Quinta 18 de Abril de 2024

Internacional

Balanço e perspectivas do Ensaio Geral Revolucionário

Depois de outubro

14 Nov 2003 | Os acontecimentos de outubro têm uma importância histórica: sob os golpes do levante operário, camponês e popular que teve como eixo a greve geral indefinida convocada pela COB e na insurreição de El Alto sua expressão mais alta, caiu Sánchez de Losada, “homem-símbolo” do neoliberalismo na Bolivia e homem de confiança das transnacionais e do imperialismo. Desta maneira, se abre a primeira página de um novo período revolucionário, comparável ao que levou à insurreição de 9 de abril, ao grande ascenso dos 70 ou ao ciclo de 1982-85. Seus ensinamentos são vitais para preparar as grandes lutas do próximo período. Com este artigo, e com outros publicados nesta mesma edição, queremos apresentar os primeiros elementos de um balance e das perspectivas abertas.   |   comentários

A crise nacional

Este giro histórico se nutre da profunda crise do capitalismo boliviano após duas décadas de aplicação dos programas neoliberais que subjugaram o país sob o capital imperialista como nunca antes em sua história e agravaram ao extremo a situação de miséria das massas do campo e da cidade.

Desde o ano 2000, quando o levante da “guerra da água” em Cochabamba mostrou que as massas começavam a se recuperar depois de longos anos de ofensiva burguesa e imperialista, se desenvolvem dois processos.

O primeiro, a crise do regime da dominação política burguesa. Já em 2000, se fez evidente que se havia aberto uma profunda brecha “entre governantes e governados” , ou como gostam de dizer os politólogos “entre o Estado e a sociedade civil” . Depois da renúncia e da morte de Banzer, as eleições de 2002 foram uma tentativa de desviar o descontentamento das massas para fechar esta brecha. Mas esta tentativa fracassou rapidamente e depois de fevereiro a brecha se fez ainda mais ampla, até estourar em Outubro.

O segundo processo é o profundo ascenso das massas, que se não principio era basicamente camponês, foi se estendendo às cidades e incorporando os trabalhadores a través de importantes processos de luta e acontecimentos que comoveram o país até os alicerces, como a mencionada “guerra da água” , os bloqueios de caminhos de setembro de 2000 no Altiplano, as Jornadas de fevereiro deste ano e finalmente, o levante insurrecional de outubro, que é a mais ampla e profunda irrupção de massas em mais de duas décadas.

Deste modo, os elementos objetivos e subjetivos da “crise geral” ou “crise nacional” foram amadurecendo até que la irrupção das massas em Outubro lhe deu um giro dramático, abrindo um novo ciclo histórico de intensa luta de classes.

Uma situação revolucionária

Por tudo isto, acreditamos que se abriu um novo processo revolucionário que muito possivelmente durará vários anos e atravessará diversas fases ou situações, tanto de agudização como de retrocesso, não qual está colocado um duelo decisivo entre as forças da contra-revolução burguesa e imperialista e a revolução operária e camponesa.

Desde as mobilizações e enfrentamentos do 19 e 20 de setembro, que iniciam um mês de tumultuosas e crescentes mobilizações que terá seu desenlace em 17 de outubro, se abre uma situação revolucionária, caracterizada pela crise da classe dominante e de seu regime, o profundo ascenso operário, camponês e popular, o giro à oposição das classes médias e a radicalização dos setores avançados.

Dentro desta situação, as jornadas mais agudas, entre a insurreição em o Alto de 11,12 e 13 que derrota a tentativa de militarização e o recâmbio governamental do dia 17, marcam uma crise revolucionária, isto é, uma agudização extrema da crise do poder burguês onde o governo de Goni perdeu o controle e de fato a greve geral e a insurreição espontânea em o Alto levantaram de forma aguda o problema do poder: Quem deve governar o país?

