Sexta 19 de Abril de 2024

Teoria

China: de Giovanni Arrighi ao General norteamericano Clark

29 Oct 2014   |   comentários

Há alguns poucos anos o já falecido economista e sociólogo italiano Arrighi publicava seu célebre trabalho Adam Smith em Pequim. Em uma reinterpretação explícita da teoria de Adam Smith, o trabalho supunha que o economista escocês não haveria, na realidade, teorizado sobre o capitalismo, mas sobre um suposto sistema de mercado “não capitalista”.

Há alguns poucos anos o já falecido economista e sociólogo italiano Arrighi publicava seu célebre trabalho Adam Smith em Pequim. Em uma reinterpretação explícita da teoria de Adam Smith, o trabalho supunha que o economista escocês não haveria, na realidade, teorizado sobre o capitalismo, mas sobre um suposto sistema de mercado “não capitalista”.

O modelo desta abstração é a China. Em princípio, é a China anterior à Revolução Industrial. Uma China florescente –como efetivamente ela era- que não haveria sido vencida pela potência da produtividade do trabalho da qual gozavam a Inglaterra e a Europa –como assinala Marx n’O Capital- mas sim devido fundamentalmente à potência das armas. Em todo caso não estaria mal perguntar por que haveria a Europa ganho o direito às armas, ainda que este não seja o lugar para discutir o assunto.

Melhor recordarmos que o mesmo Arrighi cita muito pertinentemente Marx, quem n’O Capital define as guerras como força militar parteira da transformação capitalista da sociedade mundial. Mas deixemos isto para mais adiante. A questão é que a China é invadida, oprimida e subjugada, como o foi desde as Guerras do Ópio, foi vítima da decadência durante um século. A visão de Arrighi parece querer dar a entender que a China só haveria se “redimido” muito parcialmente com a revolução de ’49 porque a verdadeira redenção, na realidade, veio depois.

Creia-se ou não, segundo Arrighi, a “redenção” teria começado com Deng Xiaoping e a restauração que haveria aberto novamente o caminho à China “de mercado, não capitalista”. Uma estranha redenção que adquiriu força com Tianamen e com a conversão da China na principal fonte de trabalho barato e superexplorado do mundo, ou mais precisamente, na principal fonte de mais-valia absoluta. A afirmação faz sentido, porque o objetivo de Arrighi em Adam Smith em Pequim, é opor à teoria de classes, marxista, a teoria de “A Riqueza das Nações”, ou seja, uma teoria –literalmente- de outra classe. Assim, conclui-se que o atual crescimento extraordinário da China associado ao período mais agudo de decadência norteamericana seria algo como a vingança do Oriente.

Resulta que a China que haveria voltado a ser “de mercado, não capitalista” –questão que o próprio Arrighi termina reconhecendo, ao menos implicitamente, como uma ilusão ingênua-, seria por isso a portadora de um novo tipo de ascenso pacífico. Arrighi acrescenta que a comparação histórica mais pertinente entre uma potência em declínio e outra em ascensão como a China seria a relação de “cooperação” entre a Grã Bretanha e os Estados Unidos durante os anos 1920.

O General Clark

Há alguns poucos dias, o general aposentado do Exército dos Estados Unidos e ex-Comandante Supremo da OTAN na guerra do Kosovo, Wesley Clark, retomava no New York Times uma pergunta formulada por Kissinger: Será possível um acordo entre China e os Estados Unidos com o objetivo de criar uma estrutura internacional na qual, pela primeira vez na história, um estado nascente seja incorporado a um sistema internacional e ao fortalecimento da paz e do progresso? Uma interrogação parecida com o que afirma Arrighi. O alerta de Clark é que a China estaria encarando os Estados Unidos cada vez mais como um adversário e rival em potencial. O ex-general afirma que, se desde fins de 1970 Pequim buscou uma associação estratégica com os EUA para dissuadir uma ameaça soviética e se dispunha a escutar e aprender com os militares norteamericanos, o ponto de inflexão se produziu com a crise de 2008 e suas seqüelas. A partir daquele momento, a China haveria começado a ver os Estados Unidos como um sistema que falha, como uma economia presa na dívida e um governo disfuncional, vulnerável a perder o seu lugar de líder do mundo. Na análise de Clark, Estados Unidos deveria olhar para a China para além dos paralelismos históricos.

O crescimento histórico chinês e o desafio que apresenta ao mundo é muito maior que o do o Japão da década de ‘80. Há um século, a Alemanha era uma potência em ascenso, disposta a fazer a guerra porém sem nunca ter tido a população ou a capacidade industrial dos Estados Unidos, ou até a década de ‘30, a liderança de um só partido político por cima do estado de direito. A China também não está como a União Soviética, economicamente isolada do mundo. Não há nenhum precedente histórico. Ainda segundo Clark, se durante mais de duas décadas a política dos Estados Unidos com a China foi de manter um equilíbrio entre o “compromisso” e a “contenção”, uma versão da política estadunidense em relação à União Soviética durante a Guerra Fria, o “pivô” para a Ásia, que a administração Obama anunciou em 2011, foi entendido como uma mudança para a contenção, dirigida contra a China.

