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Cultura

Carlos Contente: o sarcasmo apontado para os opressores

21 Jan 2015   |   comentários

O novo nome na HQ nacional é Carlos Contente, carioca autor de Claudinho e Adolfo, uma ótima obra em que um Hitler moderno vem ao Brasil e fica maravilhado com a opressão estatal de nosso país

Para além dos hipócritas discursos oficiais dos governantes europeus, que transformaram o episódio do atentado contra a redação de Charlie Hebdo em um pretexto para acirrar as xenófobas e fascitizantes leis anti-imigrantes e de perseguição a mobilizações populares e operárias, o assassinato dos membros do semanário francês trouxe à tona uma importante discussão não apenas sobre a liberdade de expressão, mas sobre o próprio conteúdo que veiculavam as charges. Nascido em meio à tradição contestadora e iconoclasta surgida do maio de 1968 na França, Charlie Hebdo foi o herdeiro do jornal satírico Hara Kiri, mas lentamente foi mudando seu humor de lado, dos oprimidos para os opressores, como contado nesse artigo.

O humor é uma arma poderosa. E a classe dominante sabe utilizá-lo bem para reforçar sua ideologia, naturalizar a opressão e a discriminação. Programas como Zorra Total – em que o humor mais rasteiro e asqueroso é feito de veículo para as ideias mais reacionárias, como o machismo, a homofobia e o racismo – ocupam durante décadas o horário nobre dos principais canais, dando não apenas enorme lucro para os proprietários das emissoras, mas também contribuindo para dividir as fileiras dos explorados e oprimidos. E tudo sob o ótimo disfarce daquele velho argumento que todos já ouvimos alguma vez: “Ah, mas é só uma piada”. Talvez a falsidade desse argumento possa ser escancarada pelas mortes de Charlie Hebdo: não é “só” uma piada. O humor é poderoso.

Por isso, são valiosos aqueles que tomam o humor para estar ao lado dos que não têm voz nos grandes meios de comunicação de massas. Os que o usam para ridicularizar os opressores, para destruir mitos e ideias reacionárias. Há muitos nomes importantes que já o fizeram, como Charles Chaplin, em obras primas como “O grande ditador” ou “Tempos modernos”.

Carlos Contente, quadrinista carioca, é um nome novo e desconhecido ainda, mas sua ótima HQ (história em quadrinhos) “Claudinho e Adolfo”, uma modesta produção independente vendida pelo correio pelo próprio autor, merece ser conhecida. Feita em um traço simples, intencionalmente rudimentar, mas autêntico e de grande personalidade, Contente traz ao Brasil o personagem Adolfo Himmler, uma paródia que faz referência ao ditador nazista Adolf Hitler e ao comandante da SS (polícia nazista) Heinrich Himmler.

Adolfo desembarca no Rio de Janeiro para uma “convenção fascista” na Barra da Tijuca. Seu guia turístico é um autêntico malandro carioca da gema, Claudinho, “Maneirão com todo mundo”, como diz a descrição da “Claudinho Tour”. Sendo “maneirão” com Adolfo, Claudinho o leva para conhecer aquilo que o interessa: a repressão do Estado contra os pobres e os negros. Adolfo se encanta pelas “maravilhas nacionais” como o Caveirão, os grupos de extermínio, a repressão estatal brasileira de fazer inveja a direitistas de todos os cantos, com sua polícia mais assassina do mundo. Encantado, Adolfo, em sua convenção fascista, procura convencer seus assombrados colegas fascistas de todas as nacionalidades que o Brasil é um modelo a ser seguido pelo fascismo em toda a parte.

O choque de seus “companheiros” fascistas ao ver que o guia Claudinho é negro já gera a tensão entre eles. “É um país de índio”, diz um, afirmando que o Brasil não pode ser nenhum modelo fascista. A divisão entre eles parece ridícula, mas expressa verdadeiras divergências existentes entre grupos fascistas no Brasil: alguns discriminam negros, outros nordestinos, outros homossexuais, e divergem entre si sobre quem deve ser exterminado. Seu único consenso está em que se deve atacar os comunistas, ou seja, os representantes da luta dos trabalhadores contra a burguesia... por que será?

Publicado em 2014 e produzido em 2013, “Claudinho e Adolfo” dá ênfase à crítica contra as obras da Copa e suas remoções, feita ao estilo estatal que faz Adolfo se tornar um fã de nossos governantes. “Nein é demais?! A gêntchi compra as terrenos dêixa valorizar e ainda pódi pratiká extermínium!”, diz Adolfo, com a grafia “errada” que Contente traz como uma das marcas de seu estilo próprio. O que Claudinho chama de “turismo tragédia” (uma referência também ao turismo que estrangeiros ricos fazem visitando as favelas para ver de perto a miséria brasileira) passa ainda pelo atendimento do SUS, por chacinas, pelo “arrego” (suborno) às milícias entre outras coisas.

Com grande personalidade e um humor que satiriza a violência estatal brasileira, Carlos Contente consegue demonstrar de forma contundente, aguda, que, em suas palavras, “Essa parada aí de Estado mínimo é caô. O mesmo Estado que é mínimo em ‘interferir nos negócios’ é ‘o máximo’ , duro e rigoroso para impôr suas leis em cima de quem já não tem nada. Ainda que o massacre não seja declarado a violência econômica impõe uma forma de vida com imensa brutalidade atropelando milhões de vidas, criando campos de miséria e sofrimento onde quem ali nasce já não encontra forças para expressar seu desespero”.

Carlos Contente é um nome promissor nos quadrinhos brasileiros, um humorista que coloca suas armas apontadas contra os opressores e ao lado dos que são cotidianamente privados de expressarem sua revolta. Sua obra merece ser conhecida e divulgada, tanto pelo seu posicionamento político como pela sua excelente qualidade em transformar o riso da tragédia em uma reflexão política de grande alcance.

Veja aqui um pouco de "Claudinho e Adolfo"

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