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Natureza morta: a ascensão burguesa do gênero plástico

06 Jan 2008   |   comentários

As Naturezas Mortas são comumente identificadas como pinturas que retratam alimentos dispostos à mesa. Mas, na realidade, a idéia de Natureza Morta (ou ainda Stilleben, que é provavelmente a primeira denominação deste gênero da pintura [1]) está relacionada à retratação/interpretação de objetos. Entretanto, as obras que figuram alimentos tornaram-se a expressão maior do gênero plástico no período em que as naturezas mortas entraram em evidência.

As obras que consolidaram o gênero na pintura são fortes expressões do renascimento comercial e do surgimento da burguesia enquanto classe na Europa central. As primeiras naturezas mortas começam a aparecer na produção artística holandesa, especialmente em Amsterdã, entre os séculos XVI e XVII. As obras desenvolvidas inicialmente na Holanda, e que depois se estendem a Europa, podem ser consideradas paradoxalmente como, ao mesmo tempo, oposição e influência do Barroco nas artes plásticas. Isso porque no estilo Barroco a representação iconográfica católica (santos, cenas bíblicas entre outros) predominou, enquanto as naturezas mortas são expressão estética justamente da reforma protestante. Entretanto enquanto havia essa oposição no conteúdo das obras, no aspecto formal [2] a identificação com o Barroco não poderia passar despercebida.

Enquanto o Barroco surge também como uma resposta do catolicismo à Reforma Protestante, as obras que retratavam Naturezas Mortas rompem com o estilo para justamente se tornarem uma das primeiras expressões da pintura em um país onde a burguesia ascendia através do comércio nos portos e aderia ao protestantismo. A Igreja Protestante se colocava contra a representação de santos e temas mitológicos. E os pintores holandeses, que produziam marcadamente arte sacra, foram obrigados a buscar outros temas para suas obras ou perderiam seus novos compradores (a ascendente burguesia comercial). Surge, portanto neste período uma série de artistas que centram seu trabalho na pintura de costumes, paisagens, retratos, naturezas mortas, interiores e motivos arquitetónicos. Posteriormente este tipo de pintura perde a importância e passa a ter um caráter popular, destacadamente as Naturezas Mortas.

Como já mencionamos antes, foi elemento essencial do cenário onde o estilo se difundiu o Renascimento Comercial europeu. Sendo Amsterdã uma cidade portuária, com bastante relevância para o mercado europeu na época, nela se presenciou um fluxo demasiado de mercadorias, tanto no sentido da quantidade, quanto da qualidade, da novidade e variedade o que dará elementos para toda a produção plástica no período. Assim, no contexto do renascer comercial surge e ascende, progressivamente, a classe burguesa holandesa. E pouco a pouco a burguesia vai criando sua identidade cultural, e moldando uma nova cultura.

Primeiro começa a se constituir o “gosto burguês” nacional, e para o burguês um quadro era um móvel que cobria paredes nuas. E as paredes cobertas, a mobília, os detalhes, são manifestações de status e poder económico. No interior desses quadros, que vestiam as paredes, a presença nostálgica do luxo da nobreza, que a burguesia sempre fora negado e agora o desejo em conquistá-lo era ávido, fora forte desde o seu início.

Os elementos da alimentação, todos os detalhes dos jantares de importância até as refeições do dia a dia torna-se um meio simbólico de conseguir status para a classe burguesa em ascensão. E as classes que não possuem o status económico burguês marcham a cafés e restaurantes pela ilusão; artistas, intelectuais, banqueiros, diplomatas, comerciantes...é inclusive a partir daí que começam a ocorrer os jantares filosóficos e literários. E também nessa época que se constroem as latrinas públicas. Neste contexto se popularizam naturezas mortas, que são primeiro pendurados por cima do papel de parede da alta burguesia e depois podiam ser encontrado em qualquer restaurante, albergue, hospedaria. Além disso, a ostentação pela alimentação era uma delimitação com a classe proletária miserável, numa época em que a fome era forte expressão da situação económica do proletariado europeu.

STILLEBEN

O termo “natureza morta” e suas traduções, semelhantes nas diversas línguas latinas, pouco se assemelham ao sentido original do termo, utilizado provavelmente pela primeira vez na Holanda. Entretanto, a primeira denominação do gênero, “Stilleben” , que seria “vida serena” ou ainda “vida silenciosa” , ou mesmo seu quase oposto “Natureza Morta” , expressam uma forte característica do gênero que pretendia a construção de uma reflexão simbólica por meio dos objetos retratados.

No início as naturezas mortas passam a ser um meio de representação realista dos objetos. Aperfeiçoar a representação do objeto até dar a impressão ao observador que ele poderia pegá-lo é uma preocupação freqüente dos artistas da época. E, certamente por influência do pensamento iluminista, as obras são compostas com peças separadas que compõe um todo. O simbolismo, presente nos quadros, é constantemente disfarçado, já que a Reforma Protestante era como pano de fundo destas produções.

