Sábado 20 de Abril de 2024

Internacional

EUA e Cuba: da emenda Platt ao restabelecimento de relações

20 Dec 2014   |   comentários

“É um dever meu evitar, através da independência de Cuba, que os Estados Unidos se estendam (…) sobre outras terras de nossa América. Tudo o que fiz até agora e todo o que faça de agora em diante tem essa finalidade (…) Conheço o monstro porque já vivi em suas entranhas.”

“É um dever meu evitar, através da independência de Cuba, que os Estados Unidos se estendam (…) sobre outras terras de nossa América. Tudo o que fiz até agora e todo o que faça de agora em diante tem essa finalidade (…) Conheço o monstro porque já vivi em suas entranhas.”

Com essas palavras escritas pouco antes de morrer em 1895, José Martí alertava sobre o perigo que o imperialismo norteamericano nascente significava para as pretensões independentistas de Cuba e a vida de conjunto dos povos de Nossa América. O poeta e líder dos patriotas cubanos colocava claramente os EUA como um inimigo a se enfrentar: “Os povos da América são mais livres e prósperos a medida que se separam dos EUA. Jamais houve na América, da independência aos dias de hoje, assunto que demande mais sensatez, nem que obrigue mais vigilância, nem que peça exame mais claro e minucioso, que o convite que os potentes EUA, repletos de produtos invendáveis, e determinados a estender seus domínios na América, fazem às nações americanas de pode reduzido (…) A América espanhola pode salvar-se da tirania da Espanha e agora, depois de ver com olhos audazes seus antecedentes, causas e fatores do convite, cabe dizer que chegou a hora para a América espanhola de declarar sua segunda independência.”

Cuba teve que lidar com a intransigência do imperialismo ianque desde a luta pela independência ao fim do século XIX. Em uma provocação articulada pelos EUA, em 15 de fevereiro de 1898, uma explosão queima o porte de Havana. O encouraçado Maine enviado a costa cubana sem autorização das autoridades espanholas em cuba, é afundado com um saldo de 154 tripulantes e dois oficiais mortos. Sempre se suspeitou que a explosão havia sido provocada pelos próprios norteamericanos para contar com uma desculpa para invadir a ilha. A guerra de 1898 entre Espanha e EUA deixou como saldo uma derrota dos espanhóis e a conquista da independência formal de Cuba em 1902. Apenas uma anedota: um dos promotores da guerra nos EUA foi o magnata dos meios de comunicação William Randolph Hearst. Em 12 de junho de 1901, a Assembléia Constituinte cubana redigiria a Constituição com uma cláusula, a Emenda Platt, redigida pelo senador norteamericano Edward Platt, como garantia dos interesses norteamericanos na ilha.

Segundo a emenda: “Cuba reconhece o direito dos EUA de intervir em seus assuntos internos; sempre que o último país o considere necessário para a conservação da independência cubana, e para a manutenção de um governo adequado para a proteção da vida, propriedade e liberdade individual (…) Para colocar os EUA em condições de manter a independência de Cuba e proteger o povo da mesma, assim como em sua própria defesa, Cuba arrendará ou venderá terras aos EUA; destinadas ao estabelecimento de bases navais e à atividade carvoeira”. Desde então na ilha existe esse simbolo de neocolonialismo e das torturas e crimes contra a humanidade do estado imperial que é a base militar de Guantánamo. Sob esta cláusula, em 1906, convocados pelo presidente cubano Tomas Estrada Palma, os EUA intervém militarmente para impedir uma insurreição popular contra si mesmos.

A abolição da Emenda Platt foi o grito de guerra que deu origem ao movimento operário e estudantil cubanos e do nascente Partido Comunista de Cuba, fundado pelo grande revolucionário Julio Antonio Mella. Até a revolução de operários e camponeses em 1933 contra o ditador Gerardo Machado, apelidada de “burro com garras” devido a sua brutalidade, regeu a Emenda Platt que foi abolida pelo governo nacionalista de Ramón Grau San Martín, que viria a ser derrubado pelo sargento Fulgencio Batista, em serviço às elites cubanas e aos interesses norteamericanos.

Em 10 de março de 1952, Batista retoma o poder pela via de um golpe de Estado, conhecido como o madrugazo, para impedir a vitória eleitoral do partido ortodoxo, onde um jovem chamado Fidel Castro Ruiz era indicado na lista de deputados, o que despertava o temor no imperialismo e nas classes acomodadas de Cuba. Ainda que não tenham apoiado abertamente o golpe, a burguesia e o imperialismo nada fizeram para impedi-lo. Posteriormente, os EUA romperiam com Batista e reivindicariam a partir de sua imprensa os barbudos de Sierra Maestra que lutavam contra o ditador. A famosa capa da revista Time que apresenta os guerrilheiros do M26 como heróis da liberdade, dão testemunho das expectativas norte-americanas em relação ao movimento opositor a Batista em Cuba. Consumada a revolução em janeiro de 1959, a política imperialista viria a ser, junto a ação de operário e camponeses, o principal foco de radicalização da revolução cubana que ia para além dos seus objetivos democráticos originais e terminaria expropriando a burguesia e os proprietários de terras, dando origem ao primeiro e único até agora, Estado operário deformado da América Latina.

