Quinta 28 de Março de 2024

Debates

Frente a falsas democracias, a tarefa de libertação do povo negro

05 Jul 2006 | Nesta edição abrimos as páginas do Jornal Palavra Operária para a publicação deste artigo da Mara, candidata a deputada estadual pela corrente operária do PSOL. Contra a demagogia do governo Lula com o movimento negro e contra as posições do Vice de Heloísa Helena que nega a necessidade de uma luta em defesa do povo negro, Mara defende um programa que em nossa visão ajuda a dar passos na importante tarefa de concretizar um programa revolucionário para a questão negra no Brasil. A publicação desse artigo se torna ainda mais importante por se tratarem de companheiros que, apesar de estarem no PSOL, se colocam em defesa de um programa classista e, mesmo com reduzidas forças, se negam a calar-se frente às necessárias críticas à Frente de Esquerda. Com isso, queremos contribuir para que se abra o debate sobre a necessidade de impulsionar uma ala classista na Frente de Esquerda para avançar concretamente nesse sentido em todo o país.   |   comentários

A partir da carta pública lançada no final de junho, “Todos têm direitos iguais na República Democrática” , assinado por mais de cem intelectuais e figuras públicas do país, contrários à lei de cotas raciais e ao Estatuto de Igualdade Racial, o tema voltou ao debate nacional, suscitando muita polêmica como tem sido desde a Conferência de Durban.

O que está por trás das “políticas universalistas”

Com argumentos já bastante utilizados desde que esse debate atingiu maiores proporções a burguesia branca e racista saiu enfurecida novamente, mostrando que não está disposta nem a deixar cair algumas migalhas das suas mesas. Seus filhos não podem perder algumas poucas cadeiras na universidade, há mais de século já reservadas para eles, a fim de formar os futuros administradores dos negócios da burguesia.

Se os editoriais e as colunas dos jornais mais importantes do país não surpreendem por sua posição, que não destoa da sua permanente defesa da dominação económica e social da burguesia branca, chamam atenção as posições sobre o tema de alguns intelectuais considerados de esquerda. Ainda que historicamente, a esquerda no Brasil tem se mostrado incapaz (ou indisposta) em responder programaticamente à questão do povo negro ’ tema que vemos como um desafio fundamental para o desenvolvimento da revolução no Brasil e sobre o qual estamos buscando nos debruçar seriamente ’, as análises de alguns intelectuais da esquerda vão além dessa debilidade: eles chegam a negar a existência da desigualdade racial no país!

Para Mario Maestri, em artigo recente , os dados sobre a desigualdade racial ’ o que ele chama de “racialização da sociedade brasileira” ’ são fruto de “sandice ideológica apoiada em manipulação rústica das estatísticas” . E termina condenando o movimento negro; parece estar perplexo porque, segundo ele, “consolida-se a proposta de luta social isolada pela divisão racial da miséria, em vez de combate unitário pelos amplos e gerais direitos da população” . E como os “amplos e gerais direitos” ainda não são possíveis a todos ’ e nunca serão na sociedade capitalista ’ deixa-se de lado os resultados materiais da opressão histórica ao povo negro. Lembra a velha história de “esperar o bolo crescer” ... Aí, quem está comendo espera dizendo e escrevendo o que quiser; quem está com fome, vai ter mesmo que se mobilizar...

César Benjamin também deixou sua “contribuição” ao debate. Hoje candidato a vice-presidente pela Frente de Esquerda, com Heloísa Helena, e na época, membro da coordenação nacional do Movimento Consulta Popular, ele escreveu dois artigos, publicados na revista Caros Amigos em 2002 . No primeiro artigo, ele se apóia nas descobertas da genética, fundamentando a inexistência das raças biologicamente. Sim, disso já sabemos. A luta negra se fundamenta pela existência da opressão e de desigualdades criadas historicamente e não foram poucos os intelectuais e militantes negros que já desenvolveram a definição do racismo como construção social, que o conceito de raças ’ e a existência de raças superiores e inferiores ’ não se sustenta biologicamente, mas foi um pilar ideológico da opressão ao povo negro. Ao longo desses séculos, a ideologia da superioridade branca esteve ligada a uma realidade concreta, em que os negros foram materialmente prejudicados. As demandas do povo negro têm origem nesse processo histórico de exploração e opressão.