O gênero se subdividiu em temas/estilos que se definem de modo bastante claro, de acordo com a escolha dos objetos ou o cenário que prevalece na composição. Uma primeira sub-divisão do gênero são os quadros que retratavam cenas de mercado e de cozinha, muito ligados a idéia de celebração da nova situação económico-social e à valorização crescente do comércio e da exportação, o salto da produção agrícola etc. Há nestas obras também um forte aspecto de fetichização dos objetos comerciais, além de uma constante presença simbólica erótica [3].

Outra subdivisão do gênero são as naturezas mortas com pequeno almoço. Nessas obras se faz ainda mais presente a exibição dos luxos culinários, mas também é presente no estilo o tema do jejum, quer dizer, ele torna-se uma expressão de dois aspectos principalmente, a idéia de demonstrar fartura e correção moral sob a perspectiva religiosa. Influenciada pela temática do jejum o estilo opera uma diminuição dos elementos na composição e um progressivo caráter monocromático na representação, há também uma ligação com a pequena burguesia nessa expressão do estilo, em comparação com a fartura burguesa. Nestas obras há também, por vezes, representação humana, principalmente famílias.

Na temática da alimentação aparece também o tema dos frutos. Com os novos conhecimentos agrícolas e o advento das ciências botânicas destacam-se não apenas os legumes, mas também os frutos. No início eles aparecem separados, como que acabados de colhidos, depois há a ênfase às cenas de cestas de frutas isoladas, às vezes quase sem fundo. Alguns quadros do estilo também eram carregados de um simbolismo dissimulado, por exemplo, através da presença de moscas e frutos em decomposição, relacionando-se as Vanitas.

As Vanitas são outra subdivisão do gênero natureza morta, a palavra vanita vem do latim e significa vaidade. No entanto, a denominação do estilo vem da reflexão, geralmente proposta nestas primeiras obras, sobre a falta de sentido da vida humana, além da idéia de mortalidade e transitoriedade da vida humana ligando-se a concepções religiosas cristãs.

NATUREZAS-MORTAS

As Naturezas Mortas vão se desenvolver também na Espanha algumas décadas mais tarde. Entretanto as naturezas-mortas espanholas são mais influenciadas pelo Renascimento do que pelo Barroco [4], o pintor que mais se destacou na produção de naturezas-mortas desenvolvida no país foi Velasquez.

Depois dessas primeiras manifestações e do fortalecimento das Naturezas Mortas, elas começam a se espalhar por todos os países da Europa. E com o passar do tempo será cada vez mais considerado um gênero menor das artes plásticas, mesmo assim tornaram-se extremamente populares.

Depois dessa época áurea do gênero e de sua popularização apesar de não desaparece, mas passa a cumprir um papel secundário nas artes plásticas. Entretanto, o gênero retoma sua importância através do pintor pós-impressionista Cézanne, que desde a produção de Naturezas-Mortas e paisagens vai repensar a representação plástica e a relação da produção artística visual com a realidade propriamente. Já nas vanguardas modernistas o gênero foi correntemente uma maneira de afirmação de estilos.

Progressivamente as Naturezas Mortas perdem a expressão de status e de representação direta da realidade, tal como a ligação que frequentemente as obras tinham, subjetivamente, com os outros sentidos para além da visão. Em termos ilustrativos podemos começar em Cézanne e terminar em Picasso, quase em um degradê para a desconstrução do papel dos outros sentidos no tema. Seria quase como se representação deixasse de ser representação de composições de Naturezas Mortas, composições reais, para tornar-se conceito de Natureza Morta, idéia de Natureza Morta e aí a sua ruptura, visual. Esse movimento, claro, em perfeita sintonia com a noção iluminista de sociedade, que consolida os atos “carnais” [5], como segundo plano da vida em sociedade. Isso porque como vimos as Naturezas-Mortas ascendeu paralelamente à burguesia comercial e hoje inclusive muitas vezes são vistas como uma expressão de decadência nas artes plásticas.

[1Stilleben traduzido ao pé da letra do alemão significa vida ou viver silencioso.

[2Ao falarmos de aspecto formal ressaltamos aqui principalmente o contraste luz e sombra, desenvolvido amplamente no Barroco, e a composição diagonal nos elementos destacados nos quadros, inclusive indo de encontro a utilização da luz.

[3Não apenas pela maneira como são apresentados os alimentos, mas também porque, ainda nessa temática, aparece a figura humana (sempre em segundo plano) que se integrará a esse apelo erótico implícito em algumas das obras.

[4Expressão forte dessa idéia é o fato de que na Holanda o modo diagonal de composição é o mais utilizado, enquanto na Espanha a proporção áurea utilizada por Da Vinci, Michelangelo, entre outros.

[5Comer, beber, pra ticar o ato sexual e etc.

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