Greve geral, levante de massas e insurreição

A greve geral indefinida convocada pela COB desde sua reunião ampliada em Huanuni, a despeito de ter sido chamada sem preparação na base, se converteu na referência da caudalosa torrente de mobilizações, marchas, paralizações etc. que culminaram não levante de outubro.

Neste marco, o paralização cívica de El Alto se desenvolveu não enfrentamento com as Forças Armadas até desembocar numa insurreição social local que foi o elemento mais avançado da ação espontânea das massas, permitindo que se efetivasse a “greve geral indefinida” , que se incorporasse La Paz e que se estendesse e se aprofundasse o processo de mobilização nacional, transformando em um eixo central da mobilização a exigência de renúncia do presidente. Estava em curso um levante revolucionário de massas de dimensões nacionais e que incorporou quase todos os setores, arrastando inclusive parcelas da pequena burguesia urbana.

A “greve geral indefinida” como greve política de massas levanta o problema do poder, mas não pode resolvê-lo por si própria. Deve transformar-se em insurreição e arrastar todo o povo. Isto requer órgãos de poder das massas em luta, a formação de milícias e sobretudo, uma direção que queira conscientemente ir até o final, vale dizer, uma direção revolucionária. Estes três elementos estiveram ausentes em outubro, facilitando o recâmbio não Parlamento para desmontar o levante de massas. A perspectiva de combates superiores só fará mais imperiosa esta exigência.

Embriões de duplo poder

De fato dois poderes se enfrentaram: o questionado poder estatal, que por vários dias perdeu o controle sobre uma importante parte do território e sobre o principal conjunto urbano do país, especialmente em El Alto, e o embrionário poder da mobilização operária e popular, que disputa com ele toda a autoridade e o enfrenta em todos os terrenos, ainda que não tenha podido dotar-se de instituições que o materializen. Objetivamente as juntas de vizinhos de El Alto, com as múltiplas assembléias para encarar as mais diversas decisões sobre os passos a seguir na luta, particularmente na autodefesa, começavam a expressar esta situação, ainda que o processo espontâneo transbordava amplamente seus marcos. As Juntas de Distrito cumpriram um importante papel centralizador. A enorme autoridade e poder de convocatória logradas pela FEJUVE e pela COR se apoiaram, neste processo de bases.

No calor da insurreição popular esteve colocada a possibilidade de criar uma Comuna em El Alto, que tomasse em suas mãos todas as tarefas de mobilização, defesa, abastecimento etc., e se constituisse num poderoso centralizador do levante nacional.

Estas tendências espontâneas das massas a tomar todos os problemas em suas mãos e a opor seu próprio poder ao do Estado burguês não se desenvolveram e depois do dia 17 foram retrocedendo. Não se criaram organismos que pudessem dar expressão a este incipiente duplo poder, desenvolvê-lo e centralizá-lo regional e nacionalmente. A velocidade dos acontecimentos, mas sobretudo a absoluta oposição dos dirigentes nacionais da COB, do MAS e do MIP frearam a possibilidade de que surgissem formas de coordenação e comitês de greve e mobilização.

No entanto, os passos dados constituem uma valiosíssima experiência de auto-organização para as massas que facilitará no próximo período o surgimento de organismos superiores de frente única das masas.

Estouros de guerra civil

Desde Warisata a consigna de “guerra civil” foi tomada por los sectores de vanguarda como expressão da vontade de enfrentar e derrotar o governo com todos os meios a seu alcance. Efetivamente, desde as primeiras jornadas de outubro com os enfrentamentos e massacres que se sucederam por vários dias, se viveu uma situação de guerra civil, caracterizada pelo enfrentamento aberto, físico e inclusive armado entre as massas mobilizadas e as forças do Estado burguês, rompendo os marcos da legalidade burguesa particularmente.

A escalada repressiva, em vez de derrotar a resistência, foi contestada com passos cada vez mais audazes na resposta das massas, até chegar à insurreição de El Alto.