Dois seriam os momentos mais tensos das relações cubano-norteamericanas neste período: a invasão da Bahía de los Cochinos em abril de 1961 por forças contra revolucionárias compostas pelos seguidores de Batista e treinadas pela CIA, e a crise dos mísseis em outubro de 1962 que enfrentou o governo de John Fitzgerald Kennedy, com o governo de Fidel Castro e o Kremlin, encabeçado por Nikita Kruschov, que colocou misseis nucleares apontando aos EUA em território cubano.

Desde 1960, o imperialismo norte-americano exerce um bloqueio econômico criminoso contra a Ilha. A partir de 1962, o embargo foi total e muitas das debilidades do Estado cubano se explicam por essa politica criminosa que isolou Cuba do mundo e significou uma enorme carga e condições precárias para a vida do povo operário e camponês de Cuba. Desde então o perigo de invasões norte-americanas pendia como uma espada de Dámocles sobre o pescoço da revolução cubana. Em 1992, ao momento da queda da URSS, o bloqueio se tornou lei, com o proposito expresso segundo o Ato de Democracia Cubana (Cuban Democracy Act, em inglês), onde as sanções apareciam como passos que Cuba daria rumo “a democratização e mostraria mais respeito aos direitos humanos”. O objetivo estratégico era provocar a queda do regime cubano. Em 1996 se sancionou a Lei Burton-Helms que proibia expressamente a possibilidade de fazer negócios dentro da ilha ou com o governo de Cuba por parte dos cidadãos estado-unidenses. Foram os anos do chamado período especial, onde a austeridade levou Cuba a beira de uma asfixia econômica. Em 1999, o presidente Bill Clinton ampliou o embargo comercial proibindo às filiais estrangeiras de companhias estado-unidenses de comercializar com Cuba por valores superiores a US$ 700 mi anuais, sendo por isso a primeira lei transnacional do mundo. Contudo, em 2000 o próprio Clinton autorizou a venda de certos produtos humanitários a Cuba.

Foi nos tempos do Período Especial, quando sem a ajuda econômica das URSS e sem recursos energéticos, que a economia cubana esteve à beira de um colapso e a população viveu tempos de ansiedade e racionamento extremo de seus recursos, ao passo que o governo castrista começou a introduzir reformas que permitiram certo alivio na situação, que levaram a um giro maior a partir de 1997, quando se começaram a implementar reformas de abertura na economia que levaram a que Cuba preservasse inversões de capitais europeus e latino-americanos. Mais tarde, a partir do apoio econômico e energético do governo de Hugo Chávez na Venezuela, Cuba aprofundaria o caminho das reformas que hoje, sob o mando de Raúl Castro, dão o tom da política restauracionista da burocracia cubana. Até que em dezembro de 2014, os presidentes dos Estados Unidos e Cuba, Barack Obama e Raúl Castro, acordam melhorar as relações entre ambos os países e começa-se o início do levantamento do bloquei a Cuba por parte dos EUA.

A mudança de Fidel Castro por seu irmão Raúl operou um acelerador das tendencias restauracionistas produto do descalabro econômico geral na Ilha e os interesses que se forjaram sob seu mando já desde os tempos do Período Especial. Por outro lado, é evidente que a mudança de estratégia norte-americana sob o comando de Barack Obama fortalece a ala do imperialismo ianque que quer participar das oportunidades de negócios que oferece Cuba e constitui um sério golpe aos setores mais duros do exílio norte-americano na Florida, os gusanos, que eram o setor mais influente na política norte-americana sobre os assuntos cubanos. A nova política ianque pode dar ares a uma oposição interna que sob bandeiras democráticas busque acelerar a contra-revolução que liquide as conquistas que seguem em pé da revolução de 1959. Distanciado o perigo da invasão, a contra-revolução democrática sob o guarda-chuva do imperialismo é hoje um perigo latento para o futuro da revolução cubana. O papel do Papa Francisco vai no sentido de reforçar a política de uma contra-revolução democrática. A mesma tem um antecedente na viagem de 1998 de João Paulo II. Evidentemente com Joseph Ratzinger ao mando da Igreja, o papel da diplomacia vaticana não poderia ter o mesmo êxito.

A exigência do fim incondicional do bloqueio norte-americano segue estando na ordem do dia. Assim como também está a luta pela democracia dos conselhos de operários, camponeses e soldados, com plena liberdade para os partidos defensores das conquistas da revolução, é uma política para implementar a luta contra a burocracia privilegiada que hoje comanda uma política que fortalece a restauração das relações capitalistas e contra qualquer intenção de contra-revolução democrática burguesa impulsionada pelo imperialismo.

Como dizia Che Guevara, no imperialismo não se pode crer nem um pouquinho assim, nada (muito menos se ao seu lado se encontra a Igreja católica). A história de Cuba, e de toda a América Latina, dá mostras de sobra de que a ele não faltava razão.

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