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Estado Espanhol: uma intervenção alemã quando a história desata um de seus aceleradores

16 Jul 2012   |   comentários

A dialética da história costuma concentrar num intervalo reduzido de tempo os segredos detalhados de sua marcha, e de como se fará seu andamento. A arte do marxismo está em combinar uma observação cuidadosa das variáveis da situação com um pensamento rápido, que se equivoque o menos possível e corrija a tempo os equívocos que surgirem. A situação espanhola nos fornece esse desafio de nos aproximarmos o máximo possível do que foi uma “grande reunião de matéria” no tempo. Antes mesmo da chegada da coluna dos mineiros das Astúrias, Palência, Aragão e León à capital madrilenha, um grandioso fato político na vida do Estado Espanhol e para o conjunto da situação internacional – pois pode marcar um ponto de inflexão, que generalize o conflito e a organização da juventude e das massas em torno de um novo referente, a classe operária, num país em que a burguesia internacional concorda que “decidirá o destino do euro” – as bases estavam sendo fundadas para um novo ataque de Rajoy, o maior de um governo burguês ao orçamento público na história pós-franquista (65 bilhões euros em corte de gastos, que refletiremos abaixo), que explicava suas razões se reportando à última cúpula europeia e à conclusão de que “não há outro remédio do que este”.

Um tabuleiro espanhol para o antagonismo germano-ianque

Como vínhamos escrevendo, o novo politicamente que se deu na décima-nona “Cúpula de Emergência” da União Europeia é que pela primeira vez que uma frente de intervenção “anti-Merkel” na política europeia, sustentada pelos EUA, entrou em cena com certo poder de negociação (o bloco Hollande-Monti-Rajoy, representando França, Itália e Espanha), em que ambos os blocos, com as mesmas opiniões sobre o despejo da crise sobre os trabalhadores e o povo pobre, saíram com medidas de curto prazo que possibilitavam dissociar o resgate dos bancos do endividamento estatal [1]. Merkel havia disposto, de maneira nebulosa, que a desincumbência de alguns Estados como a Espanha (para quem a chanceler não pode se dar o luxo de uma política de “austeridade ortodoxa” como fez com a Grécia, sendo a Espanha a quarta economia da zona do euro, e sem a qual não “existe” euro) como garantidores do empréstimo entregue aos bancos se faria com o condicionante da criação de uma supervisão europeia do sistema bancário dos países do euro – a chamada “união bancária”. Embora os prazos desta implementação não fossem bem estabelecidos – disse-se que até o final do ano haveria “esboços” desse projeto – Merkel deixava transparecer que a Alemanha luta contra o relógio para não arcar com os custos da reestruturação do sistema financeiro, nisso, em oposição tendencial aos EUA. Essa relação antagônica entre as duas potências continua a marcar os passos estratégicos de cada momento chave das respostas imperialistas à crise.

Para isso, seria necessário “renunciar” a posições imediatas – a continuidade sem distinção da política de austeridade, sem medir o “calibre” dos Estados em jogo – para ter as mãos livres para conseguir seus objetivos com outros métodos: o movimento de maior amplitude, a supervisão bancária dirigida pelo BCE (Alemanha), para dar passos no caminho de se apoderar de frações das economias da zona do euro. O antagonismo tendencial entre EUA e Alemanha passa por isso: a oportunidade estratégica que se abre, com contradições e em distintas condições, para ambas as potências assegurarem melhores posições dentro da crise econômica e deglutindo o que puderem com seus capitais as economias devastadas. Com limitações a ambos: os próprios efeitos da crise. Como escreve Paula Bach, para a Alemanha, a política de converter em “terra arrasada” o restante dos países da zona do euro (em maior medida os países periféricos) assegurando a absorção de porções importantes dessas economias, se torna explosiva nas condições atuais, e dificilmente poderá continuar como foi até agora. Entretanto, trouxe réditos importantes para o país durante a crise. Nos últimos meses, a economia alemã se transformou em um “destino seguro” para o capital de toda a Europa, em busca de estabilidade e risco zero. A 9/7, enquanto corriam notícias de que mais de 200 bilhões de euros deixaram os bancos espanhóis e volumes importantes deixaram Grécia e Portugal, quando o tesouro alemão colocou em leilão papéis de sua divida, a procura foi tão intensa que a taxa de juros que paga como prêmio ao investidor, por apostar na capacidade do país de o compensar, atingiu uma taxa negativa: -0,3% (contra 7% que paga a 4ª economia da zona, Espanha). Em retrospectiva, a crise vem garantindo à Alemanha um financiamento não apenas sem custos ao Estado, mas em que a Alemanha devolve menos do que tomou emprestado (situação similar à de países como França, Holanda, Áustria e Finlândia, que se financiaram a juros negativos nessa semana [2]), algo inédito nos últimos 70 anos, estando os investidores dispostos a pagar para deixar seu dinheiro em local “seguro” (categoria em que os países do chamado PIIGS não se encaixam). Para ter uma ideia dos efeitos disso, só em 2011, a estimativa é que Berlim economizou 20 bilhões de euros em juros que poderia ter de pagar para financiar sua dívida. Isso mostra as vantagens para Berlim de impor a austeridade aos demais países, de descarregar sobre os trabalhadores europeus a carga pelos montantes outorgados aos bancos privados, para reestruturação do sistema financeiro. O limite desta política apareceu na cúpula: é preciso medir o calibre de cada Estado a partir da lógica “austeridade para quem e ‘crescimento’ para quem?”, num cenário em que o Banco Central Europeu reduziu de 0,25% a 0% a remuneração dos bancos por depositar dinheiro em suas arcas (movimento para “incentivar” as entidades bancárias a outorgar crédito em lugar de especular os juros dos seus depósitos), e que o euro aponta a se desvalorizar frente ao dólar [3].