Apesar das dezenas de mortos e centenas de feridos, o povo alteño derrotou a tentativa de militarização, se apropriou do território com milhares de barricadas e trincheiras e se dotou dos primeiros elementos de organização (com os comitês de vigilância e a instrução de criar brigadas de autodefesa através das juntas de vizinhos). Houve também alguns elementos incipientes de armamento e deve-se destacar o comportamento dos setores avançados, como os mineiros e outros que marcharam em direção a La Paz seguindo uma dinâmica espontânea de “cerco e assalto” às sedes e símbolos do poder (ainda que as multitudinárias manifestações que se sucederam dia após dia em La Paz e outras cidades foram predominantemente pacíficas).

El Alto e a maior parte da cidade de La Paz, assim como o Altiplano de La Paz, se transformaram em “zonas liberadas” onde a polícia se resignou a não intervir. Algumas ações avançadas, como a destruição de vários destacamentos policiais e algumas motos e veículos dos militares as tentativas de impedir a passagem dos caminhões-tanque em direção a La Paz ou de sitiar alguns quartéis ilustram a disposição combativa dos setores de vanguarda.

Se podia ter conseguido muito mais

Nas reuniões e plenárias da COB dos dias 17 e 18 muitas vozes mostravam descontentamento: se podia ter conseguido muito mais, mas “algo” havia faltado.

Apesar da combatividade e do heroísmo demonstrado nas ruas pelas massas, apesar de ter posto em cheque o governo, encurralando-o na residência presidencial de San Jorge até tornar impossível sua permanência, não se póde ir mais longe no caminho para um governo operário, camponês e popular.

No mínimo, se poderia ter desbaratado o Estado burguês e quebrado suas instituições fundamentais. Ainda que a burguesia tivesse conseguido um recâmbio, o novo governo teria sido muito mais débil. Se poderia ter imposto uma Assembléia Constituinte sobre as ruínas do regime, o que teria permitido acelerar a experiência do movimento de massas com as ilusões democráticas e aproximar-lhe a necessidade de tomar o poder em suas próprias mãos como única saída.

Em vez de encerrar-se a crise revolucionária, ao menos conjunturalmente, a mesma poderia ter se desenvolvido mais, abrindo-se uma fase de luta aberta pelo poder em condições muito mais favoráveis para as massas, no calor da qual se poderia forjar os órgãos de poder e um novo “estado maior” revolucionário que preparasse a insurreição.

O papel das direções

Se não se póde ir além, a responsabilidade política recai nas principais direciones, o MAS, o MIP e a COB, que não só se negaram a pór de pé comitês de greve e mobilização ou outros organismos de coordinação democráticos para centralizar a luta, não prepararam nem política nem organizativamente a mobilização para disputar o poder, mas terminou por consumar uma aberta traição política ao heróico levante de massas, ao apoiar uma saída por dentro do regime.

O MAS, comprometido na defesa da democracia burguesa e cuja estratégia aponta para ganhar as próximas eleições, tratou de frear o quanto póde o processo de mobilizações e limitá-lo à “revisão” da política para o gás. Logo, quando já era um clamor o grito de que se vaya Goni, se somou ao pedido de renúncia deste e ao pln de sucessão por via constitucional, apoiando as negociações para que subisse Mesa, a quem deu um decisivo respaldo político (ainda que indireto, sem integrar-se ao novo governo).

Felipe Quispe, el Mallku, até estar bem avançado o processo se manteve intercambiando cartas com os ministros de Goni e apesar dos discursos combativos, terminou compartindo a tribuna com Carlos Mesa frente a milhares de camponeses para dar uma trégua de 90 das ao novo presidente e alimentar as ilusões de que este possa satisfazer as demandas do campo.

