Quarta 24 de Abril de 2024

Cultura

Dois dias, uma noite e o peso de um mundo

15 Feb 2015   |   comentários

O filme belga de Jean-Pierre e Luc Dardenne, “Dois dias, uma noite”, é um retrato doloroso e profundamente real de como opera o capitalismo em tempos de crise.

Indicado para o prêmio de Cannes e para o Oscar, o filme belga de Jean-Pierre e Luc Dardenne, “Dois dias, uma noite”, é um retrato doloroso e profundamente real de como opera o capitalismo em tempos de crise.

Sandra é uma operária de uma pequena célula produtiva, com apenas 17 trabalhadores. Ela é acometida por um dos mais frequentes e devastadores males de nossa sociedade, e que muito recorrentemente está associado às brutais condições de trabalho que temos que enfrentar: a depressão. Ela acaba de se submeter a um tratamento psiquiátrico, no qual recentemente recebeu o veredito de “curada”. Em uma “indústria médica” que opera em um molde bastante pautado pelos valores estabelecidos por uma sociedade de consumo em que as pessoas são julgadas de acordo com o quanto podem produzir, Sandra foi finalmente liberada de sua licença médica para retornar ao trabalho; na língua do capital, está “curada”, independentemente da extrema fragilidade em que a encontramos no filme – aliás, interpretada de forma brilhante por Marion Cotillard, cuja atuação rendeu ao filme sua indicação ao Oscar. Sua cura significa que pode voltar a gerar lucro, a vender seu trabalho. Que sua angustia já pode ser mantida sob relativo controle com alguns comprimidos de calmante por dia.

O capital é impessoal, e a sua regra é só uma: manter o lucro. Quando se depara com uma crise, portanto, sua reação é unânime: que os trabalhadores – apenas mais uma peça do processo produtivo – paguem pelos custos da crise. São peças sobressalentes que são cortadas da produção quando necessário. Enquanto Sandra, uma “peça defeituosa”, encontra-se afastada do trabalho por sua doença, seu supervisor direto, Jean-Marc, “descobre” que o trabalho que era realizado por 17 trabalhadores em sua unidade pode ser feito por 16. A condição para isso existe: que eles estejam desesperados a tal ponto pela insuficiência de seu salário que concordem unanimemente em trabalhar cerca de três horas extras por semana. Assim, aumentando um pouco mais a exploração de cada um – ao custo, talvez, de desgastar mais rápido essas “peças”, mas que poderão sem custo algum ser substituídas por “novas” –, pode-se cortar os custos de uma trabalhadora a mais. Jean-Marc ainda tem um outro diagnóstico sobre Sandra que fortalece seu desejo de dispensá-la da fábrica: uma trabalhadora adoecida que retorna ao posto já não é mais tão produtiva quanto antes. Essa dolorosa verdade, Sandra reconhece intimamente em suas conversas com o marido que tenta a ajudar de todas as formas. Sandra está fragilizada. Para o capital, não é um ser humano que, em suas palavras, quer “apenas trabalhar e se sustentar com seu salário”; ela é uma peça defeituosa. Como uma máquina velha que foi recauchutada, já não produz mais com tanta eficiência, já não gera mais o mesmo lucro de antes. Do ponto de vista da geração de lucro, mantê-la na produção é uma decisão irracional. A vida humana é sem sentido na lógica do lucro.

Dumont é o patrão responsável pela fábrica. Para ele, importa operacionalizar a crise de tal forma que os lucros se mantenham. Como é muito “generoso e democrático”, resolve deixar que seus empregados decidam como pagarão pela crise: ou Sandra é demitida, ou eles terão de abrir mão de seu bônus de mil Euros (aproximadamente R$3.225). Antes que Sandra retorne ao trabalho, é feita uma votação. Jean-Marc assedia e ameaça os colegas de Sandra para garantir seu objetivo de se livrar da “peça estragada”: se não for Sandra agora, será alguém outro amanhã. Alguns necessitam urgentemente do bônus, outros têm medo de perder o emprego, e votam, por 3 contra 13, pela demissão de Sandra.

A notícia cai como uma bomba sobre a mulher que acaba de conseguir dar os primeiros passos para se reerguer da depressão. Ela chora, sente-se um lixo, inútil, se vê tal como a vê seu patrão. Mas a necessidade da vida impele Sandra a lutar. Ela têm dois filhos pequenos para criar, e o salário de seu marido no restaurante onde trabalha não chega para as despesas. Sua amiga Juliette faz o possível para sustentar a amiga de pé, e convence Dumont a fazer uma nova votação, na segunda-feira, dessa vez secreta, para que os trabalhadores decidam: Sandra ou o bônus.

