Sexta 29 de Março de 2024

Cultura

Isadora Duncan, uma dançarina do futuro

29 Dec 2014 | Traduzido por Ana Carolina Sotratto Isadora Duncan considerava sua arte como um esforço para expressar, em gestos e movimentos, a verdade do seu ser. Desde o começo de sua vida, nada mais fez que dançar sua própria vida; quando criança dançava espontaneamente sobre coisas que cresciam a sua volta; adolescente, capturou as primeiras sensações trágicas, brutais e impiedosas do progresso esmagador da vida. Mais tarde, dançou sua luta com e pela vida.   |   comentários

Isadora Duncan considerava sua arte como um esforço para expressar, em gestos e movimentos, a verdade do seu ser. Desde o começo de sua vida, nada mais fez que dançar sua própria vida; quando criança dançava espontaneamente sobre coisas que cresciam a sua volta; adolescente, capturou as primeiras sensações trágicas, brutais e impiedosas do progresso esmagador da vida. Mais tarde, dançou sua luta com e pela (...)

Isadora Duncan concebia a dançarina do futuro como aquela “cujo corpo e alma tenham crescido tão harmonicamente juntos que a linguagem natural dessa alma se converteria no próprio movimento de seu corpo. Tal dançarina não pertencerá a nenhuma nação, mas sim a toda a humanidade. Não dançará como uma ninfa, uma fada ou uma mulher que pretende usar da dança para flertar ou seduzir” e sim como uma mulher em sua expressão mais alta e pura. Trará ao mundo a mensagem e os pensamentos de milhões de mulheres. A dançarina do futuro dançará a liberdade da mulher”.

Isadora falava da dançarina do futuro sem sequer saber que sua vida e obra transformariam para sempre a história da dança dando início a uma das primeiras rupturas com o ballet clássico (importante passo no desenvolvimento da dança moderna) deixando lições que não perderam sua importância até hoje.

Sua infância se deu no seio de uma família muito humilde. Junto a sua mãe e seus três irmãos, via-se constantemente obrigada a mudar-se por falta de dinheiro. A passagem de Isadora pela escola pública significou uma verdadeira tortura: sentindo-se obrigada a permanecer imóvel em uma cadeira, com o estômago vazio e os pés gelados nos sapatos húmidos. Evidenciando a brutal incompreensão do significado da infância na escola, Isadora segue aprendendo coisas inúteis. A nota dominante dessa fase foi um constante espírito de rebelião contra a estreiteza da sociedade e das limitações da vida. Como escreveu em seu livro Minha vida:” Não me lembro de nenhum sofrimento que tivera por causa da pobreza de minha casa. Essa pobreza nos parecia muito natural. Eu sofria somente na escola. Para uma criança sensível e orgulhosa, o sistema da escola pública era tão humilhante como o cárcere. Eu estava sempre em rebeldia.”

Para ela a verdadeira educação se realizava pelas noites, quando a mãe, que trabalhava dando aulas de música em domicílio, voltava para casa e tocava para seus filhos obras de Beethoven, Schumann, Schubert, Mozart ou Chopin, além de ler passagens de Shakespeare, Shelley, Keats ou Burns. Graças à sua mãe, sua infância estava impregnada de música e poesia.

Isadora, que desde pequena sentiu a paixão de dançar, com seis anos reuniu algumas crianças da vizinhança e sentou-se para ensinar-lhes os movimentos dos braços. Assim começou sua primeira escola de dança, que continuou aberta e chegou a ser muito conhecida entre as crianças do bairro. Aos dez anos abandonou em definitivo os estudos na escola, e se dedicou plenamente a dar aulas de dança com a ajuda de sua irmã, contando já com numerosas alunas, o que em muito contribuiu para o sustento de sua família.