A Alemanha parece ensaiar movimentos para agravar a carga da dívida privada dos países de economia de peso na zona do euro, buscando sim as condições para que paguem suas dívidas (os 100 bilhões à disposição dos bancos espanhóis se concedem para que esses bancos possam fazer frente às dívidas com os credores alemães e franceses), mas ao mesmo tempo abrindo vias através de cortes orçamentários e de direitos, reestruturar essas economias a favor do capital alemão, instalando-se em postos econômicos importantes de países como Espanha e Itália. Isso a faria aproveitar a debilidade relativa na recuperação norte-americana com sua relocalização na Europa, às custas de outros proletariados, embora isso se dê com muito mais contradições do que calcula desde já.

Com esta base de cálculos, e discussões controversas entre os chefes de estado, Merkel teve de ceder no estrangulamento do Estado espanhol em troca do empréstimo, mas deu sinais de que colocaria Espanha e Itália, “vencedores” da cúpula, na “mesa de cirurgia” por outros meios. Os sintomas de que Mario Monti e Rajoy entenderam esta mensagem apareceram dias depois. Na Itália, Monti quebrou o artigo 18 na Constituição trabalhista do país, que praticamente inviabilizava as demissões, como prólogo ao projeto de deixar desempregados 300 mil funcionários públicos no espaço de dois anos, para cumprir com os acordos de déficit com um ajuste draconiano histórico: 26 bilhões de euros em programas de ajuste. Rajoy, com objetivos similares mas também pressionado pelos acordos do “resgate” da troika, tomava medidas semelhantes ao mesmo tempo, passando medidas voltadas ao aumento da jornada de trabalho dos funcionalismo, e cláusulas que buscavam assimilar o “regime de emprego privado” nos estatutos do serviço público, facilitando a demissão, amplamente divulgado nos meios burgueses. Assim saíam as “triunfantes” figuras italiana e espanhola, na semana seguinte à cúpula: como obedientes negociadores dos “jogos de submissão” exigidos pela Alemanha.

Por outros meios, um passo para os objetivos alemães na cúpula

A 10/7, a Alemanha tomou nova medida que se adequava a movimentos que visam impedir que os EUA possa se reerguer de sua debilitada recuperação às custas das posições alemãs na Europa, e que representam riscos à economia ianque: colocar os bancos espanhóis sob sua supervisão. A mídia burguesa trouxe à luz um “Memorando de Entendimento” associado ao resgate do sistema financeiro espanhol, com duras imposições por parte da Alemanha. O núcleo desse memorando estabelece que o conjunto do setor financeiro espanhol, incluído o Banco da Espanha (BC), fica de fato sob tutela do BCE (da Alemanha, portanto), que terá acesso aos dados confidenciais do sistema financeiro espanhol, exigindo que se pusesse em marcha as recomendações da Comissão Europeia pelo procedimento de déficit excessivo, ademais de “reformas estruturais”. A UE tirou os poderes de Luis de Guindos, ministro da Economia espanhol, o movimento de Merkel busca avançar sobre os bancos espanhóis, em troca de o Estado Espanhol não ser “diretamente” garantidor da compensação dos empréstimos. Em suma, a palavra alemã agora soará assim: "Os bancos espanhóis agora falarão alemão". Um salto no grau de intervenção depois da cúpula, em que Merkel cedia à pressão anti-austeridade sobre o Estado espanhol, para agora usá-lo no controle bancário. Com outros métodos, para o mesmo plano: pode se configurar num primeiro passo para a Alemanha tentar deglutir setores da economia espanhola, já que a perspectiva é que "deixem eventualmente de controlar filiais bancárias" e que o BCE defina política do governo espanhol para bancos podres (fechá-los).

