Sábado 20 de Abril de 2024

Internacional

CRISE ECONÔMICA INTERNACIONAL

Começou o segundo capítulo?

25 Feb 2010   |   comentários

Três elementos chaves se combinaram no cenário econômico global. A situação econômica e financeira vivida por três países da zona do euro – Grécia, Portugal e Espanha – e, mais em geral os chamados, depreciativamente, PIGS (iniciais dos primeiros três países mais a Irlanda, e que em inglês significa porcos), devido à situação crítica das suas economias, seus imensos déficits orçamentários e dívidas públicas. Esta situação também pode se tornar uma séria ameaça para a continuidade da moeda comum européia [euro], e tem interessantes pontos de contato com a crise da conversibilidade na Argentina que terminou com a queda do presidente De la Rúa em 2001.
Como ontem, na Argentina, hoje, na Grécia e na Espanha são anunciados e já estão sendo implementados planos de duros ajustes fiscais, reformas trabalhistas, cortes e descontos salariais. A Grécia antecipa as primeiras respostas dos trabalhadores e do movimento de massas e na Espanha há uma tensa situação política, e o governo de Zapatero caiu aos níveis mais baixos de popularidade.
Isso se combina à crise no relacionamento entre a China e os EUA que teve origem na recusa da China de valorizar o yuan, um problema que dificulta as intenções dos EUA de aumentar a sua competitividade internacional e reduzir as importações. A resposta dos EUA é ofensiva, com a ameaça da Google de se retirar da China, a venda de armas para Taiwan (ilha que fazia parte da China e virou retiro das forças de contrarrevolução de Chiang Kai-Shek em 1949) e o encontro de Obama com o Dalai Lama (líder espiritual budista tibetano e atual líder do governo tibetano no exílio) contra a vontade do governo em Pequim. A localização da economia dos EUA combina um crescimento anualizado de 5,7% do PIB para o quarto trimestre de 2009 com o desemprego que se mantém em cerca de 10%, e uma profunda crise fiscal e da dívida, que empurram para baixo a popularidade de Obama e os recentes reveses do Partido Democrata, com a perda de cadeira parlamentar, como em Massachusetts que foi ocupada até pelo democrata Edward Kennedy até sua morte.
Esses três elementos são expressões dos limites da forma como o capitalismo impediu que a recessão fosse transformada em depressão, manifestando-se mais ou menos mediada na crise orçamentária e na dívida pública. Esta poderia ser a abertura de um novo ciclo de crise econômica global.

Impacto da transformação da dívida privada em dívida pública

Após a quebra do Lehman Brothers no final de 2008 e do estouro da bolha imobiliária que abriu a mais profunda recessão econômica mundial desde a crise dos anos 30, os estados capitalistas evitaram a depressão ao custo da conversão de dívida privada em dívida pública. Tanto nos EUA como nos países que constituem a União Européia e o Japão, os maiores bancos de investimento, seguradoras e bancos comerciais (e também empresas como a General Motors) evitaram a falência através da ajuda do Estado. Pacotes de estímulo fiscal e taxas de juro historicamente baixas foram os principais mecanismos para reanimar a demanda e o crédito. Evitando uma limpeza de capitais na magnitude que a crise exigia, conseguiu conter a atual economia deprimida, mas também mudou o problema para outro lugar, não conseguindo resolvê-lo em sua casa.
E, de fato, parte da crise foi transferida do setor privado para o setor público, ou seja, o Estado. Os déficits orçamentais e a elevada dívida pública, portanto, tornaram-se um espaço mais vulnerável da economia. O mercado de dívida pública sob a forma de ações, títulos e outros instrumentos financeiros funciona de forma semelhante a qualquer outro mercado de capitais especulativos e, dado que os ataques são direcionados para pontos críticos no sistema, pode-se dizer que "(...) os problemas nos mercados de dívida pública estão começando a se parecer perigosamente com ataques especulativos contra o setor financeiro de um ano e meio atrás” (El Pais, 4/02).
A intervenção dos estados para conter o curso da crise gerou, assim, um resultado de duas faces: contém a quebradeira dos negócios privados à custa de absorver a crise e incentivar a geração de uma nova bolha de dívida pública. O problema está em que, por um lado, a dívida pública constitui, como dizia Marx, o mais fictício de todos os capitais fictícios, já que carece de qualquer tipo de contrapartida real. Por outro lado, no primeiro ato o Estado agiu como avalista dos negócios capitalistas; num segundo ato, se os estados passam a ser o alvo, quem vai socorrê-los?