Os baixos salários, alto índice de desemprego, portas fechadas na universidade, violência policial de extermínio, tráfico de mulheres, política de esterilização das mulheres negras, para falar somente de alguns dos principais aspectos da realidade dos negros, viram meras criações para Benjamin .

Toda a materialidade dos dados sobre a desigualdade racial fica de lado, porque para Benjamin “não somos nem brancos, nem negros ’ somos mestiços” . Em pleno século XXI ainda nos deparamos em debates da esquerda com as marcas de Gilberto Freyre. Justamente quando uma luta por demandas do povo negro volta a incomodar a burguesia branca, teremos que discutir novamente a farsa da “democracia racial” ?

Construímos a riqueza do país por séculos. Não nos contentamos com migalhas.
Nós não acreditamos que a opressão ao povo negro possa deixar de existir nos marcos do capitalismo. A riqueza produzida por mãos negras ao longo do sistema colonial garantiu a acumulação primitiva para o desenvolvimento posterior do capitalismo no país. Quando a escravidão já não condizia com as necessidades desse desenvolvimento, a falsa “abolição” é assinada, adota-se o trabalho assalariado, promovendo a vinda de imigrantes brancos e relegando os negros ao desemprego e aos trabalhos mais precários e informais. Esse último movimento esteve ligado à política de embranquecimento, que teve até estudiosos dedicados a calcular quando o país deixaria de ter negros em sua população.

No Brasil, a transição da ditadura para a democracia burguesa, que se deu de forma gradual e pactuada, não garantiu nenhuma mudança na situação económica, política e social do povo negro e deixa cada vez mais evidente seu desinteresse e incapacidade de responder aos problemas mais estruturais do nosso povo.

Como um exemplo, a Constituição de 1988 reconhece às comunidades remanescentes de quilombos o direito à titulação definitiva de suas terras. Já se passaram quase vinte anos e o direito não se tornou realidade para a maioria dos quilombolas em todo o país.

A democracia burguesa só poderá, no máximo, fazer algumas concessões ao povo negro buscando impedir que nossas bandeiras avancem para problemas mais estruturais e o questionamento do próprio regime. Não temos ilusões de que os políticos burgueses estejam dispostos a mexer na estrutura da desigualdade racial do país, pois para isso, seria necessário entrar em choque com os interesses da burguesia branca, da qual fazem parte e estão ligados umbilicalmente.

O governo Lula e o PT, partido que fincou pé em importantes setores do movimento negro do país, evidenciam mais uma grande contradição: um ano depois de promover o Ano da Promoção da Igualdade Racial, a ameaça de recuo dos projetos tramitando na Câmara e no Senado coloca em evidência a inexistência de comprometimento desse governo com o povo negro, apesar de conseguir manter fortes esperanças e ilusões em setores do movimento negro. Setores do PT pressionam e cogita-se que os projetos com critérios raciais passem a “critérios sociais” . Segundo Tarso Genro, ministro das Relações Institucionais do governo Lula, será “uma política democrática que não suscita nenhuma questão racial” . Mais uma vez, eles nos falam de “política democrática” que não tem lugar para o povo negro.

E tudo isso quando se tratam ainda de migalhas das migalhas! A política de cotas proposta ainda manterá milhões de jovens negros fora da universidade; o atendimento médico referente a doenças que atingem os negros seguirão sob as precárias condições da saúde pública. Somente pelas ações afirmativas não se dará fim às desigualdades raciais no país. A esperada “inclusão” dentro desse sistema é um utopia. A partir das mínimas demandas levantadas, temos que seguir por muito mais.

