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Cultura

Fahrenheit 11/9: crítica mordaz, saída conservadora

10 Sep 2004   |   comentários

Desde seu lançamento Fahrenheit 11/9 tem gerado polêmica. Boicotado pela sua própria distribuidora, o documentário de Michael Moore fez barulho em Hollywood e sucesso no Festival de Cannes, e tem atraído multidões aos cinemas de diversos países.

A primeira cena de Fahrenheit 11/9 é extremamente emblemática. Nela se mostra Al Gore, candidato democrata nas eleições presidenciais americanas de 2000, comemorando sua suposta vitória junto com artistas consagrados, com direito a fogos de artifícios e todas as parafernálias pirotécnicas dignas do encerramento de uma tarde na Disneylândia. Em meio a isso, Michael Moore lança a pergunta: “Será que isso foi um sonho?” . Este questionamento resume boa parte do posicionamento político de Moore, e anuncia o que está por vir nas próximas horas do documentário.

Fahrenheit 11/9 é um documentário bastante rico, no qual se resgata toda a trajetória da presidência de Bush: aborda desde a manipulação nas eleições de 2000 que terminam por instituí-lo como presidente, as mentiras usadas pelos falcões de Washington para conseguir realizar a ofensiva imperialista no Iraque, a histeria em torno de possíveis ataques terroristas criada pelo governo, até a manipulação na cobertura da guerra por parte da mídia.

Assim como a situação internacional atual, o documentário é repleto de imensas contradições. Sem dúvida expressa e dialoga com um sentimento de repúdio para com os falcões de Washington e sua política militarista de rapina. Nas salas de cinema em que é exibido é comum ouvir vaias do público dirigidas a Bush e aos seus aliados. É nessas vaias que se mostra o verdadeiro encanto de Fahrenheit 11/9, que mais do que nas sequências bem editadas, ou nos jogos de câmera, se desprende do fato de que o filme é um veículo para que volte a se expressar, nos mais diversos países, o sentimento anti-guerra que uniu as massas nas ruas em 2003.

O discurso “anti-Bush” é construído através de uma narrativa ágil e eficaz, embora traga como pano de fundo argumentos que são, a bem da verdade, conservadores. Afinal, Moore não tem quaisquer concepções de esquerda, sendo antes de tudo um típico representante das posições demagógicas dos democratas. Ainda que as críticas feitas em Fahrenheit 11/9 sejam ácidas na forma, o seu conteúdo político mais essencial se baseia em “tirar Bush da presidência pela via eleitoral” , mostrando que a resposta de Moore para as contradições políticas dos EUA é a eleição de John Kerry, candidato democrata. Nisso se revela um problema que na verdade permeia todo o seu discurso: que Moore levanta com maestria as principais contradições da política norte-americana, mas que as respostas que oferece ficam muito aquém de resolver os problemas que aponta, o que estreita os horizontes de sua crítica. Quanto mais fortes as denúncias contra Bush e seu séquito, mais se torna chocante a ausência da crítica aos democratas, que raramente são citados diretamente, e quando o são é em geral em tom apologético.

Assim, Fahrenheit 11/9 não podia estrear em melhor hora para os democratas. Trata-se da melhor propaganda política que estes poderiam ter em meio ao processo eleitoral enormemente polarizado para a presidência dos EUA.O filme realiza o trabalho ideológico que os democratas não podem fazer, canalizando a insatisfação dos americanos que se opõem à guerra para as urnas. O grande feito de Moore reside justamente aí, pois os democratas não poderiam ser tão ofensivos em sua crítica à guerra, para a qual votaram a favor, já que isso poderia se reverter em aumento da pressão exercida por setores da população norte-americana para que os EUA abandonassem de vez a ocupação do Iraque, coisa que nenhum setor da burguesia imperialista norte-americana deseja. Portanto, se por um lado as manifestações que reuniram 250 mil pessoas em Nova York, lideradas pelo próprio Moore em protesto contra Bush e a Convenção Republicana que se iniciaria no dia seguinte, favorecem os resultados nas urnas em prol dos democratas, por outro o sentimento anti-guerra, ainda que de cunho pacifista, existente entre este setor é justamente um dos maiores temores deste partido.

Mas o que o documentário mostra de mais importante é algo que Moore retrata involuntariamente: a incapacidade que a burguesia imperialista americana tem, tanto os partidários dos republicanos quanto os democratas, para reverter o processo de crise dos EUA como potência hegemónica mundial, principal motivo que levou à deflagração da guerra do Iraque.

Muito além dos interesses imediatos colocados no Iraque, que obviamente têm sua importância, a guerra do Iraque desnudou a disputa entre os diversos países imperialistas para definir qual posição devem ocupar em um sistema mundial que está por ser redefinido. Essa necessidade dos distintos imperialismos e, sobretudo dos EUA, se impõe fruto da queda do muro de Berlim e do fim da União Soviética no início da década de 90, processos que fizeram com que os EUA cumprissem o papel de principal potência mundial, mas desta vez sem poder contar com uma outra potência que colaborasse para o estabelecimento de um equilíbrio relativamente estável, como o pactuado entre os EUA e a URSS anteriormente. A guerra do Iraque, portanto, é fruto de contradições estratégicas do sistema mundial, e ainda que Fahrenheit 11/9 não aborde a política dos neoconservadores de Washington partindo desta análise, levanta questionamentos suficientes para que se chegue a esta constatação. Isso tudo a despeito das posições de Moore, que aponta como grande problema da guerra a debilidade da coalizão formada internacionalmente, omitindo conscientemente a aliança feita entre os EUA e a Inglaterra.

Outro ponto interessante retratado em Fahrenheit 11/9 são as entrevistas feitas com os jovens da cidade de Flint, local onde nasceu Moore. Flint é um pequeno município do interior dos EUA, extremamente pobre, no qual os integrantes de patentes mais altas do exército norte-americano percorrem diariamente as ruas para oferecer aos jovens proletários um “emprego” como soldados a serem enviados para a guerra do Iraque. Assim, torna-se claro como a burguesia imperialista utiliza os jovens proletários que não têm perspectiva no sistema capitalista como “carne de canhão” , nas guerras que realiza para garantir seus interesses económicos e políticos.

Moore, sinceramente preocupado com as mentiras utilizadas por Bush e seus falcões como pretexto para a guerra do Iraque, encerra seu documentário com outro questionamento: “Será que estas pessoas (jovens norte-americanos recrutado) acreditarão novamente em nós, quando as convocarmos para uma nova guerra?” Essa é a verdadeira preocupação de Moore, e dos setores que ele representa. Ou seja, que os próximos governantes dos EUA sejam mais hábeis para inventar mentiras mais difíceis de desmascarar, para conseguir que a juventude pobre norte-americana atenda aos seus chamados à guerra. Talvez seja por isso que o verdadeiro sentimento anti-guerra se manifeste apenas entre os que estão do outro lado das telas de cinema.

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