Europa: uma casa de loucos

As primeiras consequências financeiras dos elevados endividamentos estatais e de sua duvidosa capacidade de pagamento foram sentidas no pequeno emirado árabe de Dubai. Mais tarde a situação começou a ameaçar seriamente o símbolo mais importante da unidade europeia: o euro. Primeiro foi a Grécia. Agora se expande à tríade Grécia, Portugal e Espanha. Porém, sobretudo a Espanha, onde a bolsa de valores sofreu em dois dias uma queda de mais de 7%, situação que o diretor-geral do FMI Dominique Strauss-Kahn comparou com “o que se passou nos Estados Unidos”.
Como foi assinalado pelo economista e editorialista do Financial Times, Nouriel Roubini, “se a Grécia é um problema para a eurozona, a Espanha poderia ser um desastre porque se trata da quarta economia da região” ( (La Nación, 5/02). A economia espanhola caiu “(...) a uma velocidade vertiginosa depois de o país haver entrado em recessão em 2008. Seus déficits públicos saltaram de um excedente de 2,23% do PIB em 2007 para um déficit de 11,4% em 2009. A dívida pública espanhola evoluiu de 36,2% em 2007 a 55,2% em 2009 e deveráchegar a 74% em 2012”. (La Nación, 5/02). O desemprego na Espanha ronda os 20% e é de longe o maior da eurozona. A Espanha junto com a Grécia, Portugal e Itália e, por fora da zona do euro, a Grã Bretanha, são os países da União Europeia cujas economias foram mais comprometidas no processo de especulação imobiliária. Por esse motivo estão entre as mais diretamente afetadas pela crise iniciada em 2008 no coração dos Estados Unidos.
Além da Espanha, a Grécia tem um déficit público que alcança 12,7% do PIB, sua dívida pública está emtorno de 110% do PIB, e em Portugal o déficit fiscal chega a 8% do PIB e a dívida pública ao redor de 80%. No entanto, a ideia de que o problema do endividamento afeta somente os “PIGS” é, como assinala o economista marxista francês Isaac Joshua, uma ilusão. Como acaba de reconhecer o presidente do Banco Central Europeu, Jean-Claude Trichet, os dezesseis países que integram a zona do euro possuem em média um déficit fiscal de cerca de 6% do PIB, um valor que está muito acima dos 3% exigidos pela União Europeia. Para tomar alguns exemplos relevantes, nos Estados Unidos o déficit fiscal beira os 11% do PIB, 8% na França, 11,6% na Grã-Bretanha e cerca de 10% no Japão. A dívida pública representa aproximadamente 85% do PIB nos Estados Unidos, 76% na França, 60% na Grã-Bretanha e mais de 100% no Japão.
O problema dos déficits fiscais e do endividamento público em si mesmo não é um problema exclusivo dos “PIGS”, nem sequer é especifidamente um problema da eurozona. A particularidade da zona do euro é que ao ser vinculado à moeda europeia há o impedimento para recorrer a mecanismos tais como a manipulação das taxas de juros, que são definidas pelo BCE (atualmente sob direção alemã), ou decretar desvalorizações[1].
A corda quebra sempre no lado mais fraco... É por isso que o ataque especulativo (que com particular vileza foi estimulado por jornais como Financial Times e The Wall Street Journal, conselheiros do capital especulativo internacional) se concentrou nos países mais débeis, que para permanecer na zona do euro teriam que implementar fortes ajustes fiscais para reduzir os déficits e a dívida, e aumentar a competitividade externa de suas economias através de reduções salariais e cortes de conquistas operárias, tal como já foi anunciado pelo presidente da Espanha, o “socialista” Rodríguez Zapatero, e o ainda mais “socialista” primeiro-ministro da Grécia, Giorgios Papandreu. Os limites das políticas de saída da crise se expressam, assim, com todo seu potencial nos países mais pobres da zona do euro, nos quais o antídoto contra a depressão econômica não pode deixar continuar o endividamento estatal se desejam manter-se no marco da moeda europeia.
Os países mais ricos, como a Alemanha e a França, procurarão manter o euro à custa da exigência de planos neoliberais para os países mais, dando continuidade às políticas de “keynesianismo financeiro” nos países ricos. No fechamento desta edição se soube que os governos da eurozona haviam decidido ajudar a Grécia, o que abre a possibilidade de que em troca do plano de ajuste anunciado pelo governo seja preparado algum tipo de salvamento que suavizaria momentaneamente as pressões no mercado de títulos. Entretanto, estas políticas, obscenas como são, tenrão que se deparar (a Grécia é uma antecipação) com a raiva e resistência mais aguda dos trabalhadores e dos setores populares, pois já não se trataria, ao menos nestes países, deconter a crise mas de descarregá-la com os métodos mais tradicionais sobre as massas.
Tanto o aprofundamento da crise financeira como o desenvolvimento da resistência do movimento operário, no curo ou no médio prazo, poderiam gerar um contágio para a Irlanda e países cada vez mais centrais como a Itália, questionando diretamente a existência do euro ou a manutenção de muitos países na eurozona. Inclusive poderia acabar afetando a própria Grã-Bretanha, que está fora da zona do euro mas dentro da União Europeia, que possui grandes desequilíbrios em sua economia e cuja moeda, a libra esterlina, está em estado de reserva.
A atual crise europeia recoloca em cena o velho-novo problema de que a Europa não é nem pode ser um “supra-estado”. Nos anos 20 o economista inglês John Maynard Keynes denominou o continente europeu como uma “casa de loucos”. A impossibilidade da unidade capitalista europeia (e o papel do euro) representa um problema agudo que, mesmo que pela primeira vez na história, hoje volta a se expor em toda sua dimensão.

