Quinta 18 de Abril de 2024

Internacional

PRIMAVERA ÁRABE

Não à intervenção imperialista da ONU no Magreb e Oriente Médio

19 Mar 2011   |   comentários

Após a queda da ditadura de Ben Ali na Tunísia, que até hoje não se estabilizou, e de Mubarak no Egito, as mobilizações se alastraram e obrigaram governos como o do Marrocos, Jordânia, Iêmen, onde os protestos seguem e contabilizam mais 30 mortos, a anunciar mudanças constitucionais preventivas. O mapa dos levantes tem como epicentro a Libia, em que o enfrentamento entre os rebeldes e as forças leais ao à Kadafi entra em uma fase decisiva com a votação da ONU que aprovou a formação da zona de exclusão aérea.

A radicalização de amplos setores da população líbia esgotada pela fome, miséria e opressão levou a que dezenas de milhares voluntariamente se dispusessem a pegar em armas e derrubar Kadafi. Isso constitui um avanço em relação aos processos anteriores, como o egípcio em que esta iniciativa esteve ausente. O ditador líbio respondeu com uma sangrenta repressão, que alimentou a raiva popular e a resistência. A resistência chegou a controlar quase todo o Leste do país, e a segunda cidade mais importante, Bengasi. Houve a deserção de grande parte do exército, que passou para a oposição, aliada ao fato deste não ter prestígio das forças armadas egípcias, excluía uma transição pactuada sob um governo militar provisório tal como se deu no Egito.

Na última semana, porém, houve uma série de reviravoltas. Uma ofensiva renovada das forças leais ao ditador retomou portos e cidades petroleiras estratégicas como Brega e Ras Lanuf, além de outras posições como a cidade de Zawiya, a menos de 50 km a oeste da capital Tripoli, que se manteve leal ao regime. As forças leais a Kadafi avançaram sobre Ajdabiya, cuja retomada ameaçava a retomada de Bengasi, capital da resistência.

Diante da possibilidade cada vez mais real de uma retomada de Bengasi por parte de Kadafi, o imperialismo norte-americano que a princípio estava reticente em intervir, dada as contradições para sua política na região que já conta com duas frentes abertas, Iraque e Afeganistão, votou na reunião do Conselho de Segurança da ONU, de 17/03, a aprovação à zona de exclusão aérea sobre a Líbia. Esta votação altera na conjuntura as divisões que primaram até ontem entre os imperialismos da UE e os EUA, com a França e a Grã-Bretanha defendendo uma posição mais beligerante, enquanto a Rússia, a Alemanha e os EUA estavam mais hesitantes. A votação contou com 9 dos 15 membros do Conselho de Segurança a favor, e nenhum veto, com China e Rússia se abstendo. O Brasil, que ocupa um cargo rotativo no Conselho, também se absteve, dando continuidade à política pró norte-americana de Dilma Roussef, que não proferiu uma só palavra em defesa do povo líbio e se receberá em20/03 Barack Obama em meio a um forte aparato de repressão montado no Rio de Janeiro, para renovar seus laços de vassalagem.

A política do imperialismo: desgaste da resistência, seguida da ameaça de intervenção militar

Como resultado imediato da ameaça das bombas sobre a Líbia, os porta-vozes de Kadafi declararam que suspenderão as atividades militares. Caso isso se concretize se demonstrará que Kadafi lança mão de seu objetivo de mínima de forçar melhores condições para uma saída negociada que, por exemplo, lhe desse a anistia. Isso debilitaria, ainda que não elimina, a perspectiva de que o processo tome uma dinâmica similar à da Bósnia nos anos 90, quando apesar da declaração da zona de exclusão aérea aprovada em resolução da ONU em 1993, a resistência de Slobodan Milosevic seguiu e a operação ampliou-se até levar a uma invasão terrestre das tropas da OTAN ao país. Apesar da declaração de cessar-fogo, divulgou-se que as tropas do governo estão atacando a cidade de Misurata e pelo menos 12 pessoas, incluindo quatro soldados de Kadafi, foram mortas. Frente a isso, a perspectiva de uma intervenção militar comandada pela França se torna mais concreta, não se sabendo que dimensão poderia tomar.

