Sexta 29 de Março de 2024

Contaminação e Assédio, tradições na Biblioteca da FFLCH

25 Feb 2015   |   comentários

Trabalhadora da biblioteca Florestan Fernandes da FFLCH conta a rotina de assédio e insalubridade em uma das mais importantes bibliotecas da maior universidade do país

Há quase 18 anos trabalhando na Biblioteca Florestan Fernandes, G. (a trabalhadora preferiu não ser identificada), conta todo o histórico de sobrecarga de trabalho e assédio moral que acontece às escondidas entre as prateleiras de livros de uma das maiores bibliotecas de ciências humanas do país. Os trabalhadores da biblioteca decidiram paralisar as atividades desde o dia 23 de fevereiro em virtude da presença de um acervo contaminado com DDT (substância cancerígena) que põe em risco a saúde dos trabalhadores e dos milhares de usuários da biblioteca.
Nesta terça terça-feira, 24, a COVISA (Coordenação de Vigilância em Saúde) também esteve lá, enquanto conversávamos, e atestou diversas irregularidades que comprometem a saúde daqueles que ali trabalham ou frequentam tão graves quanto a presença de DDT em parte do acervo. Isso foi mais uma mostra da força da mobilização dos trabalhadores em prol da segurança da biblioteca para todos!
Palavra Operária – Você trabalha há quase dezoito anos nesta biblioteca. Quais eram as suas expectativas em relação ao trabalho em uma biblioteca dentro da maior Universidade do país?
G – Eu achei que iria ser uma delícia, que a gente iria aprender muito, que iria atender a um público excepcional, que trabalhar com as bibliotecárias iria ser excepcional. Mas, logo no começo já foi uma decepção. Assédio moral... Você não podia rir, você não podia conversar, não podia levantar, tomar café... Umas coisas absurdas!
Fizemos denúncias na época e nenhum diretor até hoje tomou providência nenhuma. Foi muito difícil, trabalhávamos doente, não tínhamos direito a nada. Foi muito difícil...
Você tinha que fazer o serviço de 3, 4 até 5 pessoas, enquanto simplesmente mandavam as vagas embora no decorrer desses anos. E a gente sempre reclamando que faltavam funcionários, mas simplesmente mandavam essas vagas para outros lugares.
P.O - Como foi seu contato com o acervo contaminado?
G – A sra. Maria Laete [atual diretora da biblioteca] pediu para os monitores lidarem com esses materiais [acervo Cruz Costa], que foi doado à biblioteca em 2009. Foram eles que mexiam direto nesses materiais, mas como tinham dúvidas eles vinham nos procurar com os livros. Às vezes me traziam e diziam “olha, como é que eu faço pra catalogar isso?, Como eu coloco na base de dados?” E a gente via e passava as informações. Foram eles os primeiros, inclusive a terem os primeiros sintomas. Não tratávamos diretamente com o material o tempo inteiro, mas estávamos no mesmo ambiente que os livros contaminados. Estava tudo no mesmo ambiente e conforme eles abriam e fechavam os livros, aquele pó aquela coisa toda sobe e a gente respira aquilo.
P.O – E quais foram os primeiros sintomas que você sentiu?
G – Eu fui uma das últimas que teve sintomas, primeiro foram os dois monitores. E depois mais outros funcionários, todos do mesmo ambiente de trabalho. O meu foi alergia, começou a aparecer coceira e vermelhidão, muita vermelhidão, em várias partes do corpo, comecei a sentir dores, muito cansaço, uma fadiga imensa, e eu comecei a ir no médico para descobrir o que é que estava acontecendo. Como era no final do ano [final de 2013], a gente achava que era coisa de final de ano, todo mundo cansado por causa da correria... Até que eu tive pressão alta, algo que eu nunca tinha tido até então, tive que correr várias vezes pro hospital, me deram remédio, fiz tratamento. O médico já me liberou, porque eu não tenho pressão alta, foi só naquela época [em que lidava com o acervo contaminado], e continuei com dores. Começou a paralisar o corpo, até que eu marquei um ortopedista no HU que disse que não tinha nada a ver com a área de trabalho dele, ele me mandou de novo para o pronto socorro, que eu já tinha ido várias vezes, e que me internou no HU pra descobrir o que era. Fiquei internada oito ou dez dias, não lembro, entre maio e junho do ano passado. Pra você ver como demoraram pra tentar descobrir o que era.
Eles vinham com remédios que não adiantava, sentia muitas dores, não me movimentava, não me mexia. Tinha exames que os médicos reclamavam que o HU não estava mais fazendo pra detectar certas doenças. Quer dizer, os médicos ficavam entre a “cruz e a espada”, eles precisavam de mais exames e o HU não fazia. Até que falaram que eu não corria risco de vida e me liberaram, pra ir pra casa. Pedi um medicamento mais forte, pois precisava voltar a trabalhar, pra cortar a dor, pra eu poder tentar me movimentar, Mesmo assim, fiquei em torno de três meses em casa, durante a greve, e minha mãe tinha que dar banho em mim, minha filha... No hospital eu só comia papinha, pois não conseguia engolir, não passava a comida, tive que fazer fisioterapia pra conseguir engolir. Depois que eu saí do hospital também foi papinha, muita dificuldade pra me movimentar, comer. Minha mãe de 70 anos cuidando do meu pai de um lado e eu do outro lado. Pegava minhas pernas, colocava no sofá. Realmente a coisa foi difícil. A sorte é que a minha mãe é forte!
P.O. – Diante desses sintomas, que medos te afligiam? O que passava pela sua cabeça e o que os médicos te diziam?
