Sexta 29 de Março de 2024

Direitos Humanos

Entrevista com Felipe Scalisa, estudante da Faculdade de Medicina da USP e depoente na ALESP

17 Nov 2014 | O site Palavra Operária entrevistou Felipe Scalisa, 22, aluno do 3º ano da Faculdade de Medicina da USP, coordenador de cultura da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina e um dos depoentes da audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo para averiguar casos de violação de direitos humanos na FMUSP.   |   comentários

O site Palavra Operária entrevistou Felipe Scalisa, 22, aluno do 3º ano da Faculdade de Medicina da USP, coordenador de cultura da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina e um dos depoentes da audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo para averiguar casos de violação de direitos humanos na FMUSP.

Palavra Operária: O que motivou a fazer as denuncias na assembleia legislativa?

Felipe Scalisa: Sentimos muita dificuldade de tratar o tema de opressões internamente. As estruturas e as tradições estão muito naturalizadas e normalizadas na mentalidade dos alunos que participam das instituições estudantis citadas na audiência. A despeito dos discursos, das práticas e dos resultados ofenderem e discriminarem outras pessoas externamente, para eles a égide “participa quem quer” é suficiente para justificar toda a prática. Além disso, a faculdade, por razões complexas que vão desde o acesso à universidade até a hierarquia e o elitismo do sistema de saúde brasileiro (e aqui eu falo para além do SUS), vive um isolamento, de forma que facilmente se cria uma realidade paralela dentro da faculdade, o que dificulta ainda mais as discussões. Posto isso, certamente era o momento de expor todas as violações aos direitos humanos para a sociedade civil. O contraste interno se evidencia quando exposto, abrindo uma lacuna importante para a crítica. Tanto esse potencial reflexivo, quanto a premência do debate sob a midialização, nos fez ganhar maior apoio interno de setores importantes para avançar nas mudanças.

Palavra Operária: Como está sendo a repercussão na Faculdade de Medicina, você está sendo hostilizado por algum setor?

Felipe Scalisa: A repercussão é muito heterogênea, mas é possível classificar em 4 grupos. 1) Um número considerável de pessoas passaram a nos dar apoio público e a repensar com seriedade como a faculdade funciona. 2) Outras se estarreceram e aceitaram a necessidade de mudanças, mas não chegaram a declarar apoio direto aos coletivos, pois achavam que poderia haver outros meios que não a exposição externa para ensejar essas mudanças. 3) Há um grupo na faculdade que se opõe às agressões (principalmente aos abusos sexuais), mas renega a possibilidade da cultura interna da faculdade favorecer os agressores ou dela ser violenta em si. 4) Por fim, há aqueles que acham que tudo é mentira, incluindo as agressões, e que temos intenções políticas perversas em trazer isso à tona.

Não posso negar que os coletivos são muito hostilizados. Eu principalmente sou bastante personalizado e tenho dificuldades de promover um dialogo pessoal com muita gente que já me enxerga com estranhamento, principalmente por eu ter me oposto às estruturas da faculdade tão naturalizadas. Acredito também que a linguagem que eu utilizo, com bastante referência nas ciências humanas, não é muito comum por uma parte considerável dos outros estudantes de medicina, o que dificulta ainda mais o trabalho de identificação de problemas e, por conseguinte, de promover a mudança conjunta.

Palavra Operária: O que você acha que todo esse caso da Faculdade de Medicina diz sobre a face oculta da medicina no Brasil?

Felipe Scalisa: A faculdade de medicina não pode ser vista senão como metonímia do mundo. Temos de parar de achar os problemas da sociedade são desvios éticos pontuais. Nossa sociedade está permeada por estruturas corruptas nas quais os sujeitos entram e começam a reproduzir para poder fazer parte, para poder ser alguém ali dentro. A faculdade de medicina é igual, tendo inclusive fraternidades que se repetem em universidades norte-americanas. O que eu defendo, como tese, é que essas práticas que se consolidam como tradições e pelas quais uma boa parte é atraída servem como um instrumento de educação. A pessoa treina na atlética, por exemplo, e aprende a ser resiliente, a ser forte, a suportar assédio através da torcida rival ou mesmo dos colegas de turma (como a relatada prática da Pasta, a qual o Adriano Diogo não hesitou chamar de tortura) e a partir desse treinamento ela está apta a sofrer assédio no internato e na residência, onde as pessoas trabalham 70 horas semanais ganhando um tipo de bolsa e onde os direitos trabalhistas são muito mais frágeis. Acredito que a medicina hoje em dia ainda tem uma estrutura pseudo-militarizada, que aprova, no fundo, os resistentes. Há muitas pessoas tentando mudar esse paradigma da formação médica, pois assevera a noção de que os médicos são uma classe separada ou que são superiores aos outros cidadãos. No fundo, é desumanizante e prejudica a atuação do profissional no sistema de saúde. É certo que algumas pessoas entram na faculdade com uma mentalidade egoísta e não muito humanizada, mas me preocupa quando a própria instituição dá apoio a práticas que podem reafirmar esse tipo de pensamento. O papel da universidade, quando permeada por estudantes desse tipo, é no mínimo de reduzir os efeitos dessas personalidades.

Palavra Operária: O que você achou da campanha realizada pelos trabalhadores da usp contra os estupros e assédios? O que gostaria de falar para os trabalhadores?

Felipe Scalisa: Acho que a campanha dos trabalhadores da USP foi de importância simbólica fundamental. Uma contradição se eleva quando uma faculdade cujo predomínio social é de pessoas de famílias de elevada renda social é questionada pela base da mão de obra da universidade. Acredito que nenhum dos trabalhadores ou trabalhadoras tenha filhos ou parentes na faculdade de medicina, mas ainda sim não hesitam em dar apoio às vítimas e aos grupos que questionam estruturas opressoras. Certamente foi uma das imagens que mais me deixou feliz ao longo desse processo.

No texto “A face oculta da medicina”, eu conclamo a sociedade para entrar nesse debate sobre a formação médica e para questionar se essas práticas expostas na audiência pública são condizentes com o que se espera dos alunos da FMUSP. Sabemos que a faculdade, por toda a sua influência, é vitrine nacional e, por isso, esperamos sim que ela tenha vanguardismo na ciência médica, o que inclui, como nosso diretor expressou recentemente na campanha que ele propõe à faculdade, “os direitos humanos como uma questão de saúde”. Acredito que uma lição que os trabalhadores dão é que é direito deles sim dizer o que esperam da universidade e reivindicar mudanças. E essa é a mensagem que gostaria de deixar a eles: um singelo agradecimento.

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