O consenso que há entre os imperialismos é de que os processos do Magreb e do Oriente Médio devem ser freados ou desviados mediante transições pactuadas. É o temor de que este sentimento antiimperialista desperte que está na base da política norte-americana, e que faz com que os EUA sigam evitando garantir diretamente a zona de exclusão aérea. Como assinala o jornal Página 12: “Washington obteve seu propósito: transferir a responsabilidade da ação principal aos países vizinhos, isto é, os europeus com costas mediterrâneas e os árabes. França e Grã-Bretanha, promotores da resolução, assumirão a maior parte da responsabilidade do Ocidente, apesar dos EUA serem a força dominante no seio da OTAN” [1]. E isso se dá logo após a visita de Hillary Clinton na Tunísia e Egito para tentar intervir nos processos de transição dos regimes daqueles países, onde foi recebida com manifestações de repúdio, que demonstram que apesar do sentimento antiimperialista não ter sido o motor dos processos, segue latente e pode impor certos limites à ingerência norte-americana na região.

A defesa da intervenção feita pela França e Grã-Bretanha, antigas metrópoles de uma série dos países do Magreb, como a própria Tunísia, não tem como motivação qualquer preocupação com o povo líbio, já que durante todo o período recente sustentaram o ditador Kadafi, bem como os EUA. A busca por evitar um aumento da população árabe imigrante dentro de seus próprios países em meio à crise capitalista é um dos motores reais da posição da França e da Grã-Bretanha. Desde o início do conflito ao menos 250 mil pessoas imigraram. A ultra-direitista francesa Marine Le Pen, da Frente Nacional, cujas últimas pesquisas apontam um fortalecimento de popularidade declarou no ápice do cinismo: “Me inspira muita compaixão. Também tenho coração. Mas a Europa não tem capacidade para recebê-los” [2], referindo-se ao povo do Magreb e Oriente Médio. Ao mesmo tempo, a posição da França e Grã-Bretanha busca fortalecer os laços com o Conselho Nacional de Transição tendo em vista estabelecer relações privilegiadas com o próximo regime em caso de queda de Kadafi, de modo a melhorar os contratos de exploração de petróleo e gás líbio, hoje em grande parte em mãos da ex-metrópole Itália.

A política dos imperialismos norte-americano e europeus é extremamente criminosa. Ambos fizeram um cálculo político que visava debilitar ao máximo a resistência, deixando correr a ofensiva de Kadafi, para que agora a intervenção militar imperialista seja vista como uma “intervenção humanitária”, que “salvaria” a resistência acuada após a recuperação das forças do ditador. Buscaram com isso quebrar a moral da resistência, e ampliar a aceitação dos países imperialistas entre aquela. Se somente com a votação da ONU conseguem barrar o avanço de Kadafi, como apontava as declarações deste em 18/03, os imperialismos sairiam com o ganho de não ter que arcar com os custos de uma operação militar, e ao mesmo tempo reivindicariam para si os bônus de uma possível queda de Kadafi, usurpando o heróico combate e o sangue derramado do povo líbio.
As contradições de fundo que geraram a primavera árabe, não se fecharão, mesmo assim. Porém, se trataria de uma inflexão no processo de conformação de uma subjetividade revolucionária, única via capaz de recompor a confiança das massas árabes em suas próprias forças e avançar de maneira independente em suas demandas de fundo.

O papel das direções de notáveis dos conselhos líbios

Uma grande debilidade da resistência foi o caráter da sua direção, em sua ampla maioria constituída pelos “notáveis”, provenientes das classes médias, empresários e ex-apoiadores do regime de Kadafi, querem levar a resistência para o beco sem saída da transição pactuada com as potências imperialistas. São estes os mesmos setores que frente ao avanço de Kadafi, ao invés de impulsionarem uma política de massificação da resistência e da entrada em cena da classe trabalhadora, reivindicam a intervenção imperialista “humanitária”, e a declaração da zona de exclusão aérea sustentada pelo imperialismo como única perspectiva.

O Conselho Nacional de Transição formado em 5 de março, e que atua acaudilhando a resistência com pretensões de se alçar como um governo provisório, agora reconhecido como interlocutor legítimo na última reunião da União Européia ocorrida em Bruxelas, é formado por figuras como Omar el Hariri, um dos primeiros aliados de Kadafi nos anos 60, enquanto também conta com a adesão do ex-ministro da Justiça do regime, Mustafá Abdel Jalil, além do até ontem embaixador de Kadafi na Índia e ex-ministro da economia, Ali Abdelaziz Al Issaoui. Não é preciso muito para perceber que estes setores, ao mesmo tempo em que cavalgam a resistência contra Kadafi tendo em mente o papel que cumprirão num próximo regime, também não se interessam que o movimento de resistência seja pautado pelos setores mais oprimidos e explorados da população, que hoje se dispõe a lutar até a morte.