“A sociedade socialista não será construída sobre povos subjugados, mas de povos livres”

Como já afirmamos acima, não temos nenhuma ilusão que as desigualdades raciais possam ser destruídas nos marcos da dominação burguesa. No entanto, essa afirmação tem sido base há anos para setores da esquerda que colocam as demandas do nosso povo sempre para depois e como questões que serão respondidas automaticamente com a tomada do poder pelo proletariado, como num passe de mágica. Ao mesmo tempo em que essa postura é uma traição à luta negra, é ainda um grande obstáculo à própria revolução no país: sem um programa para a questão negra e a mobilização do povo negro, é impossível o triunfo da revolução e a edificação da sociedade socialista.

Ao contrário disso, os marxistas revolucionários devem estar prontos a fazer todos os esforços em defesa das demandas específicas do povo negro.

Tratar a questão negra com a seriedade necessária, um desafio que os marxistas revolucionários devem tomar, passa por entender que as demandas do nosso povo, além de não terem sido atendidas com a falsa abolição da escravatura e a igualdade formal da chamada “República Democrática” , também não podem ser completamente postergadas ao futuro, como mágicas da revolução socialista. A libertação do povo negro não será produto automático da tomada do poder. É necessário avançar para um programa que dê conta das demandas históricas do povo negro, desde as reivindicações mínimas, passando pelos problemas mais estruturais e pelo direito à auto-determinação, se desejada pelo povo negro, ligadas à tarefa do conjunto do proletariado de destruir a propriedade privada e colocar abaixo o Estado burguês.

A Frente de Esquerda, composta pelo PSOL, PSTU e PCB, deveria levantar um programa conseqüente, dando conta das demandas do nosso povo. Colocamos a candidatura da Corrente Operária a serviço de discutir e levantar um programa que impulsione e potencialize as lutas e a organização do povo negro no Brasil ligado às tarefas do proletariado pelo fim da exploração capitalista.

Nesse momento em que o debate se ampliou nacionalmente temos que colocar forças para mobilizar milhares de negros e negros, para discutir e lutar não somente pelos projetos que tramitam na Câmara e no Senado, mas por muito mais. Daríamos um passo muito importante, liberando forças do nosso povo historicamente oprimido. Nossa organização política como negros e negras deve cumprir um papel fundamental. Ao contrário da vergonhosa afirmação de Benjamin de que “aqui, mais do que em qualquer outro lugar, a tentativa de constituir uma identidade baseada na ”˜raça”™ é especialmente reacionária” , a auto-afirmação dos negros articulada principalmente a partir de iniciativas do movimento negro é parte fundamental da nossa tomada de consciência como sujeitos políticos. Como escreveu Trotsky: “A sociedade socialista não será construída sobre povos subjugados, mas de povos livres” . O avanço na consciência política do povo negro é um grande passo revolucionário. Os negros e negras marxistas temos em nossas mãos a tarefa da libertação do nosso povo ligada a tarefa de cumprir um papel central na luta pela revolução socialista.

Lutemos pela incorporação efetiva dos negros e negras ao trabalho com direitos e salários iguais; pelo direito à sindicalização! Por um salário mínimo que garanta o sustento de uma família (com referência nos cálculos do DIEESE, em torno de R$ 1600,00)! Punição às empresas que não contratam trabalhadores negros ou mantém diferenças salariais entre negros e brancos! Organizar campanhas anti-racismo nos locais de trabalho e estudo! Pela dissolução da polícia reacionária e racista que extermina nosso povo! A segurança deve estar nas mãos dos trabalhadores e do povo! Pelo direito à terra para as comunidades quilombolas! Por moradias com estrutura! Pelo acesso e permanência dos estudantes negros na universidade pública! Universidade pública para estudantes de escolas públicas, cotas raciais proporcionais aos índices de cada estado até que todos tenham acesso à universidade pública! Punição aos responsáveis pelo tráfico de mulheres e escravidão sexual! Por atendimento público que atenda às necessidades específicas de saúde do povo negro! Liberdade de expressão para as religiões e manifestações culturais de matriz africana! Lutemos pela retirada imediata das tropas brasileiras no Haiti!

“Nós devemos dizer aos negros conscientes que eles estão convocados pelo desenvolvimento histórico para se tornar a vanguarda da classe trabalhadora.” Leon Trotsky

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