A COB adotou posições mais combativas desde o início do conflito, convocando a greve geral e exigindo que Goni se fosse, mas Solares em nenhum momento assinalou uma perspectiva política dos trabajadores e pelo contrário defendeu sua própria variante de “sucessão constitucional” (através da Corte Suprema de Justiça), levantou a todo momento uma perspectiva de pressão e terminou legitimando a sucessão de Mesa e concedendo de fato um “crédito” e uma trégua ao novo governo.

Todos se mostraram absolutamente inimigos de que o movimento apontasse uma saída política independente.

A mudança constitucional

Graças a isto, a classe dominante conseguiu assegurar que a já inevitável queda de Goni não arrastasse todo o arcabouço político e institucional, póde conservar a “legalidade” no

recâmbio do pessoal do Poder Executivo e preservar intactos o Poder Legislativo e Judicial. As Forças Armadas e a polícia ainda que debilitadas, mantiveram sua coesão interna e não se quebraram. A “institucionalidade” se manteve e a mudança de governo se deu constitucionalmente por meio do Parlamento (reunido de emergência no próprio dia 17) e com o concurso dos partidos.

A burguesia póde apoiar-se no desenvolvimento desigual do processo, centrado em La Paz e no Altiplano, o que lhe permitiu manter em Santa Cruz e Tarija um ponto de apoio reacionário.

Apesar do duro golpe que sofreram o regime e as instituições do Estado, poder recorrer aos mecanismos da democracia burguesa (debilitados mas ainda úteis para desmontar o impulso insurreicional das massas) e com a colaboração do MAS e dos principais dirigentes conseguiu dissolver a crise revolucionária e fechar a seu favor o virtual vazio de poder que se havia aberto desde os dias 12 e 13/10.

Deste modo, mesmo o poderoso levante de outubro tendo desferido um golpe muito duro a todo o edifício estatal da dominação burguesa, não alcançou demoli-lo. Não se abriu uma fase superior de luta direta pelo poder (quer dizer, não se transformou em uma revolução aberta, como o 9 de abril de 52 ou como a revolução de fevereiro de 1917 na Rússia, quando as massas derrubaram o Czar, poucos meses antes de tomar o poder em suas próprias mãos). No entanto, abalou profundamente a relação de forças entre a classe dominante e as massas e deixou aberta uma situação de características revolucionárias onde estarão colocados novos embates de massas e onde o problema do poder segue inscrito.

Uma conjuntura instável

É sobre esta nova situação que a clase dominante e seu governo devem atuar. Como anunciou Mesa en seu discurso, se trata de assegurar um “governo de transição” para ir recompondo o cambaleante regime político e desativar a ameaçadora pressão das massas.

É certo que conta com a trégua concedida pelo MAS, pelo MIP e pela COB, co o apoio das camadas médias a Mesa e numa certa cota de ilusões em importantes setores populares. Mas como mostram as ocupações protagonizadas pelos camponeses sem terra, o ânimo de luta pelas demandas mais sentidas segue vivo e pode levar a choques antes do que se espera com o novo governo. Por outro lado a burguesia mostra divisões e disputas que podem socavar o frágil equilíbrio político que trata de tecer Mesa.

A nova conjuntura é extremamente instável. Primará a tentativa burguesa de recompor o regime político e desativar o ascenso revolucionário ou a tendência das massas a continuar sua ofensiva?

As demandas que motorizaram a mobilização seguem insatisfeitas: a luta pela defesa do gás, pela terra e o território, pelo trabalho, o salário e as condições trabalhistas, a saúde e a educação etc.

O movimento de massas tem feito uma formidável experiência de luta e comprovado na ação suas próprias forças. Será muito difícil para a burguesa conseguir que se retire da cena e impedir novos embates revolucionários. Esta perspectiva define as tarefas do próximo período e sobretudo, a luta por uma nova direção revolucionária.

A Liga Obrera Revolucionaria por la Cuarta Internacional (LOR-CI), é a organização irmã da LER-QI na Bolívia, e também faz parte da Fração Trotskista - Quarta Internacional

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