Desta forma, os conselhos populares que foram tomados por alguns como o embrião de um duplo poder da resistência, ao estar alheio a um claro corte de classe, tem um caráter contraditório. São reminiscências do próprio processo dirigido por Kadafi nos anos 60. “Depois da independência da Líbia, em 1951, jamais houve partidos políticos. Durante a monarquia, toda a política girou em torno das tribos. Quando a revolução de Khadafi, em 1969, reformulou o papel político das tribos, elas tornaram-se guardiãs avalistas dos valores culturais e religiosos. Os partidos políticos também foram descartados. Entraram em cena os comitês populares e o congresso popular (...) Na retórica, sempre se falou de ’democracia direta’. Na realidade, os poucos ’vencedores’ eram parte da mesma burguesia de estado reacionária, fossem os reformistas liderados por Saif; os conservadores (fiéis ao Livro Verde de Khadafi); ou os tecnocratas (sempre de olho nos sumarentos negócios com empresas estrangeiras) ” [3]. Hoje, estes mesmos notáveis dos conselhos, em sua ampla maioria romperam com o regime de Kadafi, mas não com os seus interesses em manter seus privilégios. Em nenhum momento levantaram uma política independente, que colocasse a classe trabalhadora no centro da cena, levantando, por exemplo, a necessidade de colocar o controle dos ricos recursos energéticos da Líbia sob controle dos trabalhadores. Este caráter dos notáveis é um elemento fundamental que está por trás dos reveses sofridos recentemente pela resistência, a despeito da heróica ação do povo líbio. Superar estas direções, que foram as maiores defensoras da intervenção imperialista da ONU, é uma questão que se mostra urgente.

Abaixo Kadafi e a intervenção da ONU! Fora a o imperialismo da Líbia, do Magreb e Oriente Médio!

Como argumentamos acima, a intervenção imperialista da ONU nada tem de “humanitária”. Atende aos interesses do imperialismo de defender suas posições na região em sufocar e desviar a primavera árabe. A crise capitalista, gerada pelas burguesias imperialistas, no que depender da vontade dos imperialismos norte-americanos e da UE continuará sendo descarregada nas costas dos trabalhadores e dos povos do mundo, como se fez historicamente no Mageb e no Oriente Médio. Enquanto cinicamente dizem que intervém para garantir a democracia, os imperialismos que hoje intervém na Líbia seguem apoiando as mais reacionárias monarquias, como a da Arábia Saudita, que apesar de ocupar o Bahrein não está sendo alvo de nenhuma intervenção militar “humanitária” da ONU. Enquanto isso, os EUA seguem assassinando e oprimindo os povos do Iraque e do Afeganistão, e apoiando o Estado sionista de Israel. Até a véspera de sua queda sustentaram os regimes de ditadores como Mubarak, contra a vontade do povo e dos trabalhadores egípcios, enquanto agora buscam desviar e acabar com a primavera árabe. Sarkozy, inclusive, sustentou até o último minuto a ditadura de Ben Ali na Tunísia, e agora aponta suas armas para Líbia cinicamente em nome da “democracia”.
Por outro lado, as burguesias árabes da Liga das Nações Árabes demonstram uma vez mais sua submissão e impotência ao terem reivindicado a intervenção imperialista da ONU. Cabe aos trabalhadores e ao povo, e somente a eles, a potencialidade de transformar a queda da ditadura sangrenta de Kadafi em um avanço revolucionário no sentido da real emancipação dos povos árabes do julgo imperialista e das suas burguesias nacionais, que tanto as mais abertamente entreguistas, como as que se escondem sob discursos nacionalistas, terminam, como demonstra Kadafi, assassinando seu próprio povo quando este se levanta. Os notáveis de hoje, que já buscam estabelecer boas relações com os imperialismos interventores, serão os carrascos de amanhã, caso não sejam superados pelo exemplar combate dado pelos trabalhadores e pelo povo na Líbia. Portanto, rechaçamos a intervenção imperialista da ONU, e defendemos que os únicos aliados reais do povo líbio são os trabalhadores e os povos do Magreb e Oriente Médio em primeiro lugar, seguidos pelos trabalhadores e os povos de todo o mundo.

Chamamos a todas as organizações de esquerda, de trabalhadores, de juventude, de mulheres, movimentos sociais e sindicais a colocar em pé uma campanha que tenha como norte o fim da intervenção imperialista no Magreb e Oriente Médio, e em apoio à luta dos povos na primavera árabe.

[1“Khadafi volvió a ser el enemigo” – Página 12 – 18/03/11

[2Le Monde, 17/03/11

[3The tribes against the bunker, Asian Times – 26/02/11

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