O resultado é que o problema estratégico mais profundo dos Estados Unidos é o desafio mais fundamental lançado pela China à arquitetura global do comércio, o direito e a “solução pacífica” das controvérsias que os Estados Unidos criou depois da Segunda Guerra Mundial. De modo que os Estados Unidos teria que ser muito “claro” em convencer a China de que seus interesses não residem na expansão territorial, mas em assumir a responsabilidade de dividir a liderança global. Deveriam “explicar” também que um alinhamento mais estreito da China com a Rússia só poderia provocar os Estados Unidos e seus aliados assim como suas forças militares em expansão, tendo “conseqüências”.

Depois de toda esta demagogia “democrática”, reafirma que o Estados Unidos precisa de uma visão estratégica própria a longo prazo, que inclua entre outras coisas uma economia forte que se baseie na independência energética, uma democracia forte e a capacidade militar para afrontar-se com a China em caso de crise. Com estes elementos, diz Clark, os Estados Unidos poderia ser bem sucedido em ajudar a China a assumir seu legítimo lugar de líder mundial, quiçá no mesmo nível que os Estados Unidos, de modo que promova a prosperidade e a estabilidade global. Desta forma talvez os líderes chineses pudessem se sentir-se seguros o suficiente para conceder à “democracia real” para seu povo. Porém isto seria uma longa jornada.

Nem sempre há uma primeira vez

As posições de Arrighi, Clark e Kissinger têm um exótico ponto de contato. A idéia de que seria possível substituir a decadente hegemonia imperialista por meio de uma aliança cooperativa, cada um interpretando a seu modo. A discussão sobre a caracterização da China não consiste em perguntar se a China é capitalista, como fez Arrighi já atrasado em 2007, mas sim em que medida poderia a China estar adquirindo traços imperialistas no sentido leninista do termo. Expusemos na semana passada em Sobre o destino da China e da economia mundial, alguns elementos referentes à exportação de capitais. Outro elemento chave consiste em investigar sua capacidade militar. Se o aumento no gasto com armamentos da China durante os últimos anos é notório, é preciso levar em consideração que seu ponto de partida é muito baixo, e por ora, quanto aos resultados, a distância com Estados Unidos, ou mesmo com a Rússia em termos de ogivas nucleares, é colossal. A China representa aproximadamente a fatia de 8% do gasto militar mundial, contra os esmagadores 41% dos Estados Unidos. Também não está nada claro que uma disputa pela hegemonia mundial se colocará diretamente entre China e Estados Unidos.

Além de existirem muitos outros jogadores, entre eles Alemanha, não é definitivo que a China conseguirá evitar o destino do Japão, ainda que fundamentalmente pela debilidade da economia norteamericana, este pareça menos provável. Em todo caso, ainda é complexo definir se China avançará ou não a adquirir mais traços imperialistas. É chave para isto salientar três aspectos. O primeiro deles é que se existem pontos de contato entre a relação sino-norteamericana e a relação anglo-norteamericana nos anos 1920, as diferenças são tais que prever um cenário semelhante acaba por ser, no mínimo, uma abstração. As semelhanças se produzem no terreno da relação comercial e seu declínio a partir de 2008, e no terreno da dependência monetária.

Mas nos anos ‘20 os Estados Unidos já era o primeiro produtor mundial de muitas mercadorias fundamentais, sua produtividade equivalia a 150% da britânica, enquanto a situação da China hoje é bastante diferente. Ainda sendo a segunda economia mundial por PIB, sua produtividade, medindo a produção por pessoa empregada e segundo dados do relatório feito por The Conference Board de 2014, representa apenas 17,1% da dos Estados Unidos. O segundo aspecto é que a cooperação dos Estados Unidos com a Inglaterra – colocada em prática quando Estados Unidos mostrou sua superioridade- esteve muito longe de resolver a crise de hegemonia imperialista que abriu a decadência britânica.

Pelo contrário, a falta de uma hegemonia clara foi parte (ainda que só parte) indissolúvel da instabilidade dos anos ‘20. A questão da hegemonia e da estabilização do capitalismo mundial foi resolvida logo após a Segunda Guerra e com o indiscutível estabelecimento da hegemonia norteamericana. O terceiro aspecto é a discussão mais importante à qual por agora só dedicaremos algumas linhas. Em uma situação de estancamento secular capitalista não se pode descartar, ao menos teoricamente, no médio ou longo prazo, algum tipo de “cooperação” entre estados imperialistas. Mas tal situação, longe de atuar como um ponto de partida para um novo período pujante da economia global, penderia mais para o acompanhamento de sua decadência e autodestruição com um altamente provável recrudescimento da luta de classes.

Não há porque esquecer algumas palavras de Marx, sobretudo quando passaram a prova uma e mil vezes: as guerras são a força militar parteira da transformação da sociedade mundial capitalista.

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