O que vimos no dia seguinte, a 11/7, foi o apetite do “triunfante” de baixar a cabeça àquela que dobrava na cúpula: a Espanha, que já fora objeto de uma intervenção de “baixa intensidade” quando o BCE comprou dívida espanhola, é intervinda agora com fortes condições aos bancos e controle direto sobre a supervisão financeira, para que ganhe uma flexibilização do déficit (de 5.3% sobe para 6.3% até o final do ano). Todas as medidas tomadas, dentre as quais a mais controversa é o aumento do IVA (imposto sobre o consumo, de 8 para 21%, para todos os artigos básicos de consumo, mas também para os setores de entretenimento como cinema, teatro, exposições, museus, etc.), foram exigências dos “sócios europeus”. Além do aumento do IVA, haverá suspensão de pagamentos extras aos funcionários públicos (como o de Natal), corte dos dias livres do funcionalismo, redução do gasto com seguro-desemprego, cortes no orçamento das comunidades autônomas (espécie de “estados” na Espanha), ao passo em que se “impedirá que as grandes empresas se encarreguem das perdas”, tributando com medidas protecionistas em 10% os que tomarem serviços do estrangeiro.

Embora isso não queira dizer que não haja choques entre os países implicados na crise (e haverá choques, como prova a mesma cúpula europeia), a contradição entre as potências é de outra natureza menor do que a contradição entre os governos capitalistas e “seus” respectivos trabalhadores. Os representantes das burguesias italiana e espanhola demonstram que a classe dominante teme mais uma saída independente da classe trabalhadora em que a burguesia pague por sua crise do que ver na Alemanha a sua suserana. Rajoy, como Merkel e Monti, não tem comichões de inibição ao mostrar a cada sexta-feira quem deve passar fome para pagar pela crise bancária (que na Espanha é impagável: a dívida privada é 230% o tamanho de sua economia).

A classe operária começa a emergir como referente na cena espanhola

Com os avanços da Alemanha e a aquiescência relativa de seus pares, como Rajoy na Espanha, é forçoso ver que as distintas burguesias imperialistas podem se dar ao luxo de pactuar praticamente à luz do sol uma série ininterrupta de ataques históricos, com o maior cinismo, pelo atraso na entrada na cena política da classe operária como sua classe antagônica. Ainda não perdeu o controle da gestão da crise, em boa medida, porque a classe operária não se impõe como um acelerador histórico da explosão das contradições que os capitalistas apenas postergam com suas medidas anti-cíclicas, cada vez menos capazes de absorver os efeitos em função dos quais foram chamadas. Mas há limites para a promoção de golpes sem resposta por parte da classe atacada. Na Espanha hoje, entretanto, parece se dar o início de um marco distinto: no país do 15-M, alguns setores da classe operária mostram que a Espanha é também o país dos mineiros da Comuna das Astúrias em 1934, que foram também pioneiros na luta contra o franquismo nas grandes greves de 1962 que despertaram os operários espanhóis, e que agora pode ser a vanguarda que pode fazer um giro na situação política não só espanhola, mas dos rumos da crise.

E é uma Espanha diferente do ano passado: mobilizações e marchas estourando a todo momento nas principais cidades, como Madri, Barcelona, Sevilha. 62% dos espanhóis rechaça o pacote de ataques histórico que anunciou Rajoy. A própria marcha dos mineiros foi aclamada como o “exemplo a se seguir”, mesmo entre setores da juventude 15M, o que prognostica efeitos explosivos, num setor não controlado pela burocracia. Ainda que os mineiros levantem consignas que beneficiam o programa patronal - como a reativação das comarcas mineiras - é urgente para a burocracia sindical e a patronal desativar a mobilização mineira pelos efeitos que está tendo sobre a população, que começa a saudar os operários e seus métodos, já que começa a se instalar o lema "há que fazer como os mineiros". Se a burocracia é obrigada a entabular uma dinâmica maior de tensionamento com o governo por um aspecto do “instinto de preservação” (que ataca as posições da burocracia, diminuindo 20% seus subsídios), a luta dos mineiros pode ser realmente um ponto de inflexão na política nacional espanhola. Mas aí entra o seguinte aspecto: como Moyano operou na Argentina [4] - burocrata sindical da CGT que desativou a mobilização mais radicalizada dos caminhoneiros argentinos contra o governo kirchnerista – Toxo e Mendez, burocratas sindicais da CCOO e UGT, não tem desejo algum de cortejar o perigo que é dar curso às experiências operárias com referências que desde já se enfrentam com a polícia, chamam à unidade com as lutas de todo o país (como fez um dos mineiros ao concluir “La Marcha Negra” a Madri), experiências que vão contra os interesses daqueles que impediram sucessivamente no século XX que a classe operária tomasse o poder na Espanha na luta contra o franquismo. Espera e agem para que a classe operária não seja nas ruas mais do que é um comprimário na ópera: um cantor de pequenos papéis, seguido por um “tenor” cantante de árias sobre a “paz social”.