O crescimento dos EUA e o aumento das tensões com a China

Há poucos dias foram divulgados dados de crescimento dos EUA no último trimestre de 2009, com uma cifra positiva de 5,7% do PIB anualizado. Este crescimento aparentemente impressionante, que certamente foi o maior desde o início da crise no final de 2008, se explica principalmente pela recomposição dos estoques das empresas e os pacotes governamentais de estímulo ao consumo. A recomposição de estoques se associou ao fato de que durante a pior fase da crise as empresas praticamente liquidaram seus estoques, o que constituiu um fator excepcional que não pode ser considerado como elemento de crescimento estrutural da economia. Como consequencia do freio na queda da economia que já dura dois trimestres, os estoques cairam numa velocidade muito menor do que antes.
Segundo a agência EFE “os estoques empresariais se reduziram em 33,5 bilhões de dólares no quarto trimestre, depois de cair 139,2 bilhões entre julho e setembro” (4/02). De acordo com a mesma agência "no total, 60% do crescimento do último trimestre obedeceu a essa queda acentuada na redução de estoque, demostrando que as empresas têm voltado a reabastecer seus estoques esgotados pela recessão”. Eliminando-se esses 60%, o crescimento no quarto trimestre representaria cerca de 2,3% (sempre em termos anualizados), ou seja, seria menor que o crescimento de 2,4% do terceiro trimestre e estaria em consonância com a esperada recuperação fraca da economia dos EUA. Recuperação que, por outro lado, esteve apoiada nas muletas dos planos de estímulo fiscal e juros baixos.
Tal qual com os “PIGS”, os déficits e o endividamento estatal desempenham um papel central em recuperar a economia dos EUA, que está acumulando o maior déficit desde a Segunda Guerra Mundial e tem a maior dívida pública do mundo, equivalente a mais de 12 trilhões de dólares. As dúvidas sobre a capacidade de pagamento podem resultar numa fonte permanente de instabilidade na economia norte-americana e mundial. É por isso que a outra face do anúncio do crescimento apareceu como uma profunda crise orçamentária, quase ao mesmo tempo em que se anunciava o índice, e levou a uma série de compromissos pouco confiáveis de redução do déficit fiscal como resultado das pressões republicanas. Inclusive, no último momento e como expressão da debilidade extrema das finanças norte-americanas, o presidente da Reserva Federal, Bem Bernanke, anunciou que procederia à diminuição da base monetária como um primeiro passo para suprimir posteriormente as medidas de estímulo ao que aparentemente deveria seguir um aumento das taxas de juros. Esta medida de duvidosa aplicação imediata, dada a vulnerabilidade da economia norte-americana, buscaria elevar a atração de capitais mediante um maior rendimento aos títulos do Tesouro, acelerando a quebra dos países mais débeis. Não obstante, numa situação extremamente crítica, arriscaria impulsionar novamente uma tendência recessiva à já abalada economia norte-americana.
No momento, não apenas a recuperação tem uma débil base estrutural, apoiada como está nos planos de estímulo estatal e dinheiro barato, como além disso demonstra sua debilidade na incapacidade de gerar recuperação do emprego. A taxa de desemprego é de cerca de 10% e representa um dos problemas mais graves enfrentados pelo Estado. Os índices de recuperação da economia não afetam a taxa de desemprego, que apenas conseguiu deter o ritmo de sua elevação. Este problema está na base da queda de popularidade de Obama e do debilitamento do Partido Democrata.
O caráter pouco genuino da recuperação da economoa norte-americana e, com ele, o elevado desemprego, são os elementos que determinam que os Estados Unidos tenham apostado por uma política de dólar baixo que implica uma atitude internacional mais ofensiva com o intuito de aumentar a competitividade e reduzir as importações. É nesse contexto que ganha relevância sua relação com a China. As próprias contradições da recuperação negam a possibilidade de que se restabeleça o equilíbrio relativo entre China e Estados Unidos que regeu durante os últimos anos, e determinam uma política internacional mais agressiva da parte dos Estados Unidos. Eles precisam que a China valorize o yuan [2], pretendendo diminuir as importações mas também para captar uma importante parcela de seu mercado interno. Estes são os elementos por trás da mudança na política “amigável” norte-americana e sua atual ofensiva sobre a China com o objetivo de debilitá-la e subjugá-la[3].