G. – Eu fiquei apavorada, achando que eu podia ficar tetraplégica, porque eram nos braços e nas pernas. Os médicos falaram que é uma doença chamada dermatopolimiosite, que não há estudos sobre isso, uns médicos falam que é por causa do produto químico [DDT], outros não. Não existe consenso. Então, fiquei no meio de tudo.
Quando eu saí do HU, falaram que iam me indicar um reumatologista, via Hospital das Clínicas, mas como estava em greve eu não tinha como esperar. Graças a deus eu tinha convênio médico e minha filha marcou um reumatologista e ele começou a passar remédios pesadíssimos, tipo cortisona mais imunossupressores.
P.O. – Eu vi você andando agora até aqui com dificuldades...
G. – Muita, muita, muita... e ainda assim tem muita coisa que eu não faço. Os braços melhoraram, mas as pernas ainda estão bambeando.
P.O. – Você falou que começou a ter pressão alta. Nenhum desses sintomas você havia tido antes de entrar em contato com o acervo?
G. – Não, nunca. Eu tenho alergia. Alergia a AAS, molho de tomate, mas só.
P.O. – Quando você começou a sentir os sintomas e associar ao seu contato com os livros contaminados, você comunicou a direção da biblioteca?
G. – Sim, fizemos isso todos. A diretora ficou muito brava conosco, falou que nós é que tínhamos que provar, via laudo, que nós estávamos doentes por causa desse material. Inclusive, na época, liguei para minha chefia na casa dela, falando se podíamos tirar o material da nossa sala. Minha chefia direta autorizou tirar de lá. Porque estava na nossa sala, vários carrinhos de livros. Depois P. [substituta da chefia imediata], também ligou. Comuniquei a secretária da Diretora, também, fiz toda a coisa certinha.
Quando ela [diretora] chegou, ela veio gritando, berrou, apontou o dedo no nariz. Falou que P. não deveria ter deixado eu retirar o material, pois ela era responsável pelo setor enquanto a chefia imediata não estava. Avisamos que ligamos pra chefia e que ela havia autorizado, eu liguei em um dia e P. ligou no outro. Ela [diretora] falou que P., como responsável pelo setor, devia ter nos impedido de tirar de lá. P. respondeu que não estava nessa posição pra isso, que estava responsável pelo setor, mas que não faria isso. P. entregou o cargo, disse que não fazia isso por dinheiro, que não queria mais saber do cargo. Apontou o dedo pra mim, para P., que chorou e aí achei aquilo demais e pedi para Marlene [representante dos trabalhadores junto a Congregação da faculdade e diretora de base do SINTUSP] vir aqui, naquele dia.
P.O. – E qual foi a reação da direção da biblioteca quando você solicitou a presença da representação sindical?
G. – Com ela não tem negociação. Ela não aceitou negociar nada, inclusive quando ela chegou, quando se tornou diretora, falou que já sabia de tudo.
P.O. – Além do acervo contaminado, o assédio moral também afeta a salubridade do ambiente de trabalho?
G. – Assédio moral durante anos e anos. Nós fizemos denúncias, pedimos ajuda para professores. Eles falam que não sabiam de nada: Sabiam, sim! Eles podem não ter querido tomar conhecimento, mas que sabiam, sabiam. Nós pedimos ajuda durante anos, inclusive houve um ano que protocolamos ação sobre isso. Sobre vigilância nos computadores, queriam vigiar o que acessávamos, e ninguém tomou providências. Sobre falta de comunicação e sobre assédio moral.
P.O. Como toda essa situação de assédio, durante anos, afetou e afeta sua vida?
G. – Estou tão cansada, estou com o corpo tão cansado... Só não entrei no PIDV porque não valeu a pena, mas se eu pudesse eu tinha ido embora, eu não vou mentir. Porque estou com o corpo cansado, a alma cansada. Comecei uma nova psicóloga agora, porque minha outra teve que ir embora por questões familiares, pra ir aguentando esses anos até eu conseguir me aposentar.
P.O. – Desculpe a intromissão, mas você começou a frequentar a psicóloga por causa do trabalho?
G. – Foi há uns dez anos atrás, quando era outra diretora. A coisa realmente estava feia. Você não podia sorrir, você já viu isso? Você trabalhar que se você sorrir você podia ser mandada embora por justa causa. Era assim na época. A gente não podia conversar com pessoas que ela não gostava. Tínhamos que conversar escondido. Tomar café, nós não podíamos tomar café! Era proibido! Era insana a coisa! É ainda! É insano!
A minha mãe, quando comecei a falar daqui, ela não acreditava. Ela dizia “são professores”. Ela me ensinou que o professor é o segundo pai, segunda mãe, são pessoas que você tem que ter respeito, você tem que obedecer. Quando eu comecei a contar pra ela, ela dizia “não, são seres humanos, eles têm educação”. Foi muito difícil para ela entender. Minha filha fala “eu não quero trabalhar lá nunca!”
P.O. – Deve ter sido difícil para ela ver a mãe sofrendo?
G. – Foi. Eu sou separada e ela pequena, eu tendo que sustentar, pagar as contas. Foi desesperador. Tinha dias que chegava em casa chorando, porque eu não sabia se no outro dia eu tinha emprego. Não fazia prestação, pois não sabia se poderia pagar, com a ameaça constante de ser mandada embora.
P.O. – E hoje, com essa movimentação dos trabalhadores resolvidos a dar um basta nessa situação, como fica seu estado de espírito?
G. – Eu gosto, porque se as pessoas aprenderem que a união faz a força, que não é só uma frase, seria muito legal, veriam que as coisas seriam melhores. Se continuar assim, a gente vai conseguir fazer muitas mudanças. E não é só pra mim que estou agora, não! Pras futuras gerações. Pode ser minha filha, minha neta, minha bisneta, de qualquer pessoa. A gente tem que lutar pra melhorar!









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