Essa é a situação do filme: em dois dias e uma noite, Sandra deve convencer pelo menos nove colegas a abrirem mão do bônus para que ela possa manter seu emprego. Querendo desistir o tempo todo, Sandra se sente, como diz a seu marido, “humilhada, como uma pedinte, como se estivesse roubando o dinheiro deles”. É assim que os patrões fazem com os trabalhadores: dividem para dominar. A inteligente manobra de Dumont e Jean-Marc é fazer com que os colegas de Sandra a vejam como a culpada pela retirada do bônus, quando a verdade é que são eles que estão despejando sobre os peões os custos da crise para que possam manter sua vida de luxo e privilégios, sustentada sobre a exploração do trabalho de Sandra e seus colegas, que dependem de seu salário e do bônus para pagar as despesas mais elementares, como as contas atrasadas. Sandra, o tempo todo, repete com um desespero contido e angustiado a seus colegas “não fui eu que decidi que deve ser meu emprego ou o bônus”; “nem eu”, retruca um deles. Ambos estão certos.

O filme é incrível ao mostrar, na peregrinação de Sandra, a situação monstruosa a que o capital submete os trabalhadores cotidianamente. Sob uma suposta aparência de “liberdade de escolha”, esse sistema de exploração impõe aos que só possuem seu trabalho para vender as situações mais degradantes para que tenham o mínimo: a possibilidade de serem explorados por seus patrões. Ao mostrar colegas amargurados, que choram e dizem a Sandra que não desejam sua demissão, mas que não têm escolha pois precisam do bônus, o filme grita, ainda que de forma indireta, essa verdade elementar: não há saída individual para a exploração. A saída do voto, seja por Sandra, seja pelo bônus, mantém sobre os operários o custo de uma crise que não é responsabilidade sua, enquanto os verdadeiros responsáveis se mantém intocados. A aparência é de uma decisão democrática, mas sob ela está oculta a verdadeira guilhotina dos patrões que mutila a vida dos trabalhadores.

Empregos extras ilegais, contratos temporários precários, maridos machistas e opressores, individualismo exacerbado, violência física: são diversas formas de divisão e dominação que aparecem nas conversas de Sandra, mostrando cada recurso que, de uma forma ou de outra, a burguesia conta para poder manter a mentira de que a única escolha é “bônus x Sandra”. Nessa alegoria está a verdade da classe trabalhadora mundial hoje. No Brasil, por exemplo, com a ajuda inclusive das burocracias que dominam os sindicatos, o governo do PT e os patrões apresentam uma chantagem muito semelhante aos trabalhadores com a medida que hipocritamente batizaram de “Plano de Proteção ao Emprego” (PPE): para manter os postos de trabalho, os trabalhadores devem reduzir a jornada e os salários. Uma medida que já vem sendo aplicada na Alemanha, e que apresenta a mesma lógica da situação que Sandra enfrenta. Os colegas podem decidir “livremente”: podem se solidarizar com a sua colega, ao custo de cortar na própria carne. A própria Sandra é colocada diante dessa escolha em determinado momento: pisar na cabeça de seus colegas em uma situação mais precária de trabalho para poder manter seu emprego.

“Dois dias, uma noite” abre a ferida, e mostra que não há nada a ser defendido em uma sociedade que trata a maior parte de seus membros como lixo, como peças de uma máquina que deve continuar a rodar ao custo de massacrar os que a fazem funcionar. O que há de mais belo no filme é que ele dá uma dimensão humana profunda a essa tragédia que cotidianamente é apresentada em números que não transparecem a tragédia de milhões de vidas que são cotidianamente destruídas para que se sustente esse parasitismo secular. Sandra é o retrato da opressão e exploração de todo esse mundo, de toda essa sociedade que precisa ser virada do avesso. Seus colegas são massacrados também sob esse peso, o peso que nos obriga, tantas vezes, em nome da sobrevivência, a virar a cara para amigos, colegas, companheiros, semelhantes a nós. Esse sofrimento, não podemos suportá-lo passivamente. Precisamos com urgência de um mundo onde não tenhamos que escolher entre o nosso padecimento ou daqueles que estão a nosso lado. Só unidos e organizados podemos dizer que são eles, os que nos impõem esse sofrimento, os que devem pagar a conta dessa miséria. A cabeça erguida de Sandra, apesar de tudo, é a mostra de que a única batalha que realmente perdemos é aquela que não ousamos lutar.

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