Posteriormente, por recomendação de uma amiga da mãe, fez suas primeiras aulas de ballet clássico. Esse primeiro contato gerou uma rejeição profunda que a levou a deixar o estudo na terceira classe. Manter apenas as pontas dos dedos dos pés em sapatilhas de ponta, parecia feio e pouco natural. Ela sentiu que estes movimentos rígidos destruiriam seus sonhos. Sonhava com uma dança completamente diferente.

Daí por diante Isadora se dedicou a desenvolver seu estilo único de dança, viajando pelos Estados Unidos e Europa, em busca de oportunidades para desenvolver suas escolas e de espaços onde poderia mostrar sua arte. A princípio, passou por muitas dificuldades, uma vez que seu movimento tão diferente dos padrões da época e seu figurino ao dançar – com túnicas ou tecidos que cobriam apenas seu corpo nu- lhe valeram, em várias ocasiões, a rejeição. Sob essa circunstância, se viu a beira da indigência em alguns momentos por não conseguir os tão desejados contratos em teatros e salões.

Mas essa experiência de vida, suas sensibilidades e paixões, forjaram suas convicções mais profundas. Convicções que a levaram a questionar não só o estilo de dança nascido na corte e destinado séculos mais tarde a apreciação da mesma por parte dos “culturalmente ricos” (que apreciavam o ballet clássico) bem como a elite burguesa como um todo. Essa experiência também leva Isadora a simpatizar-se com a Revolução Russa de 1917, e até a apoiar fervorosamente algumas das medidas implementadas pelo governo dos sovietes, como a abolição do casamento.

Por sua história familiar e a profunda impressão que lhe causavam as injustiças das quais padeciam as mulheres, sendo essas reduzidas quase que a condição de escravas das leis do casamento em vigor no momento, Isadora se consagrou, desde muito jovem, à luta pela emancipação da mulher, contra o matrimônio e a favor do amor livre. Lutou pelo divórcio e pelo direito de que qualquer mulher pudesse ter quantos filhos desejasse.

Como ela mesma relata em sua autobiografia, sua vida teria sido outra se não tivesse passado por determinados acontecimentos que a marcaram profundamente.

Um desses eventos aconteceu em 1905, numa de suas primeiras viagens à Rússia. Nessa ocasião, o trem em que viajava chegou a São Petersburgo com doze horas de atraso por conta de uma tormenta de neve. Quando se dirigia ao hotel em que ia se hospedar, presenciou um horrível espetáculo: ” uma longa procissão que avançava a grande distância, ternos pretos, luto, homens inclinados e oprimidos, um após o outro carregando pesados fardos, que eram na verdade, caixões.” Eram operários que haviam sido fuzilados na véspera, cinco de janeiro de 1905, no Palácio do Inverno, quando se apresentaram perante ao czar para pedir auxílio em sua miséria e um pouco de pão.

A dançarina recordava assim esse momento: ”Eu assisti aquilo a alguma hora incerta da madrugada e me sentia cheia de horror. [...] As lágrimas escorriam pelo meu rosto e minhas bochechas congelavam, enquanto o cortejo triste e interminável desfilava diante de mim.[...] As lágrimas engasgaram minha garganta. E observava com infinita indignação os trabalhadores infelizes que carregavam sobre os ombros os mártires mortos”.[...]

E conclui: “se não houvesse presenciado aquilo, minha vida teria sido diferente. Ali, junto com aquele cortejo que parecia interminável; frente àquela tragédia, fiz a mim mesma o voto de consagrar minhas forças a serviço do povo e dos oprimidos” [...] Quão vã me pareceria minha arte, se não pudesse combater aquilo!”

Em sua estadia na Rússia, Isadora reafirmou o lado destrutivo e ao mesmo tempo revolucionário do seu estilo de dança frente ao ballet clássico, evidenciando que aquela era a expressão intrínseca da etiqueta czarista, e que a única esperança que teria para estabelecer na Rússia sua escola de dança (como expressão humana, maior e mais livre) já havia chegado até lá e era exatamente o trabalho de Stanislavsky.