Rumo ao incremento das contradições

As medidas que, em seu conjunto, os principais estados capitalistas aplicaram para conter a depressão encontraram um limite. As instabilidades assinaladas põem em cena a situação paradóxica de que não se pode continuar como até agora, porém uma mudança de política no sentido de reduzir os estímulos fiscais e aumentar as taxas de juros, no contexto de uma recuperação que quase nada tem de estrutural, conduziria a uma nova recaída. Em princípio é provável que esta situação redunde numa combinação eclética de planos neoliberais nos países mais débeis e a continuidade do salvamento nos mais fortes, ainda que este ameace com crises recorrentes e provavelmente leve a mudanças abruptas de políticas com consequências imprevisíveis. Selvagens planos de ataque nas nações mais débeis vão incentivar, seguramente, um recrudescimento da luta de classes que poderia contagiar as nações mais fortes com elevação no desemprego, como no caso dos Estados Unidos. A estratégia de desvalorização do dólar e a política de “mão aberta” dos Estados Unidos para com a China, que objetivava uma recuperação mais estrutural da economia norte-americana, “guardando as formas”, fracassou. Também estão abortando as tentativas no interior da União Europeia de manter no marco do euro economias profundamente desiguais, deixando correr desequilíbrios extremos.
Todos esses elementos vão provocar, estão provocando, maiores contradições no interior dos blocos ou nos pretendidos blocos existentes. Por sua vez, um aprofundamento da crise na Europa aumentaria as tendências à desvalorização do euro, cuja contrapartida seria a valorização do dólar. Este elemento afetaria seriamente as tentativas dos Estados Unidos de recompor sua competitividade mundial e reduzir as importações, tornando mais agudas as tensões entre blocos e, em particular, entre as potências como Estados Unidos e Alemanha. Tanto estes elementos como as tensões entre Estados Unidos e China, que não se pode esquecer que mesmo sendo um país dependente é a terceira economia mundial, atrás dos Estados Unidos e do Japão, possuindo 22% dos títulos do Tesouro norte-americano, poderiam conduzir a um incremento do protecionismo e a um maior estancamento do comércio mundial.

Muito além dos tempos concretos, estamos diante dos primeiros elementos de uma nova rodada da crise mundial que muito provavelmente aumentará as contradições no interior dos blocos ou semi-blocos, entre os Estados, com maiores ataques ao movimento de massas, maiores desigualdades econômicas e maior luta de classes. Não parece que no imediato se volte a um curso depressivo coordenado do conjunto da economia mundial, como ocorreu nao final de 2008, entre outras questões porque o principal afetado por ora não é nenhum país central. Entretanto, é muito provável que de forma mais estendida no tempo estejam se gestando as condições para uma nova recaída que, numa primeira etapa, provavelmente seja mais desigual que ade 2008, porém que no médio prazo possa voltar a colocar na cena de forma mais violenta não apenas as condições da depressão econômica mas também aquelas do enfrentamento entre estados e do desenvolvimento da luta de classes.

1 Para um estudo mais profundo dos antecedentes da atual crise da União Europeia e do euro, ver “Europa frente a la crisis capitalista mundial”, de Juan Chingo, traduzido para o espanhol da revista Stratégie Internacionale, 2009. Disponível em www.ft-ci.org.
2 Esta definição pressupõe que a maior competitividade da China está associada apenas a uma política monetária, quando na realidade é só um elemento. A chave da maior competitividade da China está em seus paupérrimos salários, questão que os Estados Unidos jamais mencionarão porque é muito benéfica para suas próprias multinacionais e a deslocalização de investimento para a China que operou durante os últimos anos.
3 Para aprofundar sobre as tendências da relação entre a China e os EUA, no marco das condições da recuperação econômica, ver “Cuatro preguntas sobre la situación econômica mundial. Crujidos de la ‘recuperación’”, de Paula Bach, em La Verdad Obrera nº 355 (www.pts.org.ar).

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