Terça 23 de Abril de 2024

Cultura

ENTREVISTA COM OS DIRETORES DO FILME TRABALHAR CANSA

“Buscamos retratar a crueldade velada que existe na mentalidade empresarial”

16 Sep 2011 | Com o filme "Trabalhar Cansa" Juliana Rojas e Marco Dutra apresentam seu primeiro longa. Os dois jovens, que iniciaram a carreira a partir do curso de Cinema da USP, filmam de forma ácida as relações de trabalho e as mudanças das relações familiares quando Helena, personagem principal, passa de "mãe e esposa" à "chefe de família e patroa". O Jornal Palavra Operária entrevistou os diretores do filme, leia a seguir:   |   comentários

1) Trabalhar Cansa é o primeiro longa da carreira de vocês, porque escolheram este tema?

A inspiração para a história de "Trabalhar Cansa" surgiu de uma observação da vida real. A Juliana morava em Higienópolis e costumava frequentar um mercadinho que era administrado por uma jovem mulher. Era visível, nos seus gestos, no modo como ela lidava com os funcionários, que aquela mulher estava se adaptando ao papel de patroa. Nos pareceu uma personagem muito interessante. Passamos a imaginar como essa transição de dona-de-casa para trabalhadora do comércio afetaria a vida doméstica e as relações pessoais dessa mulher. Com o tempo, vimos que seria interessante se os outros personagens do universo doméstico dela também estivessem passando por uma transformação em sua vida profissional. Otávio, o marido dela, perderia subitamente o emprego de executivo, provocando uma inversão de papéis dentro da casa. Helena seria obrigada a contratar alguém para tomar conta de sua filha e do serviço doméstico, e o filme observaria também a relação entre a empregada doméstica e a patroa.

2) O filme retrata uma série de situações das relações entre trabalhadores e patrões que, poderíamos dizer, "é preciso viver para saber". Como foi a construção destas histórias, vieram de alguma experiência real?

Algumas situações do filme foram inspiradas na nossa experiência pessoal de trabalho. Trabalhei por cerca de 2 anos em uma rede de locadoras que tinha uma mentalidade empresarial. Sempre me impressionou muito o modo como as relações de poder dentro da empresa afetavam as relações pessoais - como quando um funcionário era promovido a um cargo de liderança, isso afetava sua personalidade. A crueldade velada que existe na mentalidade empresarial (certa vez, uma das gerentes me ensinou que é sempre mais produtivo elogiar um funcionário antes de lhe fazer uma crítica), a desconfiança dos patrões em relação aos funcionários, tudo isso ficou muito marcado e considero muito representativo de como a sociedade brasileira ainda funciona. O Marco também passou por alguns processos de seleção com dinâmicas absurdas, psicologizantes. Tanto o meu pai quanto o dele passaram por um período de desemprego e pra nós dois era muito forte a lembrança de como isso abala a dignidade pessoal de um homem. Uma pessoa sem trabalho é excluída da sociedade de modo muito violento e isso precisa ser discutido.

3) Durante o filme existem, ainda que de forma dispersa, algumas alusões à escravidão. Qual o significado desta relação "escravidão" e "trabalho assalariado" no filme?

Quando colocamos essas alusões não pensamos em relacionar diretamente a escravidão e o trabalho. Acho que o que existe é a vontade de retratar que as relações de trabalho no Brasil ainda estão impregnadas por uma mentalidade da época da escravidão - principalmente no caso das empregadas domésticas. O fato de Paula ser a única personagem negra não é por acaso. Queríamos retratar que ainda existe muita desigualdade social e que ela está atrelada a uma questão racial.
4) Ainda que o filme não se proponha a apresentar uma "saída", pode-se dizer que é uma crítica às relações de trabalho e como os ambientes de trabalho também podem ser, além de opressivos, aterrorizantes. Qual é o papel do terror na obra cinematográfica de vocês?

Uma das coisas que nos aproximou e nos fez trabalhar juntos foi nosso interesse por filmes de terror. Quando éramos crianças, gostávamos de assistir a esses filmes. Não gostamos de classificar nossos filmes em um determinado gênero: em "Trabalhar Cansa", usamos dos elementos de cinema de suspense e terror para narrar uma história sobre uma mulher que entra para o mundo do trabalho formal - e como essa experiência a transforma. O uso desses elementos não é gratuito: acreditamos que o teor fantástico do filme faz com que o expectador busque refletir sobre o drama social que está sendo retratado.

5) Trabalhar cansa! E também aliena, asfixia, divide.. e em nosso país mata. Como vocês vêm a situação dos trabalhadores hoje no Brasil e que expectativa tem da receptividade do filme pela classe operária?

A situação trabalhista no Brasil ainda tem muito o que evoluir. Algumas pessoas acham nosso filme pessimista, opinião da qual discordamos. Não vejo o trabalho de forma negativa. O trabalho é parte importante da nossa vida, ele também dignifica e transforma o mundo. Mas é preciso que haja condições de trabalho e igualdade de direitos para todos. Apesar das taxas de desemprego estarem caindo e o país estar se transformando numa potência exportadora, ainda temos situações de trabalho escravo, desrespeito aos direitos trabalhistas e desigualdade no ambiente de trabalho entre homens e mulheres.

Gostaríamos muito que o filme fosse visto pelo maior número de pessoas possível. Acho que a classe operária pode se identificar muito com as situações retratadas no filme. Já mostramos o filme para públicos de diferentes classes e o que parece tocar a todos com mais força é o aspecto das relações de trabalho. As pessoas parecem felizes em ver sua realidade representada nas telas. É importante que todas as pessoas busquem tomar contato e se apropriar da cultura nacional, pois ela é uma arma muito forte para gerar reflexão e buscar mudanças.

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