Isadora continuou, portanto, seu caminho pela Europa e Estados Unidos procurando por um lugar para estabelecer sua escola, onde poderia enfim ensinar aquilo que ela chamava “Dança Futura”. Em 1916 foi a Buenos Aires onde dançou o hino do país vestindo apenas sua bandeira tentando simbolizar os sofrimentos da colônia e a liberdade de ver-se livre do tirano.

Já em 1917, de volta aos Estados Unidos, voltou a apresentar-se na Metropolitan Opera House. Até então, o lugar que mais teria marcado a vida de Isadora havia sido a Rússia; por isso, a memória dessas vivências, principalmente a Revolução Russa, a inspiraram para a dança daquela noite. Isadora dançou a Marsellesa com todo o verdadeiro espirito revolucionário que a inspirava. Também interpretou a Marcha Eslava que continha o hino do czar como que criando um espelho onde a humilhação causada pelos opressores foi aniquilada. A antítese e dissonância entre os gestos e música causou uma tempestade de fogo no público. Era raro em sua carreira que tantos movimentos desesperados e rebeldes surgissem juntos: ”com minha túnica vermelha eu dancei constantemente a revolução e chamei os oprimidos às armas.” [...] ”Naquela noite dancei a Revolução Russa com alegria feroz. Meu coração estava explodindo dentro do peito por sentir a libertação de todos aqueles que morreram pela causa da humanidade”.

Isadora Duncan viu naquela Revolução e no germe daquele governo dos primeiros anos a realização de um sonho de uma humanidade nova, de uma dança nova, sem as limitações impostas pelo regime burguês. No momento de sua partida para URSS em 1921, com estas palavras Isadora conclui sua autobiografia:
“No caminho até a Rússia experimentei a sensação de que minha alma de desprendia de meu corpo, como depois da morte; sensação que estava justificada pelas razões da viagem. Havia entrado em outra esfera. Atrás de mim deixava para sempre todas as formas de vida europeia. Acredito, efetivamente, que o Estado ideal, imaginado por Platão, Carlos Marx e Lenin havia sido milagrosamente implantado na terra. Com toda a energia do meu ser, decepcionado em suas tentativas de realizar suas ideias artísticas na Europa, estava completamente disposta a ingressar no demônio ideal do comunismo. E não levava roupas.

Percebi que passaria o resto da minha vida com uma blusa de flanela vermelha, entre camaradas igualmente vestidos com simplicidade, cheios de amor fraternal. À medida que o navio avançava, olhava para trás com desprezo e piedade, recordando as velhas instituições e costumes dos burgueses europeus. Adiante eu seria uma camarada entre os camaradas e desenvolveria um vasto plano de trabalho para a regeneração da humanidade. Adeus, pois, a desigualdade, a injustiça e a brutalidade do velho mundo, que tornou impossível minha escola.

Quando, por último, chegou o navio, meu coração deu um salto de júbilo. É aqui o belo Novo Mundo que acaba de ser criado! [...] e eu entrava agora neste sonho, do qual minha obra e minha vida participariam com sua gloriosa promessa.”
“Adeus, Velho Mundo! Saúde para o Novo Mundo!”

Isadora Duncan, dançarina de um futuro a ser construído.

Isadora nasceu em 26de maio de 1877 em São Francisco, California (Estados Unidos) e faleceu em Niza em 14 de setembro de 1927. Sua estreia profissional foi em 1899, em Chicago. Alguns anos depois, ele começou a viajar pela Europa e nos Estados Unidos dando recitais de dança e criando escolas perto de Berlim em 1904, em Paris, em 1914, e Moscou em 1921.

Suas memórias terminam com a partida de Isadora da URSS em 1921. Em Moscou, a dançarina conheceu o poeta Sergei Yesenin, que depois de turnê pela Europa e Estados Unidos voltou para a Rússia. Logo se separam. Isadora volta para a França para viver em Nice. Yesenin se suicida em dezembro de 1925. Isadora morre em um acidente em 1927.

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