Quinta 28 de Março de 2024

Cultura

Depois da chuva, a cortina de fumaça

26 Jan 2015   |   comentários

O filme Depois da Chuva retrata, por meio da história do estudante Caio, a grande farsa da transição pactuada entre militares e oposição burguesa para acabar com a ditadura.

Um comício multitudinário se reúne em grande fervor coletivo na Praça da Sé, em São Paulo. A cena da campanha das Diretas Já é um dos mais consagrados símbolos da democracia brasileira moderna, uma celebração de quando o povo, unido, derrotou a ditadura militar. Uma verdadeira cortina de fumaça feita para criar o mito oficial e apagar da historiografia oficial do país o que realmente significou a “transição lenta, segura e gradual” pactuada entre militares e setores oposicionistas do MDB, na qual o PT participou como “ala esquerda”.

O filme “Depois da Chuva”, de Cláudio Marques e Marília Hughes, cutuca essa ferida de forma provocativa, e é esse seu grande mérito. Há uma analogia que é o fio condutor da trama, entre a “redemocratização” do país e o amadurecimento político do jovem Caio, um estudante secundarista que começa a dar seus primeiros passos na sua “vida consciente”, ou seja, na sua atuação como sujeito político diante do mundo. Os descaminhos de uma suposta redemocratização encontram um paralelo na trajetória política de Caio, que encontra em sua escola elementos políticos que reproduzem em uma pequena escala a grande farsa que a burguesia empurrava para as massas no país.

Caio é um jovem de classe média morando em Salvador e que, por meio de amigos, conhece o anarquismo. Sua inteligência e observação o permitem que, com o pouco conhecimento político que adquire, veja por trás das aparências ufanistas que são patrocinadas por todos os setores burgueses e pequeno-burgueses, tanto os oposicionistas “autênticos” como os “de última hora”, como a Globo, personagem que marca o pano de fundo do filme. As massas, sob a direção desses setores burgueses, são levadas a ver no “moderado Tancredo Neves”, como apresenta o próprio trecho da Globo presente no filme, um grande “herói da democracia”. Caio desvenda a armadilha: na sua redação escolar sobre a democratização do país, intitulada “demencracia”, denuncia como, sob o rótulo dessa nova “democracia”, os explorados são mais uma vez expropriados das decisões políticas sobre seu futuro. No congresso nacional controlado pela ditadura se enfrentam Paulo Maluf, peça história da ditadura, e Tancredo Neves, trazendo como seu vice José Sarney, outro político tão orgânico da ditadura quanto Maluf.

A redação de Caio lhe vale não apenas seu primeiro zero, mas uma repreensão do diretor da escola que o adverte que “por causa de pessoas como você, que confundem liberdade com bagunça, os militares tomaram o governo”. Simultaneamente, o filme nos mostra o cru aprendizado político de Caio em relação à perseguição política e ao silenciamento “democrático” dos que procuram dizer a verdade, e também, representada em sua escola, a construção da historiografia oficial da transição pactuada. A “harmonia” da redemocratização dos militares e oposicionistas burgueses aparece no filme representada, por vezes, de forma mais indireta, mas nem por isso menos contundente. É o caso de sua professora comemorando de forma ridícula e caricata a execução de “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, no “festival de arte moderna” da escola, e logo em seguida torcendo o nariz para a apresentação de punk rock de Caio e seus colegas, travestidos de mulheres. Os símbolos que outrora foram de resistência, como a canção de Vandré ou a Semana de Arte Moderna, aparecem já completamente assimilados pelo discurso ufanista, devidamente esterilizados de qualquer potencial contestador. Já a música de Caio e seus amigos está “fora do roteiro”, e por isso causa incômodo à professora, que se torna uma perseguidora do jovem estudante que “não respeita os mais velhos”, como ela diz a ele.

Essas experiências fazem Caio ter a certeza da farsa que se desenrolava no país e em sua escola; e sua própria procura de um caminho para se opor à ditadura escolar surge como uma metáfora da desorientação da própria esquerda. Primeiro agindo sob a tutela de um amigo anarquista mais velho, logo Caio vê que a verborragia de seu mentor é impotente para transformar a realidade. Ameaçado de expulsão da escola por sua conscientização política, o estudante decide avançar para a organização política e se candidatar ao grêmio da escola. Seu rival na eleição, por sua vez, é o símbolo dentro do movimento estudantil do que significa a transição pactuada no plano da política nacional. Surgindo sempre como um “pelego”, mediando a situação entre diretoria e estudantes, o rival de Caio tenta desarticular sua atuação política com chantagem e “troca de favores”, tal como vemos dia a dia em cada escândalo de corrupção da nossa “democracia” atual.

Disposto a pensar com a própria cabeça e procurar seus caminhos, Caio enfrenta seu tutor político para procurar uma forma de agir contra a direção da escola e o sistema escolar que “ensina a repetir mas não a pensar”. Confrontado pela própria impotência de sua falta de estratégia para mudar o mundo, o mentor de Caio será vítima de uma crise em seus ideais. Enquanto isso, a “tragédia nacional” da morte de Tancredo é utilizada com precisão pela burguesia para aumentar a comoção nacional e a “união do país” pela democracia. José Sarney, figura carimbada da ditadura, assume a presidência. A transição se revela uma imensa farsa, que até hoje mantém suas consequências vigentes. Consequências que o jovem Caio, em toda sua confusão e imaturidade política, já via de longe. Mas que, até hoje, grande parte da esquerda brasileira ainda não aprendeu e não fez o balanço necessário de sua própria atuação.

Caio viu o problema, e continua procurando as respostas, que descobre serem mais difíceis e contraditórias do que poderiam parecer. O país, desviado pela verdadeira contrarrevolução democrática da transição pactuada, segue o curso desenhado pela classe dominante. “Depois da chuva” é, como mínimo, um importante lembrete de que a história que nos contaram é uma grande farsa, e que, ainda que possamos errar em nossa imaturidade, é necessário procurar os caminhos para poder, de fato, chegar a um momento depois da chuva e das cortinas de fumaça.

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