Sábado 20 de Abril de 2024

Economia

Fim do “QE” do Federal Reserve: uma economia mundial dependente do narcótico?

31 Oct 2014   |   comentários

Neste último 29 de outubro, a presidente do Federal Reserve (Fed, o Banco Central dos EUA), Janet Yellen, anunciou o fim do maior programa de estímulo financeiro da história dos EUA, o “QE” (“quantitative easing”, ou expansão quantitativa), um programa de compra de ativos financeiros por parte do tesouro norte-americano através da emissão de dólares injetados no sistema (...)

Neste último 29 de outubro, a presidente do Federal Reserve (Fed, o Banco Central dos EUA), Janet Yellen, anunciou o fim do maior programa de estímulo financeiro da história dos EUA, o “QE” (“quantitative easing”, ou expansão quantitativa), um programa de compra de ativos financeiros por parte do tesouro norte-americano através da emissão de dólares injetados no sistema bancário.

Esta política de criação e emissão massiva de dólares, a serviço dos bancos e monopólios imperialistas, conteve impactos imediatos da crise, dando origem a uma atmosfera de “liquidez fácil” no mundo todo, há 7 anos imerso na crise econômica desatada em 2008. Em síntese, significou que fluxos massivos de capitais se transferiram das potências centrais para os países dependentes e semicoloniais (os “emergentes”), financiando projetos de infraestrutura e o investimento empresarial, assim como o consumo pelo crédito.

Para os Estados Unidos, era já claro que este programa não continuaria por muito tempo: o endividamento do tesouro americano trazia o perigo da inflação dos preços por conta da frenética impressão de moeda. O objetivo do Fed era impulsionar a economia norte-americana a restabelecer uma taxa estável de desemprego abaixo dos 7,6%, recuperando parte dos postos de trabalho eliminados pela recessão. Com o aumento do PIB dos EUA nos últimos quatro trimestres de 2,6% (e um crescimento de 3,5% no terceiro trimestre de 2014, acima do projetado pelo FMI), o montante de dólares injetado na economia diminuíra gradualmente, passando de US$85 bilhões mensais quando arrancou o programa, para US$15 bilhões em setembro.

A dependência dos países periféricos frente ao QE
Nos países da periferia, o fluxo excessivo de capitais baratos gerou uma dependência crescente desses países diante das sucessivas rodadas da “expansão quantitativa”. A alta emissão de dólares fazia com que a moeda norte-americana estivesse desvalorizada, o que tornava o preço das matérias-primas mais baixo, auxiliando o boom da exportação de commodities que foi a base do ciclo de crescimento dos últimos anos de países como Brasil, Rússia, Chile, Argentina e boa parte da América Latina.

O fim da política financeira do Fed significa uma automática revalorização do dólar, elevando os preços das commodities, o que, numa situação de estancamento da demanda chinesa por matérias-primas e de recessão na União Européia, obriga as economias primárias a reduzirem os preços desses produtos para continuar vendendo, reduzindo também a receita. Mas não são só esses efeitos. Com o aumento da taxa de juros nas economias centrais, há uma tendência de “retorno” de capitais dos países “emergentes” para aquelas. Um aumento mais agressivo dessas taxas nos EUA, por exemplo, tornaria mais volátil a saída de quantidades massivas de capitais, cuja entrada havia sido outro pilar do ciclo de crescimento dos países periféricos na década de 2000.

A queda no preço do petróleo

De junho para cá, o preço do barril de petróleo diminuiu US$115 para US$86, uma redução de quase 25%. Se os preços se mantêm neste patamar, a conta dos consumidores de petróleo diminuirá US$1 trilhão por ano (que sairá da renda dos exportadores, uma transferência de 0,5% PIB mundial). A queda do consumo mundial, pelo estancamento chinês e uma maior eficiência energética nos EUA e na Europa, soma-se a uma maior produção, na Líbia e no Iraque (mesmo em meio à guerra contra o Estado Islâmico) e a força do dólar provocando uma baixa nos preços.

Isto preocupa os países de renda petrolífera, que as utilizam para subsidiar serviços essenciais à população e financiar seus investimentos em infraestrutura, além de que uma redução nas receitas impacta politicamente em sua influência internacional. A ajuda que o Irã e a Rússia prestam ao regime de Assad na Síria, e que o auxílio bilionário que a Arábia Saudita presta à ditadura militar no Egito dependem altamente do petróleo.

Os estímulos do Fed, incapazes de restaurar a economia americana ao nível do pré-crise

Mesmo com a agressividade desse plano, a própria economia dos Estados Unidos não se recuperou aos níveis anteriores a 2008. Apesar de ter diminuído a taxa oficial de desemprego para níveis próximos aos 7,6% com o crescimento dos últimos trimestres, o desemprego se encontra muito acima dos 5% registrados no início da crise. No total, a recessão eliminou 8,7 milhões de postos de trabalho, dos quais apenas 5 milhões foram restaurados. O nível do consumo é hoje ainda 0,7% menor do que em 2007, e a venda de automóveis, um dos motores da recuperação, apenas retornou ao nível de 2008. Desde o ponto de vista da renda per capita, o PIB de finais de 2012 seguia 1,5% abaixo do nível pré-crise. Perdendo US$16 trilhões de dólares desde o início da recessão, pode-se dizer que os Estados Unidos, depois de todas as rodadas de flexibilização quantitativa, não chegou ainda ao nível da economia de 2007.

A crise em potencial dos títulos da dívida

Para além disso, o Fed acumulou um problema a mais: como livrar-se de um montante de títulos da dívida que chega a US$4 trilhões (antes do QE, a dívida do tesouro era de apenas US$1 trilhão)? Pelos próximos anos, o Fed terá o desafio de encontrar um comprador para os US$3 trilhões de dívidas excedentes. Os prováveis compradores são os mesmos de quem o governo norte-americano comprou esses títulos: os próprios bancos, que lucraram trilhões de dólares com o programa, enquanto as massas perderam empregos e viram deteriorados seus direitos sociais.

A percepção de que os grandes ganhadores do programa de estímulos foram os grandes financistas, enquanto a população foi quem perdeu, não remove a situação de desconforto em relação à administração Obama. Esse descontentamento não derivou apenas no movimento Occupy Wall Street, mas também em importantes conflitos operários nas redes de fast-food, e a emergência de rebeliões do povo negro contra a repressão policial, como com o assassinato de Mike Davis em Ferguson, no estado do Missouri.

De repente, os "mercados" estão despertando para a dura realidade que o narcótico que manteve a economia mundial nos últimos cinco anos e meio (desde a bancarrota do Lehman Brothers) poderia estar terminando sem que as maiores economias mundiais tenham recuperado seu nível anterior à crise, e os “emergentes” estejam perdendo suas condições de crescimento. Mesmo com trilhões injetados no sistema bancários, os EUA não pode compensar ainda o fraco crescimento dos últimos anos e ainda não cria condições para reconduzir a economia mundial para fora da crise. O aumento das dívidas nos “emergentes”, o fim da explosão do crédito e a crescente incapacidade da China para atuar como força estabilizadora poderá reverter a débil recuperação proporcionada pelas medidas monetárias do Fed.

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