Calculados ou não os perigos dos “métodos” a se utilizar, a luta de classes é sempre um acelerador, e contém toda a contradição para a burocracia desencadear forças que podem ser incontroláveis. A 19J haverá manifestações em toda a Espanha para protestar contra os cortes (não à toa a burocracia, mesmo atacada, não convoca à greve geral, mesmo isolada). O sindicato dos funcionários públicos (CSF-I) convocará uma greve geral no funcionalismo em setembro (já houve manifestações dos funcionários contra a série de ajustes que sofrerão).

A burguesia espanhola parece dizer: “Sim. Minha situação é perigosa. Vejo que a meus pés se abre um abismo. Mas veremos quem cai primeiro nele. Acaso, antes de morrer eu, possa te lançar ao precipício, classe operária!”. A luta dos mineiros ilumina a noite espanhola e rouba aos capitalistas a mentira do “não há outro remédio”: provam que o há, e remédio de classe. Para os chefes da Europa, Alemanha à testa, o desencadear da luta de classes na Espanha seria um “acelerador histórico” contraproducente às suas investidas contra o tempo para que, unida a Rajoy em acabar com a crise o quanto antes (o que se vê no desespero dos ajustes), buscar abocanhar setores da economia europeia, contra este mesmo Rajoy. Os pactos das cúpulas europeias não serão os mesmos se o Regime de ’78 na Espanha não for mais o mesmo.

Os companheiros do Clase contra Clase, da Fração Trotskista no Estado Espanhol, através da agitação sobre a nacionalização de todas as minas sob controle operário, estiveram presentes na histórica marcha mineira para, junto as trabalhadores, buscar coordenar e unificar os setores em luta na Espanha com um plano de luta nacional contra os ataques da EU e uma estratégia para vencer. Devemos converter a luta mineira na ponta de lança para acabar com a política de contenção da burocracia sindical na CCOO e na UGT, que desde a exitosa greve geral do 29M não moveu um dedo, e que mostra toda a contradição de sua política, de ter de opor-se à degradação de seus privilégios e também ao avanço da classe operária na luta de classes. Há que auto-organizar-se com uma política independente dos patrões e do governo e através de uma greve geral unificar num plano único as batalhas contra todos os ataques a Rajoy.

Viva a luta dos mineiros espanhóis! Viva as mulheres e os homens do carvão!
Solidariedade internacionalista ativa com os mineiros!
Pela nacionalização sob controle operário de todas as minas e fundos do carvão!
Por uma greve geral em apoio aos mineiros e contra todos os ataques de Rajoy!

[1“Quando o diabo esconde o rabo”, http://www.ler-qi.org/spip.php?article3521.

[2O Tesouro francês conseguiu colocar em leilão a 9/7 4.1 bilhões de euros em títulos a três meses por juros negativos (- 0,005%). Uniu-se assim a um seleto clube em que já figuram Alemanha e Holanda, dentro da eurozona, e Suíça e Dinamarca, fora dela. Nisto está em que, logo que emitem dívida, devem devolver menos do que pediram emprestado. A Alemanha foi o primeiro país do euro a financiar-se gratuitamente. A esse grupo, uma das caras da economia bipolar da Europa imperialista, pertencem os parceiros da Alemanha no que concerne à exigência e apoio político para aplicação dos ajustes austeros nos país do euro.

[3A 12/7, a cotização do euro fechou a 1,22 dólar, a taxa de câmbio mais baixa entre as duas moedas em 2 anos. El Pais, http://economia.elpais.com/economia/2012/07/12/actualidad/1342122609_660164.html.

[4“Os dois dias que estremeceram o kirchnerismo”, http://www.cephs.blogspot.com.br/2012/06/os-dois-dias-que-estremeceram-o.html.

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