde 1876. Díaz impunha a ferro e fogo a “modernização” do país com a crescente dependência do capital imperialista e o aumento da já impressionante concentração das terras nas mãos dos latifundiários, para o quê expulsou de suas terras milhares de povos indígenas e de pequenos camponeses.

Contudo, após um período marcado pelas primeiras greves da ainda pequena classe operária mexicana, no seio da própria burguesia nascente ocorrem atritos para decidir quem continuaria a condução da exploração no México: Porfírio Díaz já não era o representante legítimo dos anseios da classe dominante. E, em 1910, após mais uma eleição fraudada que mantém na presidência o ditador, um latifundiário dissidente, Francisco I. Madero, lidera um movimento para que ele tome a presidência.

Essas fissuras entre a classe dominante se combinam com a latente e explosiva revolta dos camponeses, que, de maneira contraditória, assumem o levantamento de Madero como seu, o que faz eclodir uma imensa revolução camponesa no país. Após a deposição de Díaz, antes de partir para o exílio nos EUA, ele teria dito: “Madero soltou um tigre. Veremos se pode manejá-lo”. E, de fato, se para Madero tratava-se de tirar Díaz do poder, para os camponeses insurretos a questão era tomar para si as terras e acabar com a desigualdade no México. Essa contradição é o motor que irá alimentar o longo e tortuoso processo revolucionário mexicano.

Um americano no México

Não tentaremos aqui explicar as idas e vindas do processo revolucionário no México nem sua dinâmica de classes. Queremos render uma homenagem ao então jovem e iniciante repórter John Reed, que em 1913 coloca os pés em solo mexicano, tomando para si a tarefa de ser um correspondente de guerra nesse árduo cenário e retratar para os EUA e o mundo o que lá acontecia.

Se hoje vemos que a imprensa trata de retratar os conflitos em qualquer parte do mundo de acordo com seus interesses, como, por exemplo, no massacre aos palestinos promovido por Israel ou qualquer processo de levante popular contra os governos da burguesia, quando Reed chega ao México a situação da imprensa no conflito não era distinta. Ainda mais se pensarmos que os interesses da burguesia dos EUA no país eram imensos, e por isso o controle da opinião pública quanto ao processo revolucionário era fundamental. Reed será o primeiro a lutar contra a mordaça imposta pela sua burguesia e seu governo.

Diferente de outros repórteres que chegavam à fronteira entre EUA e México, e a partir do pequeno vilarejo de Presidio obtinham suas informações, Reed quis saber o que acontecia com seus próprios olhos. Ele cruza a fronteira e arrisca sua própria vida nos campos de batalha para retratar o que de fato ocorria. E aí se firma sua primeira decisão política de grande relevância: Reed quer dar voz aos camponeses, aos que levam adiante o processo revolucionário por terra, justiça e liberdade. São quatro meses que o jovem Reed passa lado a lado dos combatentes escrevendo numerosos artigos para a revista Metropolitan e o jornal World.

México Insurgente: o retrato de uma luta por justiça

A partir de seus artigos, em 1914 Reed irá compor o seu primeiro livro, México Insurgente (Insurgent Mexico, também traduzido ao português sob o título de México Rebelde). Ainda hoje, um dos mais importantes relatos da revolução mexicana.
O maior desejo de Reed quando estava no México não pôde se realizar pelos limites impostos pelas publicações para as quais trabalhava. Entre os camponeses, dois líderes cumpriram um papel decisivo: ao norte, Francisco “Pancho” Villa, entre cujas tropas Reed passa a maior parte de sua estadia no México. Ao sul, Emiliano Zapata, que comandou o levante em Morelos e representou o mais avançado na revolução: rapidamente se rebelando contra as direções burguesas de Madero e, depois de seu assassinato, de Venustiano Carranza, Zapata e seu Exército Libertador do Sul expressavam o ponto mais avançado de independência política que os camponeses atingiram em todo o processo revolucionário. Talvez, em qualquer processo revolucionário. Era lá que Reed queria estar, mas foi impedido por seus editores.

De qualquer forma, mesmo sem poder conhecer Zapata e ainda sem uma profunda clareza política de todo o mecanismo de classe que envolvia a revolução, Reed escreveu uma obra grandiosa: em suas páginas os camponeses falam de seus desejos e sonhos; Reed é capaz de captar com beleza e sutileza a opressão de uma parcela da população que mesmo na revolução foram relegados ao segundo plano: as mulheres. Entre emocionantes relatos das batalhas, festas dos camponeses, entrevistas com dirigentes camponeses como Villa e burgueses como Carranza, Reed apresenta um mosaico rico e poderoso de um processo revolucionário que foi brutalmente interrompido.

Cem anos depois, a obra de Villa e Zapata segue pendente

O ponto culminante da obra de Reed, no entanto, não se daria no seu relato da luta dos camponeses mexicanos, mas sim, cinco anos mais tarde, em sua obra prima que apresentou em primeira mão ao mundo a obra dos trabalhadores que primeiro foram capazes de destruir o Estado da burguesia e tomar o destino em suas próprias mãos. Em Dez dias que abalaram o mundo (Ten days that shook the world), Reed compôs um panorama impressionante da revolução de outubro de 1917 na Rússia. Uma revolução plena de vitória, cujas contradições seriam muito distintas daquelas do México.

O processo mexicano foi abortado e afogado em sangue pelas mãos dos latifundiários e burgueses que o usurparam, que o tomaram para si com falsas promessas para o povo. Villa e Zapata foram transformados em criminosos porque seu desejo era o de fazer triunfar uma revolução camponesa que mudasse a estrutura fundiária, econômica e social no México, e não meramente trocar um ditador por um presidente. Infelizmente, o campesinato carecia de condições para poder dirigir de forma independente o processo revolucionário até o fim, ainda que contasse com lutadores incansáveis como Villa, Zapata e seus guerreiros.

Cem anos depois, a burguesia segue usurpando as bandeiras da revolução e cantando a vitória – a sua própria vitória sobre os camponeses e operários. O brutal assassinato de 43 estudantes de Iguala, da escola rural de Ayotzinapa que lutavam por melhorias na educação é mais uma expressão disso. O profundo reacionarismo do governo de Enrique Peña Neto do PRI (Partido que ironicamente é o pilar de outra ditadura que durou setenta anos no México e se reivindica “herdeiro da revolução”), a ligação entre Estado, polícia, narcotráfico; os absurdo números de feminícidio; a exploração enorme que pesa sobre os trabalhadores, são todas heranças que o México carrega dos problemas que não puderam ser resolvidos graças à derrota da revolução. Contudo, os camponeses, indígenas, operários, mulheres, nunca deixaram de lutar: o levante de 1994 em Chiapas, a Comuna de Oaxaca de 2006, o movimento #yosoy132 no ano passado e agora os imensos levantamentos após o massacre de Guerrero mostram que a herança da revolução mexicana segue viva, pulsando, e ainda irá concluir sua obra. O livro de John Reed é mais um importante documento dessa história.

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